- Pai, por favor! Eu preciso de tempo! Devagar se vai ao longe… não é o que costumas dizer?!
- Vírgula, mas chegas tarde!
Há muito que o pai conservava esta exclamação em ponto de disparo. Crescera com ela acomodada na zona mais acessível da memória, sempre pronta como qualquer carimbo quadrado e precipitado.
- Vírgula, mas chegas tarde! – repetiu, perante o espanto do filho.
O rapaz conviveu com as palavras alguns segundos, enquanto lançava no quadriculado mais uma das incógnitas reduzida a xis.
- Espero que não me voltes a contar a história da lebre e da tartaruga… - gracejou.
- Nem todas as lebres adormecem na viagem! – reagiu o adulto prontamente.
O rapaz introverteu-se e alinhou mais alguns números, perseguindo rigorosamente o resultado final, e não respondeu ao pai que, segundos depois, desmantelou a sapiente muralha e afastou-se. Pensou depois que nunca lhe tinham dito que participava numa corrida, muito menos que havia tempo limite para percorrer as palavras e os números arrumados em jeito de sabedoria encadernada.
Na sala ao lado, o pai também não se sentiu descansado com as palavras que deixara nas mãos do filho. Pareciam-lhe, assim atiradas, conchas impuras um punhal, um incêndio… Sentia que o instantâneo também o dominara. Essa força indomável de uma linha de montagem imparável, implacável. Parou algum tempo junto às fotografias que presenteavam momentos felizes e regressou ao espaço do filho.
- Então, pai?! Não ouviste nada do que te disse, certo?
O Mateus sabia que não. O pai estava ainda preso ao lugar que os olhos já não alcançavam. Ou talvez sim. Os olhos abertos podem ver por fora, mas também podem ver por dentro. Quando se fixam e se tornam ausentes, regressam às formas e às cores que o tempo quis conservar, raízes de um presente que não se veem, que o alimentam e lhe dão forma.
- Estava a dizer-te que não consigo fazer estes exercícios todos… tu começaste uma fase, mas não acabaste… ficaste aí a pensar…
O pai sorriu com a insistência do filho, principiante adolescente, que o fazia regressar da memória em que também ele fora tartaruga, atleta aprendiz do saber.
- Estava aqui a pensar que com a tua idade ouvi muitas vezes dizer que devagar se vai ao longe, mas que podemos chegar tarde…
O Mateus ouviu com curiosidade tal conclusão adversativa e esperou pelo necessário desenvolvimento.
- Eu ouvi o teu protesto – continuou. – Percebi muito bem. Em tempos também o meu pai temia que eu chegasse tarde, se não corresse como a lebre. Contudo, um dia acabou por me dizer que, na história da lebre e da tartaruga, a prova não era individual, era antes uma corrida por estafetas. Cada atleta tinha de entregar o testemunho ao seguinte… na verdade, a corrida não terminou com a chegada da tartaruga à meta. Esta entregou e recebeu várias vezes o testemunho tal como a lebre. Importante foi não parar, importante foi a entrega, essa dádiva plena de luz! Todos fazemos o percurso.
O Mateus guardou aquelas palavras na vertente mais acessível da memória, agora sempre prontas como um abraço reconfortante. Levava o testemunho e não seguia sozinho, por isso, não chegava tarde.