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O segredo das árvores

Da minha janela, observei-as demoradamente.

Incomodava-me aquela inclinação ordenada, como se todas quisessem levantar raízes e procurar outras paragens. As copas semidespidas tinham oferecido ao vento do mar as folhas que seguiam pelo caminho do sonho, rompendo as fronteiras daquela praça cercada por edifícios quietos. Estes pertenciam à classe daqueles que hibernavam longamente para despertarem nos dias quentes e longos. Nesse tempo, subiam as brancas pálpebras e os retornados carros escondiam-se discretamente nas caves.

Observei-as demoradamente.

Algumas tocavam-se suavemente, cruzando os ramos, acariciavam-se as folhas, contando segredos escondidos no rumor, no sussurro de cada movimento. Nunca conheci as raízes, apenas a sua estatura. As raízes seriam fundas se lá no fundo houvesse o que procurar. Outras permaneceriam à superfície, beijadas pelo orvalho, agarradas à terra que as adotara.

Eram três os canteiros, todos retângulos, dois deles siameses. As árvores eram seis, alinhadas em dois tercetos, encostados ao limite mais soalheiro. A erva que os atapetava estava seca, palha desolada. Aqui e ali, alguns tufos resistentes ainda verdes.

A manhã tinha despertado havia pouco. Ondas de orvalho dançavam divertidas ao ritmo da brisa fresca e o Sol aguardava uma abertura para abraçar as árvores.

Foram chegando, vários no tamanho, na cor, na raça, presos ao fio condutor ou livres da trela que até ali os conduzira. Brincavam, sorridentes latidos, dentadas inocentes, esgaravatavam, perseguiam pequenas bolas irrequietas. Os cães.

- Olha, está a fazer o número um! – espantou-se a Clara.

- Aquele está a fazer o número dois! – apontou a Teresa.

E os donos transeuntes, agora estacionados à volta do retângulo maior, observavam atentamente as suas criaturas. Avaliavam gravemente cada movimento e partilhavam sabiamente sérias informações.

Alguns eram ainda jovens, aos pares, agarrados, desgarrados. Numa das mãos a trela, na outra o telemóvel que registava os melhores momentos daquele retiro matinal. Outros, solitários, sossegavam os pensamentos, inspirando o fumo de um cigarro, enquanto davam suaves pontapés nas pedras da calçada, nunca perdendo de vista o seu protegido, por momentos, livre naquele retângulo seco.

Observei-os demoradamente.

Alguns minutos depois regressaram ao prédio que os viu sair, aliviadas e satisfeitas todas as criaturas.

Mas as árvores mantiveram o sussurro inicial. Nem o canto dos pássaros viajantes, portadores de histórias incontáveis, animavam a sua verticalidade. Continuavam à procura. Continuavam à espera.

- O que estás a ver, pai?

- Nada de especial…

- Olha, podíamos fazer um campo de futebol naquele espaço – sugeriu o Mateus, apontando o retângulo maior.

- Podes ir para lá jogar, se quiseres…

- Achas!? Já viste alguém da minha idade neste jardim?

Olhei-o demoradamente e fui percebendo o sussurro magoado e preocupado das árvores que ofereciam ao vento do mar as folhas que seguiam pelo caminho do sonho, rompendo as fronteiras daquela praça cercada por edifícios quietos e cada vez mais velhos.


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