Tinha chegado o momento! O rádio despertador
marcava sete horas e cinquenta minutos. Estava na hora! Levantou então os olhos
e enfrentou determinado o quarto de vestir que ainda permanecia na penumbra.
Ligou todas as luzes e as cores despertaram, surgindo da sombra, alinhadas,
dobradas, cintilantes.
Os cabides faziam já o habitual número
matinal: agarrados ao varão principal, suportavam tempo sem fim o peso das
camisas e das calças, uma espécie de halterofilia ao contrário, onde os alteres
se divertiam, tentando chegar ao desejado chão. Pretendiam os cabides
impressionar as vizinhas estantes. Coitados! Os mais velhos bem sabiam que elas
eram inatingíveis, por mais belos e musculados que fossem os mais novos. Inevitável
coita de amor!
As altivas estantes passavam o tempo a fitar
as tentadoras gavetas. Era aí que permaneciam os segredos que elas tanto
queriam desvendar. Por onde teriam andado aquelas festivas gravatas
carinhosamente enroladas e colocadas no seu almofadado quadrado de onde só
saíam uma ou duas vezes na vida? E o laço!? Esse brioso e alado vizinho que
percorria as festas e festins lá no alto de onde tudo podia ver e ouvir! E os
cintos numa espiral sempre prontos para o caloroso e demorado abraço! Mais
furo, menos furo, sempre uma preocupação!
Mas havia uma gaveta que permanecia um pouco
aberta, era a mais próxima do chão. Não corria muito bem, talvez por ter
envelhecido mais depressa, as articulações já não eram tão ágeis, encravava,
fechava aos soluços, e era várias vezes empurrada com os pés! As estantes
chegavam a ter pena dela. Além disso, guardava as peças que eternamente esperavam
conserto, por uma linha que lhes cosesse os orifícios do ofício. Eram meias de
todas as cores e de todos os tamanhos. Meias sem par, que já não queriam nem
podiam ser ímpares, uma tristeza! Dali, não havendo conserto, saíam para terras
distantes que nem as curiosas estantes conheciam.
Pegou então nas calças que permaneciam no
primeiro separador do cabide e, com a mão disponível, alcançou a primeira
camisa que da cruzeta mais alta se mostrou disponível. Incorporou-as e tudo lhe
pareceu bem! Por fim, encontrou na estante a camisola que naquele dia fazia
todo o sentido: na véspera, a seleção tinha abandonado gloriosamente, como
sempre, o campeonato europeu, uma tristeza que era preciso anular, envergando o
alegre verde daquela camisola! Fazia sentido! Tudo combinava! Até lhe veio ao
pensamento uma daquelas formosíssimas palavras que constantemente importamos:
tudo fazia pendant! E repetiu divertido a palavra que lhe rebentou nos
lábios: pendant!
Desceu as escadas como quem se dirige para o
palco onde o expectante público o aguardava impaciente. Já na mesa, escolheu o
café e mostrou alguma preocupação com a hora avançada. Por momentos, não
percebeu que o silêncio geral era naquele momento uma arma apontada. Observou mais atentamente os filhos, procurando encontrar a razão daquela súbita quietude. E
viu que em todos eles havia uma gargalhada presa no olhar, prestes a rebentar.
A Teresa foi a primeira a dar forma ao seu espanto:
- Pai, pareces uma beterraba!
- Também acho! – concordou a Clara divertida!
Perturbado pela
surpresa da comparação, ainda procurou o apoio da bela mulher que ao seu lado já
o percorria de alto a baixo. Logo percebeu a gravidade da situação, era mesmo
uma beterraba! Afinal, nada fazia o tal pendant! Parecia um daqueles
quadros irremediavelmente mal recuperados!
- Não tens emenda! A Teresa tem razão!
Verde-escuro, verde-seco e cor de vinho! Francamente!
Ele ainda pensou em contrariar, afirmando
que era bordeaux, mas julgou melhor subir as escadas e encontrar as
peças e as cores mais acertadas, mais amigáveis. Suspirou, enquanto heterónimas
e certas palavras lhe assaltaram o pensamento. Afinal, pensar é não
compreender…. Por momentos, até pensou que estava doente dos olhos,
afinal era uma beterraba! As cores que na beterraba eram gala,
nele eram aberração! Enfim, o melhor é estarmos de acordo!