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A mostrar mensagens de 2021

Dores de crescimento

  O rapaz estava ensimesmado no sofá, esquecido das pernas e dos braços que mantinha em posições acrobáticas. Conservava na cabeça o capuz para criar uma fronteira com o mundo que todos os dias descobria qual alpinista destemido. Aterrara havia pouco tempo, vindo do reino onde sempre vivera, um círculo perfeito, luminoso, uma brancura ingénua e feliz. Agora percorria as ruas de um outro cheio de cores e brilhos confusos, onde o branco parecia branco. Um labirinto onde, por vezes, já não era uma vez. Sem volver os olhos, perguntou: - Pai, ouvi dizer que és um romântico, é verdade? O adulto olhou-o fixamente por momentos, em silêncio. Percebeu que não ia encontrar os olhos do filho que acompanhava com algum interesse o decorrer de uma série policial. Às vezes, encontramos nos olhos o caminho da resposta que as palavras em ponto de interrogação não sabem antecipar. Arriscou então uma graça: - Não me digas que estás apaixonado? O rapaz reagiu com espanto à inesperada pergunta. -

A profundidade das árvores

  Por momentos, o silêncio ganhou espaço no carro. O pai fixava as paralelas brancas que acomodavam a viatura e lhe ditavam os limites. Tinha mergulhado numa espécie de futuro que por momentos nos visita sem nunca se deixar agarrar.   Imaginava já as agendadas tarefas que se acotovelavam para aparecer. O Mateus seguia ao lado, calado e concentrado no exterior recortado pela janela. - Pai, olha ali! – pediu o rapaz. Não precisava de apontar. O pai sabia muito bem o motivo do espanto. - Muito corajoso, Mateus. Com esta chuva, logo pela manhã… registo com espanto o sacrifício daquele homem! - Oh! – reagiu o Mateus, acompanhando a interjeição protestante com um acentuado encolher de ombros. Ainda se voltou para trás de forma a ver mais uns segundos aquele quadro matinal. O silêncio voltou. As árvores despediam-se das últimas folhas que apanhavam o sopro do vento agitado e, baloiçando, chegavam suavemente ao chão. E os ramos lá ficavam orgulhosamente erguidos. A perda não os incli

Vírgula, mas chegas tarde!

          - Pai, por favor! Eu preciso de tempo! Devagar se vai ao longe… não é o que costumas dizer?!           - Vírgula, mas chegas tarde! Há muito que o pai conservava esta exclamação em ponto de disparo. Crescera com ela acomodada na zona mais acessível da memória, sempre pronta como qualquer carimbo quadrado e precipitado. - Vírgula, mas chegas tarde! – repetiu, perante o espanto do filho. O rapaz conviveu com as palavras alguns segundos, enquanto lançava no quadriculado mais uma das incógnitas reduzida a xis.  - Espero que não me voltes a contar a história da lebre e da tartaruga… - gracejou. - Nem todas as lebres adormecem na viagem! – reagiu o adulto prontamente. O rapaz introverteu-se e alinhou mais alguns números, perseguindo rigorosamente o resultado final, e não respondeu ao pai que, segundos depois, desmantelou a sapiente muralha e afastou-se. Pensou depois que nunca lhe tinham dito que participava numa corrida, muito menos que havia tempo limite para percor

A tarde clara e solidária

  O Sol tocava as folhas dos liquidâmbares ainda verdes que brilhavam agradecidas junto ao portão. Ao lado começava o estradão ladeado por muros seculares, feitos de pedra tosca agora aveludada pelo musgo. Aí se escondiam o som dos passos e as palavras ditas pelos passantes, os que iam cantantes e vigorosos, os que vinham cantantes e cansados. Alguns metros mais à frente, logo após uma curva acentuada, o caminho findava para dar lugar ao campo largo e comprido. Era aí que esperavam as canas de milho. A bandeira que hastearam durante meses tinha sido cortada e agora permaneciam alinhadas qual coro que aguarda o gesto melódico do maestro. Segredavam sobre as espigas que irrompiam triunfantes da palha que as envolvia, sobre os pássaros que as visitavam e a quem ofereciam alguns grãos em troca das histórias que traziam de muito longe. Sobre os gatos que esperavam horas junto das raízes, para, repentinamente, se lançaram num ziguezague impossível, alcançando pouco depois a presa que tinham

O segredo das árvores

Da minha janela, observei-as demoradamente. Incomodava-me aquela inclinação ordenada, como se todas quisessem levantar raízes e procurar outras paragens. As copas semidespidas tinham oferecido ao vento do mar as folhas que seguiam pelo caminho do sonho, rompendo as fronteiras daquela praça cercada por edifícios quietos. Estes pertenciam à classe daqueles que hibernavam longamente para despertarem nos dias quentes e longos. Nesse tempo, subiam as brancas pálpebras e os retornados carros escondiam-se discretamente nas caves. Observei-as demoradamente. Algumas tocavam-se suavemente, cruzando os ramos, acariciavam-se as folhas, contando segredos escondidos no rumor, no sussurro de cada movimento. Nunca conheci as raízes, apenas a sua estatura. As raízes seriam fundas se lá no fundo houvesse o que procurar. Outras permaneceriam à superfície, beijadas pelo orvalho, agarradas à terra que as adotara. Eram três os canteiros, todos retângulos, dois deles siameses. As árvores eram seis, a

As escadas do sono

             Todas as noites, antes de se recolherem para dormir, os pais do Mateus passavam nos quartos para verificar o sono dos filhos, desligar as luzes e os rádios. Uma espécie de revista amorosa antes do descanso sereno. - Ele teima em cobrir-se completamente! – sussurrou o pai. - Já sabes que é por causa das melgas – justificou a mãe que há muito sabia que o Mateus se defendia assim dos importunos insetos. - Mas não temos melgas cá em casa! – protestou. A mãe respondeu-lhe com um sorriso discreto, fitando-o de forma divertida. - Melgas há muitas…! O pai não lhe deu tempo de terminar a famosa tirada.   No dia seguinte, durante o pequeno-almoço, o pai observou pausadamente a crescente agitação dos filhos, as disputas ardentes sobre a posse do comando e sobre o programa a ver daí a momentos. Não se entendiam! - Mãe, posso ver tablet ?! – reclamou a Clara, prevendo a ineficácia dos seus argumentos. - Não. Têm de ver o mesmo filme! Os três! – determinou a mãe, inc

Pai um pouquinho beterraba

  Tinha chegado o momento! O rádio despertador marcava sete horas e cinquenta minutos. Estava na hora! Levantou então os olhos e enfrentou determinado o quarto de vestir que ainda permanecia na penumbra. Ligou todas as luzes e as cores despertaram, surgindo da sombra, alinhadas, dobradas, cintilantes. Os cabides faziam já o habitual número matinal: agarrados ao varão principal, suportavam tempo sem fim o peso das camisas e das calças, uma espécie de halterofilia ao contrário, onde os alteres se divertiam, tentando chegar ao desejado chão. Pretendiam os cabides impressionar as vizinhas estantes. Coitados! Os mais velhos bem sabiam que elas eram inatingíveis, por mais belos e musculados que fossem os mais novos. Inevitável coita de amor! As altivas estantes passavam o tempo a fitar as tentadoras gavetas. Era aí que permaneciam os segredos que elas tanto queriam desvendar. Por onde teriam andado aquelas festivas gravatas carinhosamente enroladas e colocadas no seu almofadado quadrado

No Reino das Esperas

               O pai ouviu o pedido, enquanto colocava na mesa a última colher junto ao prato da Teresa. Irradiava pela sala um aroma sorridente, onde a esperança conquistava sempre um novo alento. - O jantar está pronto! – ouviu novamente. E as palavras voltaram a percorrer o espaço à procura dos ouvintes derramados pelo sofá. Pouco depois, retirou da torradeira o pão estaladiço, concordando com Cesário, pois também achava aquele  cheiro salutar e honesto . - O jantar está pronto! – exigiu a mãe, como quem faz um ultimato. Mas o silêncio continuou sossegado. - Podes ir chamá-los, por favor?! O pai abandonou então os alexandrinos realistas e procurou os filhos que permaneciam tranquilos, como se não houvesse mais ninguém à sua volta, como se o mundo terminasse no limite do sofá e a partir dali fosse o infinito, mares secretamente navegados! - O jantar está pronto! – repetiu. - Há sopa? – reagiu a mais nova. Ao aceno afirmativo opôs-se o exército desalinhado com dramáticas caretas. Era

Pontos cordiais

  O rapaz interrompeu a palavra que alinhava com muitas outras na esperança de acompanhar o pensamento que ainda organizava. Depois, levantou a voz e o olhar para, delicadamente, colocar a dúvida: - Aqueles pontos… norte, sul… este, oeste… como os designamos? Pontos cordiais, certo? Deixei que o silêncio voltasse. Apenas o meu sorriso maravilhado chegou como resposta. E, por momentos, fiquei abraçado àquelas palavras pelo brilho inesperado que emanavam.   O que sabia aquele rapaz sobre pontos cordiais? A pergunta, teimosa, caminhou depois na minha direção e obrigou-me a buscas pouco usuais.   E, enquanto os meus olhos vagueavam perdidos pela sala, soltei as amarras.   Tarefa árdua, pois precisava de encontrar aquela bravura que não me deixa perder nas estradas mais tumultuosas, que não me abandona desorientado, desnorteado. Aquela bravura que me leva para o sul, caminho sempre incerto da descoberta. Aquela bravura que me agarra às estrelas quando o Sol

Mãe, obrigado!

  Esta manhã quando abri a porta já o jardim celebrava a tua beleza   As camélias esperavam ainda por ti recortando as melhores pétalas e procurando felizes a melhor cor   As rosas aveludavam a sua forma brilhante e carinhosamente perfumavam o caminho onde esperavam encontrar-te   Para te ver as intensas azáleas alinhavam-se inquietas nos limites da calçada ansiosa pela leveza dos teus passos   As árvores ávidas de Sol e de altura inclinavam-se para te tocar e aprender a medida da beleza e da vida   Os tenros rebentos surgiam espantados com a luz agarrados ainda ao materno ramo que lhes segredava o teu nome   Chegaste pouco depois e perguntaste-me o que procurava no jardim Respondi-te que tentava entender a tua inefável intimidade com a beleza das flores e os segredos do jardim que se alimenta do teu sorriso

Não fujas!

  Olhou-os a todos como as pétalas que gentilmente abraçam o Sol. Só no silêncio acontece um abraço assim!   - Hoje vamos ler?   - Sim.   A resposta satisfez a pergunta, mas vinha carregada de inquietação que logo transbordou:   - Estás bem?   Os olhos encontraram-se, no momento em que a pergunta descia da curva lá no alto, e a rapariga acenou afirmativamente, deixando fugir um ligeiríssimo sorriso. Sentia-se mais confortável: as interrogativas palavras eram como uma mantinha quente e macia onde nos encolhemos para ouvir a nossa história preferida. Sim, podia ser, a chuva e o frio sintonizam a escuta!   Daí a pouco, a narrativa escolhida e partilhada brotou do fundo dos ecrãs,  O caminho para a verdade,  e o seu fresco aroma invadiu a memória daqueles adolescentes que se mediam com a grandeza daquelas palavras e com a estranheza dos atos contados.   Paulatinamente, foram surgindo as palavras por onde emergiam os pensamentos até então agarrados à história do Matias e do Ricardo. O prime

O silêncio que nos fala!

   - Pai, por que razão levantas o rosto, fechas os olhos e sorris, enquanto procuras as memórias da minha infância? O rapaz esquecera-se da inspiração longa e suave que, qual brisa suave, primeiro chega ao lugar onde brotam as mais belas flores. O sorriso antecipava a forma singela, a cor sincera e o perfume honesto de cada uma. Os olhos assim cerrados, como farol nas costas bravias que observa quando há luz e é visto quando a noite esconde o caminho, orientavam a viagem até essa enseada segura onde as memórias aguardavam sossegadas. O rosto assim levantado parecia uma bandeira que se erguia plena de gratidão e de satisfação! Pai e filho estavam agora atracados na mesma angra, unidos no que ficou desse tempo que os amarrou para sempre ao mesmo cais. Sim, poderão partir, percorrer distâncias diferentes, porque é maravilhoso ter onde chegar ou não saber onde se vai chegar, mas é eternamente radical saber onde voltar, ter onde voltar. - Lembras-te ou não? - insistia o rapaz,  aprendiz de

Ainda procuro essa altura

  Encontrei-te pela primeira vez no olhar! Fixei-te e pequenas ondas espantadas inundaram, nesse instante, as margens dos teus olhos, incapazes de impedir a alegria que percorreu depois os profundos caminhos do teu rosto…   O meu corpo moldou a forma das tuas mãos, quando me pegaste e, num gesto sublime, me levantaste para além da tua altura… Foi aí que recolhi a marca do sonho e o sentido inefável da pertença!   O caminho que depois apontaste tinha a vitalidade dos sulcos cuidados que desenhavas na terra. Era um bailado rigoroso, compassado, aprovado pelo suor que nunca recusaste… Eram linhas de uma dura narrativa de onde brotavam alegrias partilhadas…   Que força te chamava naquelas noites frias? Que sonho te guiava naquele caminho por onde regressavas ao nascer do Sol? As mãos que me acolheram mostravam, nessas manhãs, sorrisos que me alimentavam. Um dia, trouxeste também a sacola  onde reuni o aroma das esperanças encadernadas

Sentidos adiados

  A Pipoca acordou quando o Sol lhe acariciou a carapaça. Era a primeira vez depois de um longo e atribulado inverno. Vira-se ao espelho do gelo que cobria a superfície da água. Sentira o embalo do vento que tornava as águas inquietas. Aguentara-se com firmeza enquanto a chuva incessante provocava enchentes demoradas, revolvendo-lhe a casa até às pedras onde se agarrava. Mas o Sol trazia agora a bandeira da paz e a natureza abria novamente as janelas, soltando sorrisos coloridos, melodias ingénuas, incentivos aos filhotes que se atreviam ao primeiro voo. As folhas rebentavam nos ramos procurando a forma no espaço. - Félix! Que bom rever-te! – saudou a Pipoca, quando levantou o pescoço para procurar os vizinhos. A caturra manteve-se quieta. - Félix! – insistiu. - Não vale a pena! Está assim há muitos dias! Não quer falar com ninguém! – explicou o gato Sonecas que passava naquele momento. – Vês aquela parede fina e transparente? Foi colocada à volta da casa deles no início do i