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Mensagens Inesperadas (compilação)

1

            A curva era apertada e perigosa. Respirei fundo, reduzi habilmente para terceira, acelerei para o carro se agarrar na saída. Larguei num suspiro toda a pressão acumulada e deixei-me ir numa velocidade louca estrada fora.
De repente, senti qualquer coisa de estranho no carro: como se umas mãos poderosas o abanassem sem parar!
A estrada, ladeada por árvores frondosas, perdia-se no infinito. Os campos estendiam-se até aos montes longínquos, como uma manta feita de retalhos coloridos por onde os meus olhos passeavam espantados.
- Meu Deus! Não consigo segurar o carro!
Um vento fortíssimo abanava o carro que perdia aderência.
- Socorro! Mãe!
- Pedro. Sou eu, acorda. Abre os olhos.
- Mãe?! – reagi com surpresa, tapando com a almofada quente e fofa a caixa dos pirolitos que naquele momento estavam completamente confusos e às cabeçadas uns aos outros.
- Olha que eu...
Já sabia que a minha mãe estava a preparar-se para uma sessão de cócegas. Era remédio santo. Levantei-me num ápice para fugir daquelas mãos carinhosas e criativas. Além disso, tinha cinco minutos para me aprontar e arrumar o quarto.
Corri como um furacão para a casa de banho, enquanto a minha mãe apanhava os destroços que eu ia largando pelo caminho. Não tinha emenda! Nesses momentos, cantava sempre as minhas canções preferidas:
- We are the champions, my friends...
E ouvia logo o meu irmão a gritar:
- Bibó Porto! Carago! Este ano vamos ser campeões! Venha quem vier, até os comemos! Então, as águias perderam o pio?
Eu tinha-me calado mas não me tinha dado por vencido. Surpreendi o João na altura em que vestia a sua t-shirt preferida e que dizia do not disturb. Lancei-me sobre ele e, entre gritos e gargalhadas, rolámos pelo chão, simulando uma séria luta corpo a corpo.
- Quem é que perdeu o pio, ah!? Quem foi? Seu dragão sem dentes!?
- Mãe, tenho uma águia depenada em cima de mim!
A minha mãe já conhecia a história e não reagia. Fiz a cama, selecionei os livros, desarrumei-os na mochila e voei para a cozinha onde não aterrei para poder entrar no carro a tempo.
- Ih! Que cabeça de vento! João, esqueci-me do livro para Português. O prof vai-me matar, é a quarta vez que me esqueço! Mãe, não dá para voltar a casa, pois não?
- Nem penses nisso, estamos muito atrasados.
Ia ouvir mais um chazinho sem açúcar do meu professor de Português e comer menos um croissant para poder pagar a multa.
Respirei fundo, olhei a longa reta ladeada de casas e preparei-me para mais um dia de aulas.



2
           
            - Agora é convosco. Mais um dia pela frente. Está nas vossas mãos torná-lo útil e divertido. Mais logo, espero-vos à hora habitual. João, tens dinheiro para o bar? Ontem dei-te cinco euros.
            Eu não podia deixar escapar aquela oportunidade.
            - Isto é uma injustiça! Eu também preciso de financiamento. Tenho quatro multas da biblioteca de turma para pagar e as quotas em atraso. Sabes, mãe, a minha carteira tem andado com comportamentos muito estranhos: o dinheiro que lá entra desaparece misteriosamente.
A minha mãe, advogada há vários anos, sorriu e apresentou um bom argumento para não entrar em mais despesas:
            - Eu tenho de ir falar com o professor, tu já deves andar a pagar as quotas do próximo ano! É impossível, todas as semanas pagas quotas! Já devem ter dinheiro para comprar um livro para cada aluno da turma. João, empresta dinheiro ao Pedro, que eu não tenho aqui trocado.
            Ambos protestámos porque nos sentimos injustiçados. O João ficou como um gato pronto a atacar: o pouco que lhe restava ainda tinha de partilhar comigo!
Entrámos na escola. O João desatou a correr em direção à sala do décimo primeiro ano. As aulas tinham começado havia cinco minutos. Mais do que a falta, preocupava-o a matéria que perdia todas as manhãs. Eu parei ainda no campo de jogos para fazer uns centros para a baliza e aproveitei para ouvir as últimas novidades. Não era o único atrasado.
            - Pedro, não vais ao teste de Português? Já são nove e um quarto!
A D. Maria estava sempre atenta e preocupada com os alunos.
            Uma barra de ferro de quinhentos quilos atingira-me a cabeça! Corri para a sala.
            - Bom-dia, professor. Desculpe o atraso, mas a minha mãe...
            - Bom-dia. Não mintas! - cortou o professor, num tom de voz muito baixo, para não incomodar os meus colegas que já tinham começado o teste. - Vi o João chegar há quase dez minutos. Senta-te e concentra-te para começares.
            O professor estava certo.
            Acomodei-me e resolvi ter uma pequena conversa com o teste. Não gostava de passar quase duas horas com um desconhecido.
Tal como afirmara a minha mãe, estava nas minhas mãos tornar aquele dia útil e divertido. Comecei por torná-lo útil, resolvendo o melhor possível a prova que tinha à minha frente.




3

Daí a pouco, levantei os olhos, observando com cuidado os meus colegas, para colher discretas opiniões sobre a dificuldade do teste. Reparei que alguns manifestavam um entusiasmo contido e outros uma certa vaidade por terem previamente acertado na matéria testada. Ouvia-se a sinfonia das folhas manuseadas, viradas e dobradas, que, assim, se preparavam para receber as respostas que brotariam daquelas mentes curvadas como pontos de interrogação.
À minha frente, o Xavier não parava de se mexer. Notei que não se concentrava na leitura do enunciado. Ora se recostava, abandonando os braços ao longo da cadeira, ora fixava o teto, enquanto batia descontraidamente com a caneta nos lábios. Achei estranha tal atitude. Normal seria que se movimentasse na cadeira para tentar observar as respostas de algum colega desprevenido, qual explorador que na floresta se esconde atrás de um arbusto para observar ou capturar a sua presa.
Ali perto, a Catarina começava já a responder às questões. Percebi que tinha uma versão igual à minha o que me fez, estranhamente, ficar mais seguro. Sabia que ela nunca me daria as respostas, no entanto, admitir que ela percorria as questões pela mesma ordem deixava-me mais calmo.
Nos dias anteriores, eu tinha feito um esforço extraordinário para abarcar a gramática que era, de facto, complexa e cheia de particularidades. Era um labirinto que não tinha percorrido a tempo e com tempo. Por isso, não tinha feito muito para além de atulhar a memória com informação que agora poderia não servir de nada. Qualquer exercício poderia surpreender e derrubar aquele edifício de cartas sobrepostas. Já a interpretação dos textos não era tarefa que me assustasse. Era mar para a minha prancha.
O Xavier continuava inquieto e não havia maneira de começar a trabalhar. Tinha, naquele dia, o cabelo solto e desalinhado, um aspeto descuidado que gostava de cultivar e que se adequava à sua atitude perante as tarefas escolares. Aliás, o cabelo comprido e despenteado protegia-o de algumas aventuras que, por vezes, arriscava durante as aulas. Contava que chegava a ouvir música sem que os professores descobrissem. Os auriculares ficavam totalmente ocultos por aquela trunfa desorientada. Pensei se naquele momento não estaria mesmo a ouvir as suas bandas preferidas indiferente ao teste que tinha pela frente.
- Bom dia, senhor professor - o Eduardo tinha sempre aquele modo polido de se dirigir aos professores. Não sei se o levavam a sério. - Este fim-de-semana estive de cama e não pude estudar convenientemente para este teste.
- Entra, Eduardo. Podes ocupar aquela mesa. Já lá tens um enunciado e uma folha de respostas – respondeu o professor, apontando a mesa e evitando claramente aquela desculpa.
Mas o Eduardo não desistiu:
- Pois, mas eu queria aproveitar esta hora para estudar. Se me pudesse dar um enunciado, eu ia resolvê-lo para a Biblioteca. Depois, se tivesse dúvidas, vinha procurá-lo.
O professor olhou-o fixamente durante alguns segundos, ponderou as vantagens e as desvantagens daquele pedido.
- Não, não posso dar-te o enunciado neste momento. Poderás levá-lo no final. E, se não fazes o teste hoje, a solução passa por vires ao teste de recuperação que já está agendado. Mas não terás segunda oportunidade. Estuda. Se tiveres dúvidas, sabes onde encontrar-me. A tua diretora de turma espera-te. Podes ir.
O Eduardo agradeceu contrariado e surpreendido. Parecia não entender aquela recusa. Foi nesse momento que eu notei movimentos muito interessantes na mesa da frente. Logo que o professor se opôs às intenções do Eduardo, o Xavier retirou discretamente do ouvido um auricular, que rapidamente escondeu no interior da camisa, e, de entre as pernas, retirou um telemóvel, que atirou para dentro da mochila que mantinha aberta a seu lado. Não pude deixar de relacionar o que acabara de acontecer. Esperava tudo do Eduardo e do Xavier. Reparei ainda que o professor procurava entender também aquele pedido. A sua expressão não deixava dúvidas, um sorriso discreto acompanhado por um ligeiro aceno com a cabeça fez-me adivinhar o seu pensamento: «Que atrevimento!!».
Resolvi continuar o teste. Depois falaria com a Catarina sobre estas suspeitas.






4

A caneta brincava entre os meus dedos satisfeita por não ter de abrir caminho pela folha branca, prisioneira entre duas linhas sempre iguais. Todos os meus colegas copiavam do quadro qualquer coisa que parecia ser muito importante, a avaliar pelo seu silêncio e concentração. Um exército de canetas azuis, pretas, verdes, vermelhas, rosa, rosa-um-bocadinho-mais-escuro, rosa-um-bocadinho-mais-claro, alinhava-se nas mesas, cada uma delas pronta a retirar o capacete para a batalha na folha branca. Nunca percebia por que razão usavam dezenas de cores para copiar do quadro o sumário da aula.
- Pedro, passa-me o corretor. Pedro!
Uma cotovelada convenceu-me a olhar para o meu colega de mesa, o António.
- Sim?!
- Empresta-me o corretor.
- Já vais pintar as unhas outra vez! Ao menos tem cuidado, não estragues o pincel – gracejei, para depois acusar em voz alta. - Professor, podemos usar corretor no caderno diário?
- Espera um momento, Pedro, já falo contigo.
O António acertou-me em cheio na canela com um pontapé furioso.
- És mesmo estúpido! - deixou escapar entre dentes. – Professor, - contra-atacou de braço no ar - o Pedro ainda nem sequer começou a escrever o sumário.
O António era um dos meus melhores amigos. Adorávamos aquele jogo que fortalecia a nossa amizade. Entretanto, o professor tinha-se aproximado.
- Toma, António. Usa este corretor. Pedro, depois de registares o sumário, recolhe, por favor, as poesias.
Adorava aquelas tarefas. O professor ficava satisfeito com a minha colaboração e eu podia passear pela sala e passar junto da Catarina. Catarina!… Eu sentia um conforto, uma paz enorme, quando estava ao lado dela. Tinha um jeito meigo de falar, olhava-me nos olhos, ao mesmo tempo que me segurava o braço.
Raramente sabia o que dizer-lhe, o meu coração ainda não conhecia as palavras certas para aquilo que sentia e, naquela manhã, arrisquei baixinho:
- Fizeste o trabalho de casa, Catarina?
Sem esperar a resposta, outra frase ainda menos inteligente escapou-me da boca:
- Tenho a certeza de que te inspiraste em mim, para fazeres a poesia!
Até eu me espantei com aquela presunção. Sentia receio. Tinha sido demasiado convencido. A Catarina só então levantou os olhos. Ao voltar-se, os cabelos voaram e deixaram no ar um aroma que eu inspirava como remédio para uma doença qualquer.
- Continua a recolher os textos. Não tarda, estão todos a olhar para nós.
Entregou-me a composição e escondeu um papel no bolso do meu casaco. Esperava tudo menos aquela reação. Apetecia-me gritar, correr pela escola toda. Sentia a emoção de quem está quase a começar uma viagem na montanha russa.
- Pedro, coloca os trabalhos em cima da minha mesa, por favor.
Assim fiz.
- Obrigado, podes sentar-te. Vamos ouvir poesia.
Alguns alunos queriam partilhar as poesias. Eu preferia ouvi-las. A minha imaginação trepava pelas palavras de mãos dadas em verso e fugia para mundos que só eu conhecia. Dessas viagens ficavam sempre alguns vestígios riscados ao acaso na minha mesa. Eram desenhos que nem eu sabia decifrar.
- Pedro, queres ler a tua? Sinto que hoje é um bom dia para nos revelares os teus sentimentos através da poesia.
O professor tinha percebido tudo!
- Professor, eu não fiz nenhuma poesia, não consegui escrever. Ainda tentei procurar uma interessante nos livros lá de casa, mas não gostei de nenhuma. Estão aqui. Pode ver.
Entreguei os textos perante os olhares dos meus colegas sedentos de consequências. O professor demorou pouco tempo a decidir.
-Lê este, por favor. A tua leitura deve revelar o sentimento que cada palavra esconde.
Procurei na sala os olhos de Catarina, que já me olhavam prontos para escutar. A emoção rebentou-me nos lábios.

Quando tu aqui chegas
E bates à minha porta
Eu abro um sorriso
E fecho-te comigo

Cai uma lágrima
Que te quer beijar
Brilha uma lágrima
Que te faz sorrir

Silêncio absoluto na sala. Senti-me bem. Antes de me sentar, perguntei:
- Professor, para a semana, posso entregar-lhe uma feita por mim?
O sorriso do professor afirmava que sim. Procurei estar atento para compreender a matéria, mas nunca tirei a mão do bolso do casaco. O que teria escrito a Catarina naquele papel?



5

A campainha rompeu pelo silêncio da sala. Tive a sensação de mergulhar em água fresca num dia de calor intenso.
Depois de intermináveis avisos, o professor autorizou a saída. Contudo, a Catarina fez todos os possíveis para evitar o meu olhar que a procurava como o íman que não larga o metal. Não percebi. Fugi para o corredor, guardando no meu bolso o tesouro de papel que ela me entregara. Sentia o meu corpo a rebentar de curiosidade. As pernas tremiam um pouco, pareciam ter vontade própria – a verdade é que tropecei várias vezes nas escadas até chegar ao exterior do bloco de aulas. Procurei de imediato um banco bem longe de todos os olhares. Queria saborear sozinho aquele momento. Não queria partilhar com mais ninguém as palavras de Catarina.

«Pedro, eu gosto de ti. Quando não vens à escola, ela parece um estádio depois de um grande jogo.
Mas não envies mais mensagens para o telemóvel da minha mãe. Já tenho de novo o meu.
A minha mãe leu a última que me enviaste. Foste longe demais, estragaste tudo! Ela exige que eu me afaste de ti.
Catarina.»

- Pedro, anda daí. Vem jogar futebol. Agora escondes-te atrás da escola!? – gritou o Bernardo que se aproximava a correr, ofegante, ao lado do António que também protestou:
- Estás parvo ou quê? Que é isso? Uma carta de amor? Mas tu ainda vives na idade das cavernas? Uma carta!?... Cá para mim, andas meio poeta ou então não tens saldo no telemóvel. Por falar em saldo, o João anda à tua procura.
O António falava e tentava a todo o custo espreitar o misterioso papel que eu, com cara de ponto de interrogação, dobrava para guardar novamente.
Nem sequer olhei os meus amigos. Levantei-me e explodi:
- Diz ao meu irmão que hoje não estou cá! Emigrei para a China! Diz-lhe que me perdi na floresta da Branca de Neve. E corri como quem leva o bilhete na mão e vê o autocarro partir. O António e o Bernardo encolheram os ombros e voltaram para o campo de jogos.
- Vê lá por onde andas! Pareces parvo, Pedro! - gritou a Teresa.
- Desculpa! Viste a Catarina?
- Não. E, mesmo que a tivesse visto, não te dizia!
- Bah! Que mau hálito!
Eu não parecia o mesmo. Estava agressivo, nervoso. Caminhava com o olhar fixo, brilhante, como se estivesse virado para dentro, concentrado nos pensamentos que se atacavam uns aos outros para ver qual deles encontrava a solução para o enigma que me atormentava.
- Que caroço! Agora que as coisas estavam a correr bem. Mas eu não lhe enviei mensagem nenhuma! Há mais de uma semana que não o faço!
E procurava o telemóvel ao longo do corpo com apalpadelas.
- Mas onde é que eu pus aquela coisa?
Lembrei-me de que o deixara na mochila que ainda estava no banco junto à porta da sala onde tivera Português.
Percorri as mensagens enviadas e não encontrei nada que pudesse aborrecer a mãe da Catarina. Eram todas sensatas, normais. Algo estranho, muito estranho tinha acontecido. Apesar de tudo, estava mais descansado. Sabia, tinha a certeza de que não tinha sido eu. Agora era necessário prová-lo.
A Catarina ainda estava à entrada da sala e viu todo o meu desespero. Quando a enfrentei, voltou-se repentinamente e fingiu conversar com a Beatriz. Aproximei-me:
- Catarina, eu não escrevi nada. Juro! Vê, podes ver, estão aqui todas as mensagens que te enviei.
- Espertinho! Claro que não está aí. Com certeza que já a apagaste!
- Mas eu…
Não adiantava. Precisava de ler a misteriosa mensagem que Catarina recebera e descobrir o seu autor. Só assim poderia reconquistá-la.



6

Após o jantar, procurei um sofá onde me acomodei de forma pouco convencional. O mais difícil era encontrar uma boa posição para as pernas que se perdiam no espaço o mais longe possível uma da outra. O meu pai protestava de imediato, lembrando-me que as outras pessoas também queriam sentar-se. Aquela afluência era pouco frequente. Era difícil estarmos todos à mesma hora na sala de estar: ou porque o meu pai tinha reuniões numa das muitas associações a que estava ligado, ou porque a minha mãe tinha trabalho para acabar em casa, ou porque eu tinha de estudar, ou, finalmente, porque o João ainda não tinha chegado do treino de basquete. O certo é que naquela noite estávamos todos ali e o sofá parecia pequeno, extraordinariamente pequeno.
A unir-nos um canal de notícias que ninguém observava ou ouvia e que desfiava desgraças atrás de desgraças. O João arrastava com o dedo as notícias partilhadas pelos amigos no facebook. A minha mãe procurava promoções num showroom qualquer e o meu pai passeava o olhar pelos mails no tablet. Eu arriscava mais uns metros para atingir o nível seguinte naquele percurso de carro acidentado e que nunca mais acabava, jogo que de vez em quando interrompia para responder às mensagens que iam chegando. Da Catarina nenhuma.
O meu avô Francisco estava connosco naquela noite. A minha mãe tinha-o acompanhado ao médico nesse dia à tarde e ficara para jantar. Quando entrou na sala, deu de caras com aquele cenário.
- Gosto de ver a família toda junta. Nos dias que correm, é cada vez mais difícil encontrarmos tempo para falarmos uns com os outros. O que vocês estão a ver aí nesses aparelhos? Alguém está a ver este programa? Muito bem, vejo que estão muito ocupados! João, o teste que o Pedro fez hoje correu bem? Sabes alguma coisa? João! – insistiu.
- O quê, avô? Que é que isso interessa? Se ele não disse nada é porque foi tudo normal.
- Mas já lhe perguntaste ao menos?
- Não, avô, não perguntei. Mas se quiseres eu pergunto.
- João, para com isso, não te dirijas assim ao teu avô.
A minha mãe falava ainda sem olhar ninguém como se aquilo fosse uma reação maquinal e obrigatória para aquele momento. O meu avô não desistiu do seu objetivo.
- Pergunta, João, eu gostava que falassem um pouco sobre o teste.
- Ó avô, porque não lhe perguntas tu?
- Porque assim somos três a falar em vez de dois o que me parece  muito melhor.
Não resisti a um sorriso e o João também não. O avô Francisco não pactuava com aquela forma de estar. Estranhava que, ali, todos juntos, ninguém falasse. Ou melhor, todos estavam suspensos numa rede que suportava o contacto à distância e impedia a relação com quem estava ao lado.
- Muito bem, ganhaste, avô. Pedro, como te correu o teste de Português? – o João dirigiu-me a palavra, enquanto guardava no bolso o telemóvel e eu fazia pause no jogo, na esperança de voltar em breve.
- Bem. Consegui responder a todas as perguntas. Falta saber se bem. Já o Eduardo…
- Estás a ver, avô, nada de novo! - cortou o João.
- O Eduardo… - forçou o meu avô, para calar o João. E fixou-me daquela maneira que não me deixava espaço para contornar o assunto, como se já tivesse antecipado todos os argumentos e os tivesse a todos rebatido sem contemplações. Era um olhar vitorioso e meigo na forma como o sorriso brincava nos lábios.
Disse-lhe novamente que o teste acontecera sem surpresas e que não esperava um resultado fora de série, como, aliás, era habitual. As questões de gramática continuavam a ser um mar agitado, uma floresta cheia de recantos desconhecidos que eu não queria explorar. Em relação ao Eduardo, não quis garantir as conclusões mais óbvias. Limitei-me a considerar estranhos os acontecimentos. Assim, o Eduardo não tinha feito o teste e o Xavier não respondera a praticamente nenhuma das questões colocadas.
O pedido do Eduardo e o comportamento do Xavier também deixaram algumas dúvidas ao meu irmão.
- Mas esses tipos candidatam-se a ir a exame com negativa. Quanto é que eles têm a matemática?
Respondi-lhe com um ligeiro encolher de ombros potenciado por um breve suspiro e pontuado com um sorriso irónico.
- Bem me parecia - continuou. - Mesmo que só tenham essas duas negativas, o que duvido, já não têm hipótese nenhuma de passar. Negativa a Português e a Matemática é chumbo certo. Não acredito que tenham classificação de quatro em qualquer um dos exames para conseguir nível final positivo. Há dois anos tive um colega que reprovou assim.
- Mas então o que há de estranho no comportamento dos teus colegas, Pedro? – perguntou o meu pai que puxava assim o assunto que mais o intrigava, sem tirar os olhos do ecrã onde lia os principais títulos das notícias.
- Pai, eu não posso garantir, não quero estar para aqui a inventar. É assim…
E a história renasceu parecendo cada vez mais séria e o meu pai disparou a primeira crítica fácil:
- Estes rapazes são do piorio. O que eles inventam. Coitados dos professores… Que é que tu achas disso?
- Disso o quê?
- Da fraude que os teus colegas queriam cometer.
Às vezes ficava irritado com aquela tendência para classificar a realidade de uma forma tão perentória. Era uma visão que não deixava espaço para outras possibilidades que eu gostava de admitir e, se possível, discutir. Eu gostava de mostrar o meu ponto de vista, de argumentar de forma divergente, facto que também desagradava ao meu pai. O meu avô continuava atento e parecia satisfeito com o rumo da conversa. Em breve, aquele tema ir-nos-ia arrancar a todos do silêncio e da prisão das redes sociais.




7

Faltavam alguns dias para o aniversário de Catarina. Nos intervalos e nas aulas não se falava de outra coisa. Todos ansiavam pelos convites que só ela sabia fazer. Mais do que lê-los, eu gostava de guardá-los. Na minha secretária, havia mesmo um lugar especial para todos os papéis que recebia de Catarina – o único local organizado do meu quarto! Ali escondia o testemunho de momentos importantíssimos, inesquecíveis. Cada bilhete era uma onda refrescante que vinha do passado.
Mas o último bilhete, ali, por cima dos outros, incomodava-me, parecia esconder todas aquelas ondas de amor. Andava preocupado, ansioso. Precisava de um bom plano para descobrir quem me tinha posto fora de jogo e recuperar novamente a confiança da Catarina.
- Então, Pedro, vais ao jantar no sábado?
- Não sei, Bernardo. A Catarina não me disse nada.
- Será que ela não vê que tu foste enganado? Que alguém te tramou?
- Calma, pessoal. Pode ser que a vassoura se vire contra o feiticeiro.
Eu soltei uma gargalhada. Só o António para me fazer rir.
- Que o feitiço se vire contra o feiticeiro - emendei.
- Ou isso. É a mesma coisa. Então vamos por partes. Eu e o Bernardo vamos a casa da Catarina no sábado. Durante a festa, procuramos o telemóvel que a professora emprestou à filha.
- E se ela dá conta? E se ele começa a tocar? - desconfiei.
- Bah! Nem pareces o mesmo, Pedro.
O Bernardo estava habituado à minha maneira de ser descontraída e confiante, por isso não entendia aquele receio.
- O telemóvel da senhora é um smart da última geração. Não te preocupes. Tenho um igual.
- É isso! Já sei! Não vai ser preciso nada disso. Durante o jantar, pedimos à professora para nos deixar telefonar aos nossos pais. Nessa altura, observamos as mensagens recebidas - propôs o António.
- E eu posso estar escondido ali perto - acrescentei.
- Está combinado.
E enlaçamos as mãos num interminável cumprimento.



8

O sábado chegou.
À hora de jantar, aproximei-me dos muros da casa da Catarina. Eram altos, impediam qualquer olhar mais curioso. Escondiam uma casa lindíssima, recuperada de forma meticulosa. O portão abria para um pátio de pedra limpa e fresca, limitado por canteiros cuja relva estava sempre aparada. Mais ao fundo, alguns arbustos e árvores de fruto marcavam o início dos campos de cultivo.
Sentei-me numa pedra ali perto, pronto para agir, mal o António e o Bernardo aparecessem com o telemóvel.
Dali podia ver os convidados. Chegavam quase todos no carro dos pais. Reparei como só alguns se despediam convenientemente. Outros, antes mesmo de o carro parar, já tinham a porta aberta e, sem um olhar sequer, saíam, batendo a porta indelicadamente.
Também a Teresa saiu disparada do carro. A mãe ainda a perseguiu com uma pergunta que ela não ouviu ou não quis ouvir. De longe, voltou-se para o carro da mãe e apontou para o telemóvel. Talvez lhe quisesse dizer que depois telefonaria.
O que se passaria lá dentro? Os meus amigos já tardavam em aparecer. Será que se tinham esquecido? Já sabia que o António tinha a mania das conquistas. Gostava de conhecer todas novidades. E as amigas da Catarina estavam especialmente sedutoras: rostos tratados, olhos brilhantes, cabelos soltos, roupa informal mas cuidada. Um encanto! Aproximei-me do portão e consegui ver o Bernardo a tentar desviá-lo para a missão combinada, mas ele não resistiu a meter conversa com a primeira que lhe apareceu:
- Então, não nos encontrámos já na escola!
Perante o espanto da rapariga, ele avançou sem medo:
- Pois, às tantas estou a confundir-te com alguma amiga minha, mas não pode ser, pois não tenho nenhuma assim tão especial, tão interessante!
Ela corou e tentou avançar para se juntar às amigas que se encontravam no extremo oposto do jardim.
- Então, vais deixar-me aqui sem ao menos me dizer o teu nome, telefone, morada, a tua idade?
Ela sorriu.
            - Ok, então só o nome dos teus pais… Além disso, tens namorado?
            Afastou-se sem lhe dizer nada.
            - Só mais uma coisa: como manténs esse corpinho e esse sorriso tão lindos?!
Então, ela voltou-se e, depois de um sorriso, chamou-o com a mão. O Bernardo estava branco. O António aproximou-se. Ela agarrou-lhe a mão e, na palma, escreveu o número do seu telemóvel, soltando apenas uma frase que o deixou suspenso numa corda a cem metros de altura:
            - Eu vou estar por aí.
            Não conseguiu mais do que segui-la com o olhar completamente hipnotizado.
            - Tó, o Pedro está à nossa espera! Já te esqueceste?!
            - Nada disso, Bernardo, é que por momentos entrei em hibernação, ou melhor, estas miúdas deixam-me a ferver! Bom, vamos a isso. Telemóvel, encontrar telemóvel.
            Foi fácil.
            - Vamos pedir à mãe da Catarina para fazer uma chamada - lembrou o Bernardo.
            - É melhor não. Ela desconfiaria. Então, com tantos amigos aqui em casa, não tem sentido pedir-lho. Think, my friend, think. Vamos levá-lo já ao Pedro. E saíram a correr.



9

- Cá está, mensagens, Catarina, António… O que é que está aqui a fazer uma mensagem tua, Tó?!
- Não é minha, parvo, é do pai da Catarina, do Dr. António! Olha aí, Pedro, essa é tua, abre-a!
Abri como quem abre um exame nacional ou mesmo um presente inesperado.


“Catarina, adorei passar contigo aquela noite! Foi fantástico. Temos de repetir…"


- Quem foi que escreveu isto? Se eu o apanho, desfaço-o.
- Vontade não te faltava de… - atreveu-se o Tó com ar sugestivo.
- Não tenhas dúvidas, dava cabo dele!
- Não, Pedro, vontade não te faltava de passar uma noite assim com a Catarina! - riu-se o António, colocando-se logo em posição de defesa.
- Não sejas palerma! É claro que sim, quer dizer, não… Já nem sei o que digo. Deixa cá ver mais.
E fui vendo todas as mensagens. Uma a uma, com a respiração suspensa.
- Não há mais nenhuma que me comprometa. Deixa-me ver novamente: foi enviada do meu telemóvel às dez horas e dois minutos de segunda-feira. Incrível! Hei de apanhar-te, palhaço, não tarda nada! Bom, já podem levar o telemóvel. Voltem lá para junto das miúdas. Amanhã conto convosco na escola.



10

A noite caíra como uma tenda que convida e ligar uma lanterna que faz surgir do escuro uma narrativa tentadora. Espalhei o corpo na cama e deixei o pensamento voar por cada pedaço dos últimos dias que analisei como quem procura respostas em todos os pormenores. Reli vezes sem conta o ultimato de Catarina. Lembrei cada palavra que ela tinha recebido no telemóvel, esperando uma pista, um indício que provasse a minha inocência. Imaginei a reação da mãe e a péssima reputação que eu passei a ter junto da família dela. As imagens faziam fila à porta da minha imaginação, acentuando o meu desespero, a minha pequenez. Patience dos Guns N' Roses invadia os meus ouvidos e acentuava a minha tristeza que se revia na desarrumação que me cercava.
Olhei o João que dormia numa ilha onde cada objeto tinha um lugar determinado. A mochila pronta para o dia seguinte, a roupa para vestir preparada ao fundo da cama. A secretária nunca tinha lápis espalhados ou livros abertos sobre o teclado, as folhas nunca se empilhavam de qualquer maneira, desejando a sorte de um dia serem encontradas. Invejava a felicidade organizada do meu irmão. Reconhecia a paciência que tinha comigo, pois partilhava o quarto com um ser que não percebia a necessidade das coisas no seu devido lugar. Culpabilizei-me, pois sabia que tinha sido devido àquela forma de estar que eu tinha dado oportunidade a alguém para usar o meu telemóvel. Deixava sempre as minhas coisas em qualquer lado e de qualquer maneira.
- João, acorda, preciso de falar contigo.
Era difícil arrancar o meu irmão do sono que àquela hora o afastava do meu desespero, do meu mundo. A custo lançou uma braçada aborrecida para fora dos cobertores que o tapavam quase por completo. Procurou as horas no rádio que o acordava todas as manhãs e voltou a encarar a almofada como se tudo não passasse de um sonho de que nunca tinha saído.
- João, não consigo dormir. Preciso de falar contigo.
Desta vez, soletrou algumas palavras que a almofada teimava em sufocar.
- Procura na minha secretária. Tenho lá as coisas do nono ano.
- Não sejas parvo, não preciso de nada disso. Acorda!
- Vá, conta lá! O que foi desta vez? Mais uma negativa no teste de Matemática e não sabes como contar aos pais?
- Fala baixo, ainda acordas toda a gente! Não é nada disso. Escuta. É por causa da Catarina!
- Mau, a miúda tem de ter uma paciência contigo! Esqueceste-te outra vez de ir ter com ela no intervalo? Já sei, não te lembraste da data do primeiro beijo.
O João deixava-me louco com estas ideias a rebentar de gozo. Não perdia oportunidade nenhuma para me mostrar o quanto podia sofrer por causa da minha distração e desorganização.
- Cala-te e escuta, por favor!
- Quer dizer, acordas-me a meio da noite e estás à espera que eu fique bem-disposto e pronto para aturar as tuas paranoias.
- Não são paranoias! Escuta: a Catarina recebeu uma mensagem no telemóvel. É uma história que só podia acontecer comigo... Enfim, andou com o telemóvel da mãe uns dias porque o dela tinha avariado. Na terça-feira, entregou-me um bilhete a dizer que eu tinha de me afastar dela porque a última mensagem que supostamente lhe tinha enviado fora lida pela mãe que já tinha o telemóvel de volta; uma trapalhada! Ontem, não fui ao aniversário da Catarina mas o António e o Bernardo estiveram lá e conseguiram trazer-me o telemóvel para eu ver a mensagem que tanto aborreceu a senhora. Conclusão: alguém usou o meu telemóvel para lhe enviar a mensagem que imediatamente eliminou da caixa das enviadas.
- Que bronca! E o que dizias na mensagem?
- Já te disse que não fui eu!
- Sim, avança!
- Nem imaginas, foi mesmo para me queimar junto dos pais da Catarina! O tipo afirma em meu nome que eu e a Catarina passamos uma noite juntos.
- Como é que sabes que foi um tipo?! Pode muito bem ter sido uma colega tua – contrapôs, sentando-se e ajeitando a almofada.
- Pois...
- Outra coisa: a Catarina sabe que essa noite não existiu e que, no mínimo, tu estás a mentir ou alguém estará a fazê-lo por ti. Será que ela não pensou nisso?
- Talvez tenha pensado que eu fiz aquilo por brincadeira. O pior foi a mãe ter lido a mensagem. A Catarina ficou sem argumentos. Além disso, eu sei que ela passou uma noite em casa da Beatriz na semana passada e a mãe pode ter tirado conclusões erradas.
- Eu acho que a Catarina tem uma boa relação com os pais. Penso que não esconde da mãe as coisas importantes da vida dela.
- Eu sei, João. O problema sou eu: passei por estúpido. Mesmo não tendo existido noite nenhuma, não me livro de ter pensado nela, de ter insinuado coisas parvas. De passar por fanfarrão!
- Tens é de dormir. Mais tarde ou mais cedo, descobrirás a solução deste enigma. Para além da Catarina, há mais alguém interessado em ti? Pensa nisso. Agora, vou dormir, por isso, não me chateies. Outra coisa, não faltam é miúdas giras. Vá, apaga a luz.
E deitou-se, deixando-me abandonado e cercado pelos pensamentos. A cama aguentou serenamente os socos que derramaram a minha fúria. Quem teria interesse nesta situação?




11


            O sono teimava. Resistia. A escuridão e o silêncio que me cercavam não me acalmavam. Procurei o telemóvel para ver as horas e para ter algo que me ocupasse o pensamento. Lembrei-me de que o tinha deixado a carregar na cozinha junto à torradeira. Instintivamente, os meus pés procuraram os chinelos e facilmente se entenderam. Ao descer as escadas, percebi que os meus pais estavam ainda na sala e conversavam a meia voz. Parei a meio, discretamente, o meu nome fora motivo suficiente.
            - Madalena, isso não faz sentido nenhum. O Pedro não é rapaz para essas confusões! E ele tem namorada?! Não me tinhas dito!
            - Tem uma amiga especial. É a filha da Eduarda e do António.
            - Parece-me bem, isso até é bom porque poderá ficar mais ajuizado, mais concentrado. As raparigas parecem-me sempre mais trabalhadoras, mais maduras.
            - Achas?! Eu cada vez me surpreendo mais com a mentalidade destes miúdos. Parece que ruiu tudo à volta deles, que anularam todas as referências, percebes? Para mim as referências são valores, são como faróis que orientam. No entanto, eles acham que são a medida de todas as coisas. O problema é que também os adultos que nós conhecemos não se distinguem deles; tudo é relativo, tudo se resume à forma como cada um vê e entende as coisas. Assim, no limite, é impossível, sequer chamá-los à atenção.
            - Não exageres! Não percebo o que é que isso tem a ver com o Pedro ou com o João.
            -Vicente, tu disseste que as raparigas são mais maduras, mas eu não acredito em nada disso. O ambiente na escola é cada vez mais estranho. E não penses que elas são mais recatadas. A Andreia e a Isabel contam-me histórias incríveis que se passam lá na escola onde dão aulas! A forma como os alunos encaram o conhecimento e os professores é alarmante! Há mesmo casos de violência! Por isso, falava em referências. Estes miúdos não têm família, não têm professores… Enfim, são canas agitadas pelo vento!
            - Continuo a dizer que estás a exagerar. Sempre foi assim. Já te esqueceste de como fomos com a idade deles? Também nos baldávamos a certas aulas, também criticávamos alguns professores. Também dávamos cabo da cabeça aos nossos pais, enfim, nada de novo.
            - Sim, mas não te esqueças que determinados valores mantinham o seu lugar e eram inquestionáveis.
            - Sim, concordo, o silêncio, a disciplina, o sacrifício estão hoje mais débeis. Mas continuo a defender que estes jovens são formidáveis e repletos de valores. Podem é não ser aqueles que nós queremos a toda a força. Sei lá, a respeito dos professores, o que tenho ouvido dizer é que já não interessa tanto o professor que é uma barra em conhecimentos mas aquele que orienta os alunos na construção do conhecimento. A informação está hoje de tal maneira disseminada e disponível que, por vezes, basta mostrar o caminho aos alunos. Mas isto levar-nos-ia muito longe... Não queres ir buscar cereais para nós. Quero com maçã aos pedacinhos.
            - Hoje é a tua vez - protestou a minha mãe. - E então o que achas que devo fazer com o Pedro? Falo com ele sobre a mensagem e da conversa que tive com a Eduarda?
            - Claro! Faz isso.
Uma carícia na orelha e um sorriso maroto foram suficientes para me sentir a mais. Desci as escadas que faltavam.
            - Vou buscar o telemóvel - falei sem os olhar, enquanto caminhava.
            - Vai descansar, Pedro. Já é muito tarde.
Aquela conversa ocupou-me mais algum tempo. Senti um misto de preocupação e alívio. Aquela confusão já tinha chegado ao conhecimento dos meus pais mas isso deixava-me mais aconchegado, mais protegido.
Não tardei a adormecer.




12

A manhã acordou-me como se não tivesse havido noite. O João já tinha saído do quarto. Encontrámo-nos para tomar o pequeno-almoço. A minha mãe estranhou a minha figura.
- Bom dia, Pedro. Dormiste bem?
- Não gozes comigo, mãe. Podemos ir para a escola. Não me apetece nada.
- Nem penses. Vais tomar o pequeno-almoço e logo conversamos seriamente. Quero saber o que se passa contigo. Nos últimos dias tens andado muito instável. E isso é mau para todos, inclusive para ti que, com certeza, não te concentras nas aulas e nos trabalhos.
Não respondi à minha mãe. Não sairia vivo daquele combate. Ela tinha todos os argumentos do lado dela. Os professores iam dando informações sobre o meu aproveitamento e as coisas não andavam muito famosas. Além disso, com a confusão gerada pela mensagem, o castigo seria duro. Provavelmente, teria de abandonar o futebol. Só o meu pai poderia impedi-lo, porque adorava futebol e a minha mãe não aguentava aquele olhar profundo e calmo que ele lhe lançava, quando queria conquistá-la e convencê-la. O sorriso do meu pai aplacava qualquer tempestade lá em casa. Admirava a forma como se entendiam.
Não soltei uma palavra até à escola.
As árvores despidas soltavam os braços, que procuravam Sol que os acolhia numa harmonia impensável, embalados pelo leve vento que os percorria. Parados no semáforo, assistia a pequenas encenações que o tempo permitia. Havia um monólogo no olhar perdido daquela senhora que esperava pelo verde do semáforo. Que música ouviria ela? No carro da frente, um homem aguardava, balançando a cabeça num ritmo que me parecia binário, batendo com as mãos como se à sua frente de repente surgisse o mais afinado instrumento de percussão. Não evitei um sorriso.
Paramos em frente ao portão da escola.
- Até logo. Pedro, hoje, venho buscar-te mais cedo. Vamos lanchar e conversar um pouco.
Era naqueles momentos que desejava uma mãe um pouquinho mais distraída e ocupada. Já não tinha escapatória. Mas era melhor assim. Os problemas partilhados tornam-se mais leves e resolvem-se com mais facilidade. Eu sabia disso. Mas havia zonas da minha vida onde a minha mãe já não entrava há algum tempo. Era um mundo onde pairavam os meus sonhos, as minhas paixões, as minhas dúvidas, as minhas convicções que, em parte, partilhava com a Catarina.
- Olá, Pedro, está tudo bem contigo? Ultimamente, não vês ninguém. Sabes ao menos que aula vais ter?
Era a Teresa. Sempre interessada em saber para ser a primeira a contar.
- Vamos ter EV, na sala 23 do bloco A. Importas-te?
E deixei-a com um dos braços suspenso e preparado para acompanhar a melodia de uma nova pergunta prestes a invadir o meu espaço. Ainda disparou:
- Não percebo este tipo! Uma pessoa a querer ajudar e só recebe indiferença. Ainda bem que a Catarina te encostou.
Já toda a escola sabia! Avancei sem receio para a sala de aula. Como iria reagir quando visse a Catarina? E ela continuaria a evitar-me?
De repente, uma dedução invadiu o meu pensamento: quem tinha enviado a mensagem sabia que o telemóvel não era da Catarina e que, naquele momento, quem a receberia já não seria ela. Além disso, teria de conhecer o número da mãe da Catarina.



13

O António já me aguardava numa mesa do bar. Recebeu-me com um enorme sorriso, cedendo-me a cadeira onde repousava os pés que ostentavam uns ténis desgovernados, mas que pareciam a peça fundamental do seu guarda-roupa. Por ali se via o seu estilo descomprometido, despreocupado, "tá-se bem", que tanto me agradava.
- Então? Não dormiste?!
- Pouco.
- Deixa-me adivinhar, a Catarina não te sai da cabeça!
- Não consigo deixar de pensar naquela cena.
- Eu já reparei. Ontem não acertaste um passe no jogo. Acho que o mister não te vai convocar para o próximo. Tens de reagir, Pedro. Uma miúda não pode ser o centro do teu mundo!
O António sabia que o futebol poderia ser uma boa estratégia para me resgatar daquela desistência geral. Era ali que eu sentia o brilho da vitória e da conquista. Era ali que eu era aplaudido e valorizado. A escola, para além dos amigos, tornara-se uma responsabilidade assustadora que me deixava desiludido a cada resultado que me chegava às mãos.
- Não digas nada, Tó. As coisas para o meu lado não estão nos melhores dias. Até a minha mãe já percebeu que eu ando estranho e além disso os resultados dos testes têm sido mais baixos.
- Mas não são negativos, tem calma. Facilmente recuperas.
- Tu sabes que os meus pais têm expectativas muito altas. E, se não conseguir níveis elevados, não posso entrar na escola secundária que eles querem. E eu não quero desiludi-los! Só que não consigo concentrar-me, acho tudo uma seca!
- A quem o dizes! Eu nem sei se posso pensar na escola secundária. Por este andar, chego ao fim do ano com uma carrada de negas.
- Os teus pais sabem disso?
- O meu pai tem estado na China. A minha mãe passa o dia no escritório, só me vem buscar ao fim do dia e tem sempre muito que fazer em casa. Quase não falamos. Só vai descobrir se o dt resolver chamá-la à escola. Aí temos problemas. Nem quero pensar nisso.
- A minha quer falar comigo hoje. Vem buscar-me mais cedo para lancharmos… Nem sei por onde começar.
- As nossas mães têm sempre ideias que nos ajudam a ver os problemas de outra forma. Às vezes, aquilo que nos parece o fim do mundo é antes uma oportunidade a nosso favor. Lembras-te da minha nega a História no ano passado? Eu pensava que os meus pais me iam pôr de castigo, sem futebol, sem computador, sem telemóvel, sem festas de amigos. Mas não. Falei com eles e não aconteceu nada do que eu pensava. Mostraram-me que o meu estudo tinha sido insuficiente e mal feito e que me iriam ajudar a estudar para o teste seguinte. Dito e feito. Consegui uma nota interessante. Pena que não possam estudar sempre comigo. O meu pai fora, a minha mãe sem tempo e eu sem vontade, vê no que está a dar! Por isso, acho que deves ter uma conversa aberta com a tua mãe.
- Obrigado, Tó. Vou fazer isso. Tenho a certeza de que me vai compreender. Olha, logo não vou ao treino. Fala com o mister, diz-lhe que tenho de resolver uns assuntos da escola e que depois justifico pessoalmente a falta.



14

A Catarina estava sentada no banco junto à sala de aula. Apoiava o rosto nas mãos, olhando fixamente uma das tijoleiras que a cercavam. Percorria-as, procurando uma saída daquele labirinto. De repente, tudo se complicava. Sentia-se num elevador avariado. Ali tudo era apertado, sem luz, sem saída. A Beatriz abraçava-a, paciente e calada, enquanto procurava no rosto de quem passava as soluções que já não tinha. Era necessário ir para a aula mas a amiga não queria. Não queria ir à aula de Português. Sabia que eu iria ler uma poesia. Acreditava que eu falaria do meu sofrimento e ela não queria enfrentar essa situação.
- De certeza que ele se esqueceu de fazer a poesia. Aliás, quem te garante que serás tu o motivo do poema que o Pedro vai ler?
A Beatriz tentava encontrar uma fragilidade na convicção de Catarina.
- Tu não conheces o Pedro! Ele vai fazer tudo para provar que está inocente e que gosta de mim!
- Há uma coisa que eu ainda não percebi. Tu achas que foi o Pedro que mandou aquela mensagem? Acho que nem tu acreditas nessa história.
- Não sei, Bea! Quer dizer, eu sei que nós não passamos nenhuma noite juntos! O problema é que na semana passada eu fiquei em tua casa e a minha mãe pode tirar conclusões erradas, percebes?! Além disso não entendo a ideia do Pedro. O que é que ele ganhava com aquela brincadeira? Será que ele me queria dizer alguma coisa de forma indireta? Nós tínhamos tanta abertura que não vejo razão para não mo ter dito diretamente.
- O que eu acho é que tens de falar com ele. Acabas com este sofrimento e ainda podes resolver a questão. Os dois a pensar em conjunto... O que estás a ver?
Entretanto, a Catarina vagueava no Iphone, procurava as últimas mensagens do Pedro. Brincava com os textos que deslocava, ampliava, diminuía, sem prestar atenção a nenhum em particular. A Beatriz não podia deixar de ler algumas delas.
- Olha, recebeste esta quando estavas em minha casa, lembras-te?
- Diz?! - pediu sem tirar os olhos do texto que, na verdade, não lia.
- Recebeste esta mensagem, quando estavas em minha casa!
- Eu sei. É um querido!
A Beatriz tentou outro assunto:
- A Teresa já te enviou a parte dela do trabalho de Físico-Química?
- Acho que não. Ainda não falei com ela desde que estivemos em tua casa. Só a vejo nas aulas. Nos intervalos, não faço ideia onde se mete.
- Também não estás à espera que ela ande atrás de ti e do Pedro feita vela. Tipo eu!
- Não digas disparates. Sabes muito bem que tu és a minha melhor amiga. E nestas alturas é muito bom ter alguém com quem falar.
- Vamos para a aula, está na hora, o professor já passou.
A Beatriz levantou-se e com ela a Catarina que caminhava lentamente, permitindo que, entre cada passo, o seu pensamento voasse em direção à noite em que estivera com a Teresa em casa da Beatriz.



15

A minha mãe já estava à minha espera. Falava ao telefone que desligou, logo que entrei no carro, depois de ter abandonado a mochila na mala. Sentei-me calado, olhando em frente, sem saber se havia de beijar a minha mãe, como sempre fazia. Havia em mim uma resistência que nem eu conseguia perceber. Era talvez uma vergonha que em mim se instalara. Algo me dizia que era um gesto infantil que me tornava uma espécie de menino da mamã, imagem que eu queria evitar.
- Correu tudo bem?
- Ahah… - respondi, evitando qualquer palavra que orientasse o sermão da minha mãe.
- Vamos a casa dos teus avós.
- Mas não querias falar comigo?
- Sim, Pedro. Mas o avô Francisco precisa que passe lá por casa.
- Está tudo bem com o avô?
- Não sei. Pareceu-me muito abatido esta manhã. Estava com uma voz fraca. Não percebi muito bem o que me queria dizer.
Receei que o meu avô Francisco não estivesse bem. Por momentos, revisitei muitas das memórias que construí com ele. Revi as suas mãos fortes, os seus olhos azuis, húmidos. A sua cabeça que sempre tremia por entre palavras demoradas e sábias. Esperava-me quase sempre na sala, no seu sofá preferido, rodeado de objetos que o aconchegavam e apaziguavam. Observei, vezes sem conta, a fotografia do casamento dos meus pais. A fotografia do meu irmão João ao meu lado, ainda bem pequenos, na praia. A fotografia da minha Avó Rosa sorridente comigo ao colo. A estante lá estava sempre igual, agarrada aos livros que lhe davam sentido, alinhados, raramente folheados. Adorava aquele canto que de alguma forma contava o meu passado, raízes que se agarravam ao tempo.
- Achas que está outra vez com aquelas crises, tipo, não sabe onde está, não sabe o meu nome nem o teu?
- Talvez... E tu tens andado bem nas aulas? A diretora de turma comunicou-me que andas muito distraído, isolado nos intervalos, algo agressivo até com os teus colegas.
- A dt também falou comigo. Penso que está a exagerar, não se passa nada. Tenho é de estudar mais para os testes.
- Está tudo bem com a Catarina?
- Porque perguntas isso? Não estou a perceber?
- Notei que não te acompanhou hoje até ao portão da escola.
-Acho que teve de fazer um trabalho com a Beatriz.
- O João disse-me que tu andas a dormir mal.
- Oh, mãe, por favor, o João dorme profundamente toda a noite, como é que ele pode dizer isso?
- Tu não voltaste a jogar pela noite dentro com o Tó e com o Bernardo, pois não?
- Outra vez essa conversa, mãe. Sabes perfeitamente que já não jogo com os meus amigos.
A minha mãe estava a explorar as pistas todas e a analisá-las enquanto conduzia. Os olhos mantinham o carro na estrada mas o pensamento analisava cada palavra que eu dizia. Ao contrário do que era habitual, não me olhava de forma intermitente, enquanto falava e conduzia. Por isso eu sabia que não tardaria a fechar o cerco e a deixar-me sem saída.
- Na semana passada, encontrei a mãe da Catarina. Falamos sobre várias coisas e fiquei muito preocupada com a história da mensagem que supostamente enviaste.
- Mãe, por favor, tu não acreditas nessa história. É a coisa mais estúpida que já me aconteceu!
- Ouve, Pedro, nós achamos que há aqui uma confusão qualquer. Estivemos a ler a mensagem e não vemos possibilidade de vocês estarem a mentir. Nos últimos tempos, tu não tens passado nenhuma noite fora de casa. Além disso, no dia em que a Catarina esteve em casa da Beatriz, tu não saíste.
- Claro! Isto é tudo uma estupidez! Se eu apanho o engraçadinho, nem sei o que lhe faço.
- Algum dos teus colegas sabia que o telefone que a Catarina usou na semana passada era da mãe dela?
- Não sei, nunca pensei nisso. Talvez a Beatriz e a Teresa. Porque perguntas?
- Deixa lá, deve ter sido uma brincadeira de mau gosto.
- E, então, ainda estou proibido de estar com a Catarina?
- Acho que não. Mas a Catarina e a mãe ainda têm de conversar primeiro. Espera que ela te dê notícias.
Chegamos. Vamos ver o avô Francisco.



16

Sexta à noite. A Beatriz tinha convidado a Catarina e a Teresa para dormirem em casa dela. O trabalho de Francês seria o pretexto para mais uma longa conversa. Tinham de confecionar o "Tronco de Natal", designação que a Catarina considerava horrível, já que preferia a versão francesa Bûche de Noël. Aquela noite seria perfeita para pensarem nos ingredientes e na forma a dar ao bolo. Viviam o conforto macio de um fim de tarde que antecede o fim de semana, a sensação brilhante de fazer o que lhes apetecia e a expectativa de estarem juntas longas horas, sem horários limitadores. Sondavam os smartphones sem objetivo aparente.
A viagem de carro decorria num silêncio sorridente que as unia.
- O que é querem jantar? - quis saber a Beatriz.
- Não sei. Não me apetece nada em especial - respondeu a Catarina, sem tirar os olhos das árvores que permaneciam firmes sob aquela chuva fininha que bailava entre os ramos.
- E se fosse uma piza, assim, de tamanho familiar! – a Teresa abria muito os olhos enquanto desenhava com as mãos o perímetro exagerado da piza. - Já não como há muito tempo, vá lá, pode ser?
Concordaram. Nessa altura, a Beatriz aproximou-se da Catarina e perguntou-lhe de forma discreta se a mãe já sabia da nossa relação.
- Mais ou menos, ela não é parva. Passo montes de tempo a falar pelo telemóvel, no Face, no Insta… Há dias entrou no meu quarto e resolveu perguntar quem era meu amigo com quem passava tanto tempo a conversar. Não tive hipótese de lhe continuar a esconder.
- E ela reagiu bem? - perguntou a Teresa.
- Acho que sim. Pediu-me para ter cuidado com as aulas, com os trabalhos e com mais um montão de coisas. Sabes como são as mães!
- Mas ela já conhecia o Pedro e a mãe dele, não? - continuou a Teresa.
- Sim. A mãe do Pedro costuma trocar impressões com a minha sobre as disciplinas e os professores.
- Ui, já estou a imaginá-las: o meu filho é muito inteligente mas não gosta nada de estudar. A minha filha é muito organizada, muito metódica. Espero que não mude, mas nestas idades nunca se sabe... - a Teresa não perdia a oportunidade para estas intervenções que deixavam as amigas furiosas. - Mas o meu filho já sabe, se baixar as notas, sai do futebol! A Catarina deixa o ténis e, se necessário, meto-a em explicações!
- Acaba com isso, Teresa! – insurgiu-se a Catarina.
O carro parou em frente ao portão que se abria lentamente cortando a chuva que, naquele momento caía de forma intensa, inundando o jardim que ali principiava e acompanhava a calçada que conduzia ao alpendre onde se abrigava o carro.
Dois edifícios antigos rigorosamente recuperados erguiam-se cercados por cedros que quase os escondiam. Os jardins eram limitados, junto ao muro e ao alpendre que acompanhava a fachada principal da casa, por camélias que em dezembro se atreviam a florir. De um lado da calçada, uma oliveira, alinhada com uma tília, um pinheiro e um liquidâmbar levantavam-se do chão ocupando com vigor e beleza o espaço disponível. Do outro, abundavam plantas aromáticas. Entre elas reinava um azevinho viçoso que competia em altura com um limonete.
- Fiquem à vontade. Se precisarem de mim, é só chamar. Estou na lavandaria.
- Jantas connosco, mãe?
- Não. Vou estender uma máquina de roupa e, quando o teu pai chegar, preparo alguma coisa para nós. Não te preocupes, Beatriz.
A Teresa não resistiu:
- Vocês já não têm empregada?
- Temos, mas menos horas por semana, faz apenas limpeza. A minha mãe trata das roupas - explicou a Beatriz sem rodeios. - As coisas andam um pouco complicadas. Os meus pais queixam-se dos impostos e da insegurança no trabalho. Neste momento, sou eu que passo a minha roupa a ferro.
- Ó Catarina, o telemóvel com que tens andado não é teu pois não? - interrompeu a Teresa.
- Não, é da minha mãe. Estou a ver se encontro um usado. Penso que amanhã vou ter um que era do meu tio José. Ele já não precisa dele e o meu pai quer comprar-lho. Enfim, é melhor do que não ter nenhum. A minha mãe já se anda a passar por eu querer andar com o dela.
- Vais fazer festa de aniversário e convidar o pessoal da turma? - quis saber a Beatriz.
- Acho que sim. Na segunda, digo alguma coisa. Tenho de falar sobre isso com os meus pais.
O aniversário de uma das amigas era sempre uma oportunidade para estarem juntas. Além disso, tanto a Beatriz como a Teresa queriam muito que os meus amigos fossem também.
- Achas que o Tó e o Bernardo podem vir? – continuou a Beatriz.
- E o Pedro, vais convidar o Pedro, não vais? – perguntou a Teresa, descontroladamente.
- Não sei se eles podem vir. Se tiverem jogo nesse dia, vai ser complicado. Eu depois falo com eles. Acho que eles vão ficar tolinhos com as minhas amigas do ténis, a Joana e a Andreia.
A Beatriz e a Teresa não gostaram muito desta última ideia. Aquelas miúdas eram concorrentes com elevado potencial. Facilmente deixavam os rapazes desorientados, acotovelando-se à sua passagem, sem palavras capazes. Apenas lançavam olhares e algumas interjeições que manifestavam de forma bruta o que sentiam. Mas não deixava de ser muito divertido.
17

- Olá, avô! Boa tarde.
- Vem cá, João, dá um beijo ao teu avô.
Eu já sabia que o avô Francisco vivia com perdas de memória e não nos reconhecia com facilidade.
- Não é o João, avô, é o Pedro. Então como tens passado?
- Muito mal, sempre muito só. Ninguém me vem visitar. Já ninguém quer saber de mim!
- Ó pai, não diga isso. O pai tem sempre cá em casa a Emília, nunca está só. E, sempre que é preciso, eu estou presente. Então, vá lá, diga-me o que fez esta manhã?
- Esta manhã... O Pedro está um homem! Chega-te cá, meu rapaz. Então a escola, as notas são boas? Não percas esta oportunidade. No meu tempo, só alguns tinham o privilégio de ir à escola. Ainda hoje de manhã tive de apanhar o comboio. Estava um frio medonho. A chuva penetrava até aos ossos. Quando cheguei ao comboio, já estava todo molhado. Foi uma tristeza, nem lanche tinha. Quando voltei ao almoço, estava com uma larica. A minha mãe já tinha a sopita quentinha. Aquilo é que me soube! Ó Madalena, a minha mãe não morreu, pois não?
A minha mãe ouvia vezes sem conta esta pergunta. No início, custava-lhe a resposta mas agora já não estranhava e respondia com serenidade.
- Já, pai, já faleceu há uns anos. O pai tem oitenta e dois anos e já lá vai o tempo em que ia à escola. Quem agora vai à escola são os seus netos. Hoje escreveu alguns versos? Quer que o Pedro os passe no computador?
- Não, não me apeteceu. Mas vou compor um poema para a tua mãe que faz anos este mês. Se o Pedro mo puder passar e tirar cópias para toda a gente...
A minha reação mereceu a desaprovação pronta da minha mãe que adiantou a resposta que eu não queria dar:
- Claro, pai, o Pedro não se importa.
Eu ia dizer que o João tinha mais jeito e tempo para aquela tarefa mas calei-me. Com um lenço limpei suavemente a saliva que percorria o queixo sulcado do meu avô sem que ele desse conta. E, naquele momento, senti-me grande, enorme. O olhar do meu avô procurava o meu e lentamente abria um brilho sorridente e agradecido.
- Tu não andas bem, pois não, Pedro? Pareces preocupado com alguma coisa.
- Porque que é que dizes isso, avô?
- São os teus olhos muito irrequietos, olhas muito para o chão.
- Não é nada, uma pequena confusão. Um engraçadinho tentou encravar-me, tramar-me com uma mensagem que eu nunca escrevi.
- Sei... Olha lá, eu até gosto de passear e, quando era mais novo, andava horas pelos campos. Adorava colocar nassas, que eu mesmo fazia com vergas. Depois era só esperar que os melros não resistissem à tentação de uma pequena minhoca que lá deixava presa. Porque não fazes o mesmo?
A minha mãe regressava nessa altura à sala de estar.
- Pai, nós já vamos. Daqui a pouco a Emília traz o jantar. Coma tudo, está a ouvir? Beijo. Até amanhã.
- Está bem. Ó Madalena, tens de ensinar o teu filho a fazer uma nassa, ainda te lembras?
- Não, pai. Pronto, fique bem, até amanhã.
Entramos no carro para regressar a casa e eu não deixava de pensar nas palavras do avô Francisco. O que queria ele dizer com aquilo?
- Mãe, o que é uma nassa?
- Acho que é uma armadilha. O teu avô adorava caçar pássaros com elas. Era uma armadilha feita de verga em forma de pirâmide.
Acho que tinha entendido o conselho do meu avô.



18

A segunda-feira chegara depressa demais. Assim pensava a Catarina enquanto se dirigia para a escola, indiferente ao programa que a mãe sintonizava. Apoiava a cabeça na mão direita enquanto explorava com a outra o funcionamento do telemóvel que o tio José lhe oferecera no sábado anterior.
- O tio José teve um gesto admirável. É um bom homem sempre disponível para ajudar. Terei de o compensar no Natal. O que é que lhe podemos oferecer, Catarina?
- Concordo contigo. Primeiro, foi o computador, agora, o telemóvel. É evidente que não os utilizava, mas podia querer algo em troca, podia vendê-los!
- Isso é verdade, está sempre na linha da frente em matéria de novas tecnologias… Será que ele gosta daquela compota de pera com amêndoas que eu fiz? O teu pai devora-a. Se o tio José sair ao irmão, vai adorar. Acho que lhe vou preparar uns frasquinhos!
- Acho que ele vai adorar!
Naquele momento, o telemóvel da mãe da Catarina tremeu para anunciar a chegada de uma mensagem de texto. Maquinalmente, fez deslizar o polegar pelo monitor e só depois procurou com o olhar a mensagem que entretanto emergira do fundo negro. Olhou a primeira vez mas não entendeu a gravidade da mensagem. Era engano de certeza! Voltou a fixar o texto que a desafiava:
“Catarina, adorei passar contigo aquela noite! Foi fantástico. Temos de repetir…"
Desta vez abrandou e procurou um espaço na berma para parar. Abriu e fechou a mensagem pelo menos duas vezes para confirmar o remetente.
- Este número é do Pedro? - perguntou com um tom que pôs Catarina em sentido.
- Acho que sim, porquê?
Depois de lhe mostrar o número, abriu a mensagem para que Catarina lhe explicasse o sentido daquelas palavras.
- Mãe, eu não sei que parvoíce é esta! Não sei o que isto quer dizer!
- Catarina, não me escondas nada! Na sexta, estiveste em casa da Beatriz!
- Mãe, pelo amor de Deus! Eu não te ia mentir dessa maneira. Essa noite nunca existiu! O Pedro deve estar louco! Só pode estar a brincar.
- Pois, muito bem, esta é uma brincadeira inaceitável! De mau caráter. Preciso de ver tudo esclarecido. Enquanto isso não acontecer, não quero ver-te ao lado dele! Além disso, não permito que venha ao teu aniversário no sábado.
A mãe da Catarina considerava aquela mensagem, no mínimo, estranha mas era necessário esclerecê-la, por isso impunha restrições que só ela poderia anular.
- Logo falamos ao jantar. O teu pai terá com certeza uma opinião sobre este assunto. Agora vamos, já estamos atrasadas.
A Catarina estava desolada. O silêncio era a melhor solução naquele momento. Sabia que aquelas palavras eram uma mentira, mas não conseguia prová-lo com facilidade, sem deixar a menor dúvida. Tentava lembrar-se das pessoas a quem tinha dado o número de telemóvel e que se atreveriam a uma brincadeira daquelas. Sabia, também, que, se não tivesse entregado o telemóvel à mãe naquela manhã, nada daquilo teria acontecido.  Mas, acima de tudo, sofria por saber que o Pedro iria ter uma enorme desilusão e que, de certeza, não tinha feito nada daquilo. Contudo, não era uma boa altura para contrariar a mãe.
O carro parou em frente à escola.
- Espero que não te esqueças do que te disse. E fala com o teu dt para justificar esta falta, lembrou.
Na verdade, não tinha sido possível chegar a tempo da aula de apoio a Matemática.
- Até logo - reagiu Catarina, enquanto retirava a mochila da mala do carro e a pendurava no ombro direito. À sua frente o edifício esperava-a indiferente ao seu olhar desiludido e perdido num mar de dúvidas.
Nessa manhã, eu e o João tínhamos chegado à escola mais cedo, pelas oito e meia, dado que a nossa mãe tinha serviço no Porto. Fui para o bar, revi rapidamente a matéria de Geografia e ainda fui ao campo fazer uns centros.





19

Depois de jantar, fui para o quarto. Precisava de pensar numa armadilha capaz de apanhar o espertinho que me tinha feito passar um mau bocado. Era necessário que Catarina me quisesse ouvir, me desse uma oportunidade. Não resisti mais ao silêncio, à distância que me deixavam louco de saudade e arrisquei a primeira mensagem, sempre eram gratuitas.
"Catarina, não consigo aguentar mais. Estás bem?"
A resposta não tardou, facto que me deixou mais animado. Entendi que também ela queria muito falar comigo.
"Estou bem, quer dizer, dentro do possível."
"Como eu. Estes dias sem ti foram os mais difíceis da minha vida."
"Não exageres. Não deixaste de me ver."
"Não brinques. Sabes muito bem que foi um sacrifício não poder falar contigo."
"Acho que não foi só isso."
"Não percebo."
"Eu senti falta de algo mais, do teu abraço, do teu beijo sincero e meigo."
Naquele momento, senti uma explosão de alegria. Um arrepio percorreu o meu corpo que me obrigou a estremecer e a abrir maquinalmente a janela. O meu irmão reagiu de pronto:
- Fecha isso, estás parvo ou quê?! Está um frio de congelar cérebros. Arriscas-te a não pensar, ou melhor, tu já não costumas pensar, desculpa, enganei-me. Alô, ouviste que eu disse? Ja-ne-la!
Eu não o ouvia. O João teve de fechar a janela, enquanto soltava palavras que aliviavam a sua revolta. Eu selecionava as palavras que melhor respondiam ao desafio de Catarina.
"Também eu senti muitas saudades dos teus carinhos, do teu abraço."
"Sabes que as nossas mães falaram?"
"Sei."
"Desculpa aquelas palavras duras da semana passada."
"Eu nem acredito que foste capaz de me tratar assim. Tu sabias que não tinha acontecido nada!"
"Fui parva. Por momentos, pensei que querias armar-te em esperto e tiveste azar. E tinha de obedecer à minha mãe!"
"Duro foi não ter ido ao teu aniversário."
"Também senti a tua falta."
"Sabias que descobri a mensagem que a tua mãe recebeu no telemóvel?"
"Até me esquecia que tu não sabias. Como conseguiste?
"No sábado, fiquei junto aos portões da tua casa e esperei que o Tó e o Bernardo me trouxessem o telemóvel da tua mãe."
"Não acredito!"
"Eu não desisto, já devias saber!"
"O que te disse a tua mãe da conversa que teve com a minha?"
"Que esta trapalhada não fazia sentido e que podíamos continuar a falar."
"Quando é que entregaste o telemóvel à tua mãe?"
"Na segunda-feira passada, pouco depois ela recebeu a mensagem."
"Quem sabia que tu andavas com esse telemóvel e que o ias devolver?"
"Tu, a Beatriz, a Teresa, pelo menos."
"Elas conheciam o número da tua mãe?"
"Não, mas quem mandou a mensagem não precisava."
"Explica."
"Tu registaste o número como Mãe da Catarina, lembras-te?
"Verdade. Era necessário apenas saber que ias devolvê-lo."
"Mas quem estaria interessado?"
"Duas razões: pura brincadeira, uma partida de mau gosto, ou interesse em separar-nos."
"Não acredito na segunda."
"Não sei… Ajudas-me a fazer uma nassa?"
"O quê?!"
"Uma ideia do meu avô. Alinhas?"
"Estou tão interessada como tu em resolver esta questão."
"Amanhã, finge que ainda estamos zangados."
"Ok. Beijo do tamanho do mundo."
"Outro. Adoro-te."








20

O Natal estava próximo e aquela era a última semana de aulas antes das férias. Naquele dia, acordei mais cedo do que o habitual. O João ainda dormia quando me sentei na cama e peguei no telemóvel para ver as horas e as mensagens. Estava ansioso por encontrar a Catarina. Enfiei-me dentro das calças que me esperavam pacientes e descuidadas ao fundo da cama. No armário procurei umas meias e uma sweatshirt para aquele dia que me parecia um dos mais felizes dos últimos tempos. Em frente ao espelho, murmurei a palavra que levava escrita na camisola, trap, e achei-a muito oportuna: tinha caído numa muito bem montada e estava disposto a usar a mesma moeda. Levantei a mochila que até ali permanecia atrás da porta do quarto e desci para a sala onde esperei pelo pequeno-almoço.
O sofá abraçava-me com os seus almofadões macios, enquanto eu fixava um ponto no teto e abanava as pernas, alimentando o fogo da imaginação que naquele momento já habitava a escola.
Repentinamente, lembrei-me do avô Francisco e da sua habilidade para apanhar pássaros nas armadilhas que espalhava pelos campos. Precisava daquele jeito especial. Pensei que talvez fosse um erro fingir que tudo tinha acabado entre mim e a Catarina, conforme combináramos por mensagem. Se assim fosse, o responsável por aquela trabalhada toda não se voltaria a manifestar. Tratei logo de comunicar esta alteração à Catarina. A resposta não se fez tardar:
"Ok. Apaixonados como se nada tivesse acontecido. Acho que não me vai custar nada representar este novo papel:)"
O relógio apontava as oito horas e cinquenta minutos, quando transpus o portão da escola, deixando para trás o meu irmão, ao contrário do que era habitual. Percorri os corredores, procurando o caminho por entre grupos de alunos que por ali esperavam a entrada nas salas. Nenhum deles se desviava um centímetro para eu passar.
A sala onze espreitava lá ao fundo. De braços cruzados, olhando como quem pensa e espera, vi a Catarina encostada a uma coluna vermelha, com uma das pernas ligeiramente fletida. Numa das mãos segurava o telemóvel. Instintivamente, procurou-me com o olhar. Permaneceu imóvel mas o sorriso que me dedicou cativou-me, cercou-me de forma inefável. Aquele modo peculiar de me fixar encantava-me.
- Pedro! - era a Teresa que se atravessava no meu caminho. - Pedro! Sabias que o Tó não vem hoje às aulas. Parece que...
Acho que nem a vi. Beijei carinhosamente a Catarina, perante o espanto de todos. A Teresa procurou a Beatriz e pensou em voz alta como só ela sabia fazer:
-Então eles não tinham acabado? Não percebo nada disto. Isto assim já não tem piada nenhuma.
- Cala-te! Não sejas desmancha-prazeres - reagiu a Beatriz. - Será que não podes pensar com a boca fechada pelo menos uma vez na vida. Até parece que gostas de os ver sofrer, francamente, Teresa.
Enquanto as duas falavam, a Catarina e eu comentávamos com o olhar aquelas duas. Um brilho e um sorriso comprometido bastavam para nos entendermos. Apesar de tudo, gostávamos muito delas.
Enquanto esperávamos o início da aula de Português, vi o meu irmão que passava com os headphones. Nem sequer nos olhou. Ou melhor, deixou a impressão de que nos viu mas não quis enfrentar-nos. Quis partilhar com ele a minha alegria:
- João!
Fiquei com o braço suspenso. Queria apenas que me visse de novo ao lado da Catarina. Resolvi que mais tarde falaria com ele. Com certeza que estaria concentrado na música ou nalguma matéria que revia mentalmente.
Resolvi trazer a Catarina para o exterior da escola.



21

            - Que horas são? - quis saber a Catarina, enquanto se levantava do banco mesmo em frente ao edifício que nos esperava para as aulas da manhã.
            - Faltam três minutos para as nove - respondi sem me levantar.
            - Acho que tomamos a melhor decisão. Não devemos fingir nada! Se houver alguém que queira separar-nos, terá de ver-nos juntos para voltar a tentar.
            - Concordo.
Naquele momento, levantei-me e abracei a Catarina, procurando um beijo que ela fingia evitar.
- Já reparaste que estamos a ser espiados!?
            - Como assim? Nunca te importaste com isso.
            - Não é isso! A escola agora tem câmaras de vigilância nos corredores, além das que existem nos espaços exteriores.
            - Acho que não estamos a cometer nenhum crime - protestou a Catarina, ainda sem perceber o que ia na minha cabeça.
            - Escuta, não é nada disso. A sala dos monitores está sob a responsabilidade do professor Luís…
            - Não percebo. Temos de ir, Pedro, caso contrário, chegaremos atrasados.
            - Catarina, quem enviou a mensagem na semana passada fê-lo durante o intervalo depois do primeiro tempo da manhã. Lembras-te? Tu faltaste à primeira aula. Era teste de recuperação de Geografia…
            - Até aí também eu chego. Deixaste a mochila no banco junto à sala. Aliás, eu já te tinha dito que um dia destes ficavas sem as tuas coisas. Mas tudo bem. Pois foi, nesse dia, eu, a Bea e o Bernardo fomos dispensados desse teste de recuperação. Por isso, só viemos no segundo tempo. Faltamos ao apoio de Matemática previsto para essa hora.
            - Pois foi. E eu deixei a mochila à porta da sala.
            - Será que foi um deles?! Não, a Bea e o Bernardo?! Não têm motivo para isso!
            - Percebes agora o meu interesse nas câmaras de vigilância?
            - Lembro-me que, nesse dia, em casa, antes de sair para a escola, enviei uma mensagem para a Bea a confirmar que já tinha telemóvel.
            - E ela deduziu que a tua mãe já teria de novo o dela.
            - Não, não acredito nisso!
            - Acho que o professor Luís nos pode ajudar.
            - Já passam cinco minutos. Vamos para a aula.
            Caminhamos abraçados para o interior do edifício. Estávamos a caminho da solução do enigma que nos tinha atormentado nos dias anteriores.



22

            As aulas de terça-feira correram ao lado dos meus pensamentos. Respirava fundo para dar espaço à imaginação que invadia os dias seguintes na esperança de antecipar respostas que as gravações de vídeo guardavam seguramente. Não queria acreditar que algum dos nossos amigos pudesse ter-nos feito uma daquelas partidas. Por momentos, desistia da ideia de visionar as imagens para não ter de enfrentar essa possibilidade. Contudo, a curiosidade e a vontade de vingança eram irresistíveis. Abriam-se num sorriso maroto que espreitava no canto da boca.
            - Em que pensas, Pedro? Estás calado desde que entraste no carro. Passou-se alguma coisa? - a minha mãe sondava o meu olhar misterioso. - Podem passar comigo em casa do avô, ou preferem ir já para casa?
O meu irmão seguia ao lado da minha mãe. Olhava a estrada enquanto ouvia música cujo ritmo eu podia acompanhar pelo balanço do seu corpo.
            - Podemos ir todos - respondi depois de consultar o João com o olhar. - Mãe, é possível usar imagens gravadas em lugares públicos para obter informações que possam revelar provas importantes, por exemplo, para a resolução de um crime?
            - Penso que sim, mas há muitas variáveis que será necessário acautelar… Mas estás a pensar em algum caso que eu conheça?
            - Não. Esquece. Nada de especial.
            - O Pedro já reparou que na escola há câmaras de filmar por todo o lado e está com receio do que possam ter gravado - surpreendeu-me o João.
            - Deves ser parvo, não?! Receio de quê? - quis saber agarrando-lhe o ombro para que se voltasse para trás e me enfrentasse.
            - Tu lá sabes o que fazes nos intervalos - continuou, sem me olhar e voltando a colocar os headphones.
            - João, para com isso - interrompeu a minha mãe. - Pedro, explica lá a tua pergunta.
            - Já chegamos, vamos lá, pois quero muito falar com o avô - desviei da melhor forma que consegui.
            O avô Francisco já nos esperava no portão, interrompera a caminhada que fazia à volta da casa encostado a uma bengala que o ajudava nas passadas. Gostava de o ver assim, autónomo, sorridente, com o chapéu que o protegia do calor e do frio e lhe dava uma graça especial. Um adereço que não dispensava para onde quer que fosse. Com ele respeitava e era respeitado. Atrás dele, as laranjeiras esforçavam-se para aguentar o peso dos frutos que rebentavam nos ramos e disputavam o espaço disponível.
            - Então a tua nassa, Pedro? - surpreendeu-me.  - Já lá caiu algum pássaro?
- Ó avô, vejo que não te esqueceste! Acredito que em breve apanharei o primeiro.
            O João avançou para o interior da casa, deixando comigo um esgar que me deixou irritado.
- Ainda não apanhaste nenhum, mas andas muito mais feliz. Nem sei se te interessa continuar a caça, contudo, tens de continuar atento. A qualquer momento, o pássaro pode voltar a picar o isco. Sabes, eu também era como tu. Andava sempre saudavelmente distraído. Não pensava sequer na possibilidade de alguém se incomodar com a minha felicidade. Não julgava possível sequer que alguém conjeturasse planos para me fazer sofrer. Pois enganei-me! Ver-me sofrer era o prazer de muita gente!
- Nunca pensei nisso assim. Mas começo a acreditar no que dizes.
- Por incrível que pareça, às vezes, as pessoas desiludem-nos. São dominadas por um egoísmo que as controla e não as deixa suportar o sorriso daqueles que estão mesmo ali ao lado.
- Estás a querer dizer-me alguma coisa, avô? Achas que devo estar atento aos meus colegas?
- Vivem acorrentadas nas fronteiras e nas convenções que elas próprias criaram e não são capazes de sair desse quadrado que as reduz, que as subtrai!
- Avô, de quem estás a falar?
- Das pessoas, Pedro.
- Tanta amargura, como podes olhar assim para as pessoas?
- Há pessoas que amam as plantas do seu quintal e pensam que o amor tem apenas aquela medida. Porém, há pessoas que levantaram os olhos e já não têm quintal e o amor voa sem muros que o impeçam, sem nomes que o penalizam.
- Avô Francisco, continuo sem entender o que me dizes, assim de uma forma tão elaborada.
- Pedro, quero dizer-te que o bom amor não subtrai, pelo contrário, acrescenta, multiplica.
- Avô, estás a falar de quem?
- Ó filho, diz à tua avó que vou agora para o trabalho, no comboio das 7.45h. Vai ao guarda-fatos buscar um casaco quente, por favor.
Não adiantava contrariá-lo. Naquele momento, não interessava que soubesse as horas com exatidão, nem que já não tinha idade para ir trabalhar. Guardei as palavras que me ofereceu do alto da sua idade e que me deixaram desconcertado. Que sentido para aquelas palavras? Que relação com o enigma que tinha em mãos? O que me acontecera teria alguma coisa a ver com o amor?



23

            - Pedro, não sei se é possível. Vou ver o que posso fazer. Em que dia é que isso aconteceu?
            - Na segunda da semana passada, por volta das dez horas. Durante o intervalo.
            - Muito bem. Espera aqui um pouco.
            O professor Luís entrou no gabinete da direção, enquanto eu passeava os dedos pelo monitor do telemóvel, encostado à parede que naquela hora parecia não ter cor, escondida atrás dos papéis que se amontoavam, esperando que, por acaso, alguém por ali procurasse alguma informação.
            - Chega aqui, Pedro - o professor Luís fez-me sinal para entrar no gabinete. - Senta-te aí enquanto entro no sistema.
            Daí a pouco as imagens emergiram no ecrã. Endireitei-me na cadeira para ver melhor. Por momentos, senti um calor enorme nas orelhas. Lembrei-me que seria fácil encontrar imagens minhas com a Catarina.
            - Cá estamos na segunda. Vamos dar um salto até à parte da manhã. Onze… Dez e trinta….
Naquele momento largou o cursor que libertou o filme perante os nossos olhos. Alguns momentos calados foram suficientes para nova pausa no filme. O professor Luís voltou-se para mim:
- Este não o teu irmão João?!
Eu nem conseguia responder. O meu coração disparara. Ondas de calor percorreram o meu corpo descontroladamente, paralisando qualquer palavra que procurava forma na minha boca.
- Pedro, este não é o João?!
- Sim… é o meu irmão!
- Repara, não é ele que está a mexer na tua mochila e, agora, no teu telemóvel?
            Eu não queria acreditar nas imagens que me invadiam como ácido abrasador. O meu irmão, o João!? Um precipício cavou-se nas minhas costas. De repente, senti-me sem terreno, como se o meu passado se afundasse perante aquelas imagens. Também o professor Luís estava incrédulo. Retomava, vezes sem conta, o início daquele episódio e olhava fixamente um determinado momento. Comecei a estranhar aquela insistência.
            - Obrigado, professor. Não preciso de ver mais nada. Foi o meu irmão que me meteu nesta confusão. Só não percebo porquê! Que interesse é que ele tinha? Este tempo todo a disfarçar! Cheguei mesmo a falar com ele um dia à noite… Não percebo a ideia dele!
            - Quem são estes rapazes que estão ao lado do teu irmão? - quis saber o professor Luís, interrompendo bruscamente o meu lamento.
            - Não sei bem, assim de costas e com capuz é difícil.
            - Repara neste pormenor: antes de o teu irmão pegar no telemóvel, ele entregou qualquer coisa a um deles que retirou da tua mochila. O que é que o teu irmão deu aos colegas? O que trazias na mochila, Pedro?
            Fiquei petrificado, outro abismo acabara de se abrir agora à minha frente. Ficara completamente isolado, sem saída. Traído pelo próprio irmão e desacreditado perante os professores. Qualquer passo era caminho sem terra.
            - Desculpe, professor, mas não foi para isto que eu aqui vim. Há aqui um erro qualquer. Não sei o que se passou ali. Desconheço completamente o que eles estão a trocar.
            - Pedro, esta ocorrência parece-me muito grave. Terei de a comunicar à direção que, de certeza, entrará em contacto com a polícia e com os teus pais.
            - Era mesmo disso que eu precisava agora - protestei sem melhor argumento.
            - Repara bem, os rapazes têm uma atitude muito suspeita, trocam, guardam sem olhar, disfarçam e afastam-se. Fica apenas o teu irmão com um telemóvel na mão que usa, volta a guardar e segue em direção contrária. Pedro, tens até amanhã para tentar esclarecer esta situação junto da direção. Caso contrário, serás confrontado com o agente da Escola Segura que, perante estas imagens, não terá dúvidas em interrogar-te juntamente com o teu irmão.
            - Nem sei o que diga, professor. Chego com um problema e saio com dois.
            - Pois é, Pedro, a vida tem destas surpresas. Temos de estar preparados para as resolver. Se não tens nada a temer, não terás de ficar preocupado. Agora podes sair. Tenho uma reunião já de seguida.
            - De qualquer forma, obrigado, professor. Até amanhã.
            - Até amanhã, Pedro. Fala também com os teus pais. É muito importante que eles saibam o que se passa. Sabes que serão contactados pela direção.
            Saí. Caminhei mergulhado nos pensamentos. Tudo à minha volta tinha perdido a forma e a cor. Que caroço! Onde eu pensava estar a solução esperava-me um problema ainda mais grave. No telemóvel procurei o número da Catarina.
            - Sim, sou eu. Estive com o professor Luís a ver o vídeo… Não, estou ainda pior, nem vais acreditar. Vem ter ao bar.




24

            O encontro com a Catarina deixara-me mais calmo. As ideias mais cruéis tinham sossegado e a minha imaginação voava agora por entre razões mais plausíveis. Arrancar o João do retrato que levei anos a construir era um contrassenso, mas, perante as provas que me atacaram como uma estalada inesperada, não resistia a pensar nas piores coisas. O meu irmão envolvido com aqueles tipos! Não, não podia ser! Era mau demais. Um golpe muito duro para os meus pais. Depressa recordei alguns colegas que em nada se desviavam do comportamento considerado equilibrado, adequado, e que se revelaram, repentinamente, o oposto. Ostentavam uma vida que lhes servia de máscara para ocultar uma outra no mínimo questionável, onde abundavam as noites sem dormir e a alucinação causada por substâncias a todos os níveis perigosas. Perturbavam-me, no dia seguinte, aqueles rostos cansados, descoloridos, ávidos por água. Sentados no átrio, pareciam derrotados, esquecidos, desligados da vida que fervilhava nos passos dos outros que passavam para as aulas.
            O João, definitivamente, não encaixava naquela moldura. Olhava as coisas dele por ali no quarto, como sempre, organizadas. Procurei no passado pistas, pontas soltas que agora fizessem sentido. Nada.
            - Querias falar comigo? Desculpa a demora… Que cara é essa?! Até parece que o mundo vai acabar.
            - O melhor é estares calado. Se o meu está para acabar, o teu não deve estar muito longe disso!
            - Deves estar a passar-te, não? Eu não tenho nada a ver com os desentendimentos entre ti e a Catarina.
            - Será que não? - desafiei. Nesse momento, o João hesitou, disfarçou o embaraço, escolhendo umas meias numa gaveta. - Então, não falas? Não sei como conseguiste disfarçar este tempo todo.
            - Não percebo onde queres chegar. Abre logo o jogo! Já vi que andas outra vez com a Catarina, por isso, só pode ser um problema relacionado com o futebol ou então com algum teste.
            - És parvo ou quê!? Não sabia que andavas tão atento à minha relação com a Catarina! Melhor, não sabia que agora és um Cupido destruidor que separa as pessoas. Lanças as setas venenosas pela calada e escondes o arco para ninguém ver!
            - Estás a estudar Camões, é? Há dois anos também adorei a mitologia clássica a propósito d’Os Lusíadas... Mas continuo sem perceber o teu jogo de palavras. Talvez fosse melhor ires direto ao assunto.
            - Olha, João, nunca imaginei que tu me pudesses trair. O que é que tu queres? Falamos há dias sobre aquela mensagem que a Catarina recebeu e tu até conseguiste dar-me conselhos. És um grande mentiroso! Se fosses um tipo lá da escola, resolvia já isto ao soco.
            Nesse momento, o João levantou-se, sabia que eu estava à beira de perder o controlo.
            - Não sei como conseguiste descobrir mas, está bem, admito, fui eu que lhe enviei a mensagem!
            - Estúpido! Além disso, estás metido num grande sarilho, quer dizer, estamos! Vais ter de me explicar direitinho que porcaria era aquela que foste buscar à minha mochila e que entregaste ao Eduardo e ao Xavier. E não negues, eu vi tudo nas gravações do sistema de vídeo da escola! Só não quis dizer o nome deles ao professor Luís!
            - Não sei como conseguiste, mas ainda bem! Tenho um grave problema para resolver e ainda não tive coragem para o fazer.



25

O jantar era em casa do avô Francisco. Quando entrei no carro, já todos me esperavam. As últimas palavras do João continuavam a fazer eco na minha cabeça. O que quereria ele dizer com aquilo?
Desta vez era o meu pai que conduzia, por isso, seguia atrás com o João que ouvia música e fazia questão de fingir que não dera pela minha chegada. Olhava as árvores que se mantinham firmes na escuridão que se apoderava daquele final de tarde. Era assim que ele se sentia, rodeado de dúvidas.
- Em casa do avô, quero que me contes tudo. E espero que não estejas a inventar, não gosto que me enganem. Tiveste foi sorte por a mãe ter chegado naquele momento.
- Não me aborreças! Espera, na altura certa, vais saber tudo e ainda me vais agradecer.
A minha mãe olhou-nos intrigada. Resolveu intervir.
            - Em casa do avô Francisco, queremos falar convosco.
            - O diretor da escola telefonou a marcar uma reunião para amanhã. Parece que o problema é sério. Algo relacionado com droga… Não acredito que vocês tenham alguma coisa a ver com o problema. Enfim, falamos daqui a pouco - sublinhou o meu pai.
            Estas palavras atingiram-me duramente. Além disso, o João era o único que podia defender-nos das suspeitas que o vídeo lançara sobre nós. A mensagem enviada em meu nome para o telemóvel da mãe da Catarina era agora um problema bem mais simples do que este.
            Várias questões se levantavam agora no meu pensamento: por que razão o João enviara a mensagem naquele momento, logo após a troca suspeita com o Xavier e o Eduardo? Não fazia muito sentido. Além disso, nunca tinha visto qualquer encontro entre o meu irmão e aqueles dois. Por que razão se encontraram ali os três? O que estaria escondido na minha mochila? Quem o esconderia lá? Porquê? Ansiava pelas respostas que o João podia dar-me.
Entramos em casa dos meus avós onde já nos esperavam à mesa.


26

- Senta-te também aí, João. Eu e a mãe queremos falar convosco.
O meu pai deu assim início à conversa que eu esperava desde o início do jantar. Por isso comi pouco. A cada garfada, perdia-me nos pensamentos que passavam como nuvens fustigadas por vento forte.
- O diretor da vossa escola convocou para amanhã uma reunião a propósito de substâncias ilícitas na escola e parece que vocês estão envolvidos - disparou sem eufemismos.
Nesse momento, o meu avô, que entrara no habitual estado de sonolência após as refeições, levantou a cabeça e lançou-me um olhar vivo que albergava uma boa dose de dúvida e desencanto.
- O que têm a dizer sobre isto? – juntou-se a minha mãe.
- Bom, quem deu origem ao problema fui eu - comecei. - A propósito daquela mensagem que tu já sabes, pedi ao professor João para visionar umas imagens gravadas no sistema de vigilância da escola. Quando eu esperava ter encontrado o engraçadinho que me tinha feito passar por lorpa, o professor Luís chamou-me à atenção para um facto estranho: o João tinha tirado qualquer coisa da minha mochila que entregou ao Xavier, que, por sua vez, trocou por algo que o Eduardo, de forma muito suspeita, lhe meteu na mão. Vi ainda que o João pegou no meu telemóvel, escreveu uma mensagem e voltou a guardá-lo. Não sei mais nada.
- João, tens de esclarecer esta situação. Aliás, não percebo porque deixaste passar tanto tempo. Pior, se o Pedro não se tivesse mexido, tudo ficava como estava. Isso nem parece teu. Estamos aqui para te ajudar, desde que nos contes tudo como foi. Antes de mais, quero que me digas se aquilo era droga ou não.
- Pai, isso não é assim tão simples. A história é um pouco mais complicada. Acho que é até muito delicada. Tenho algum receio do que podem fazer aqueles tipos. São violentos quando se sentem ameaçados. Não é por acaso que alguns carros têm sido danificados.
- Mas tens receio de quê? Não acredito que tenhas qualquer tipo de envolvimento com essa gente!?
-Na verdade, não fiz nada para que me envolver com eles, as coisas precipitaram-se sem que eu pudesse evitar. Nessa segunda-feira, chegamos à escola mais cedo do que era habitual. Enquanto que o Pedro entrou na escola e foi para o bar, eu fiquei junto ao portão à espera do Carlos, um colega da minha turma.
- É um aluno novo na escola, veio transferido há pouco tempo - esclareci.
- Não interrompas - cortou a minha mãe - deixa-o explicar as coisas.
- Nesse tempo em que por ali estive, percebi que o Xavier estava uns metros mais atrás, com o capuz enfiado, e que, pela forma como olhava para o relógio e para a estrada, parecia ansioso. Achei aquilo estranho e, por isso, deixei-me estar por ali para ver o que dava. O pessoal costumava contar umas histórias acerca deles, que traziam cenas para a escola… Entretanto, o Eduardo chegou e entregou uma caixa pequena, pelo menos parecia, tipo caixa de chicletes, ao Xavier, que, subtilmente, o informou da minha presença. Já não tive tempo de disfarçar ou fugir dali.
- Que fazes aqui, meu? Tens algum problema? - ameaçou o Eduardo.
- Por acaso viste alguma coisa? - juntou-se duramente o Xavier, acabando de fechar o cerco.
Já não tinha como evitar aqueles dois. Vira, na verdade, o que tinham feito e parecia que estava em poder de informação que eles queriam anular ou controlar de alguma forma.
- Eu não vi nada – tentou o meu irmão.
- Está caladinho! Se pensas que vais dar com a língua nos dentes, estás muito enganado.
O Eduardo era mais alto e corpulento. Não tinha outra hipótese. Viu que o Xavier o chamou ao lado para lhe segredar qualquer coisa que daí a pouco viria a saber. Reparou ainda que tinham controlado as câmaras, pois tudo fora feito fora do alcance delas. Voltou o Xavier.
- Podes, mas queremos falar contigo no intervalo das dez. Se falhares, hoje não chegas inteiro a casa.




27


            Naquele momento, o meu avô Francisco estava completamente desperto. A história que o João contava espevitava-lhe a curiosidade e a indignação. O meu pai tinha um olhar perdido, perplexo. Ao lado, a minha mãe fitava, virando e revirando, as peças da Pandora que reunia numa pulseira e que constantemente chocalhavam, enquanto batiam na madeira da mesa. Marcava o ritmo da história qual batuta de maestro em frente à orquestra. Notava-se um ritmo crescente, pelo que o João começava a ficar irritado.
            - Mãe, acalma-te. Não batas com a pulseira na mesa. Que coisa!
            - Desculpa. Vá continua. O Xavier o Eduardo deixaram-te à porta da escola. Onde é que o Pedro entra nesta trapalhada?
A minha mãe estava impaciente. O João tinha de continuar.
            - Encontrei-me com eles no bar, alguns minutos antes das dez horas. Também lá estava a Teresa.
            - A Teresa da minha turma? - quis confirmar. - A que propósito?
            - Já vais saber. Nem sabes quem tens a teu lado, Pedro! A miúda não tem escrúpulos!
            - Há uma coisa que continua a deixar-me confuso - atalhou o meu pai - porque que é que não nos disseste nada, ou não falaste com o teu diretor de turma? De certeza que teria atuado e colocado esses alunos sob vigilância policial.
            - Pai, deixa-me explicar. Já vais perceber que tomei a decisão que me pareceu melhor para mim e para o Pedro. Foi a Teresa que me chamou. Sentei-me com eles numa mesa junto à janela.
            - Olá, João, já ouvi dizer que agora andas a espiar o pessoal.
            - Achas que estou interessado no que eles andam a fazer?
            - Tens mesmo cara de inocente! Se calhar, foste direitinho ao gabinete do diretor.
            - Estás parva! Já te disse que não me interessa a vossa vida. Não disse nada a ninguém.
            - Nem vais dizer, ó direitinho - o Eduardo entrava na conversa, de forma ameaçadora.
            -É assim, se continuam a ameaçar-me, acreditem que ponho mesmo um ponto final nisto – arriscou o João.
            - Olha, olha, o menino já usa sinais de pontuação! Pois ouve bem o que te vamos dizer. Não vais pôr um ponto final nesta cena, vais pôr um ponto final parágrafo – impôs-se a Teresa. - Vais com o Eduardo e com o Xavier ao corredor onde está a mochila do teu irmão. Abres o bolso de fora, retiras uma caixa de chicletes que nós lá colocamos, aqui no bar, antes de ele ir para a aula.
            - Estás parva, não acredito, como é que tiveram acesso à mochila?
            - Está caladinho! O Pedro deixa mochila em qualquer lado. Antes do teste de Geografia, ainda foi jogar futebol. Não precisámos de muito tempo para deixar lá a encomenda. E vês aqui alguma câmara? – disse, sorrindo, para desespero do João. - Já sabes, vais com eles agora, retiras a caixa para a devolveres aqui ao pessoal.
            - Não percebo, porque é que eu tenho de fazer isso?
            - Porque, se não, vou já direitinha falar com o diretor para lhe expor uma situação deveras preocupante. Senhor diretor – simulou - nem sei como dizer-lhe estas coisas, mas não posso ficar calada, perante esta ameaça ao bom ambiente escolar. Quero que saiba que o Pedro tem na sua posse centenas de doses de droga e quis que eu lhe comprasse… Achas que tenho jeito? – perguntou.
            O João estava num labirinto deveras bem montado. Não tinha por onde escapar. Não havia por ali nenhum fio que lhe devolvesse a saída ou material para as asas que o elevariam acima daqueles muros em que o encerraram. Aceitou sem ponderar muito. Mas a Teresa ainda tinha mais uma exigência que lhe acentuava definitivamente o seu lado negro.
            - Vais fazer isso e tens ainda outra tarefa que me vai deixar muito feliz. Não suporto ver aqueles dois juntos. Vais pegar no telemóvel do teu irmão e escrever uma mensagem para a mãe da Catarina. Ele tem lá o número, procura-o. Escreves qualquer coisa como isto: “Catarina, gostei muito da noite que passamos juntos, temos de repetir.” Aposto que decoraste tudo. És muito bom aluno, por isso até podes usar recursos expressivos. Ah, já me esquecia, apagas a mensagem depois de a enviar.
A Teresa tinha estado ao lado da Beatriz quando esta ficara a saber que a Catarina já tinha com ela o telemóvel que o tio lhe oferecera.
            Nesse momento, o meu pai já estava encostado na cadeira e olhava o teto falso, mostrando uma surpresa cada vez mais acentuada.
            - Bem tramado, sim senhor. Esses meninos são do piorio! Não tinhas hipóteses, João. Se, por acaso, resolvesses falar, estava o Pedro também metido num grande sarilho. Era a palavra dele contra a da Teresa e, perante as provas encontradas na mochila,… Seguraram-se muito bem. Só não contaram foi com as câmaras. Um pormenor de extrema importância. De qualquer forma nós é que continuamos com a batata quente nas mãos. Como vamos garantir ao diretor que o Pedro é inocente no meio desta trapalhada toda?
            - Contaram com as câmaras, sim. Aliás, as câmaras serviriam para provar o meu envolvimento e o do Pedro, portanto, para me manterem calado! Agora só nos resta contar a verdade. Não temos nada a temer. Fica esclarecido o mistério da mensagem. Resta agora encontrar uma solução para pôr aqueles três na ordem.
            O João falava com convicção mas a minha mãe interveio com mais um obstáculo.
            - Não pensem que lhes vai acontecer alguma coisa. As imagens não provam nada. É a palavra deles contra a do João. Eles vão sempre dizer que eram chicletes ou outra coisa qualquer. Agora o que pode acontecer de grave é que o Pedro e o João passarão a estar referenciados pela polícia e terão de prestar declarações. Um aborrecimento. Estas coisas nunca são boas para ninguém.
            O meu avô tinha estado calado, absorvendo cada palavra desta história.
            - Ó Pedro, não te esqueças da nassa de que te falei há dias.
            - De que é que estás a falar, avô? - quis saber o João.
            - Que é preciso surpreendê-los, virar a vassoura contra o feiticeiro.

            Não resisti a uma saudável gargalhada. Também o meu avô se enganava nesta típica expressão da língua. Lembrei-me do António e de como seria interessante que ele estivesse ali para me ajudar a encontrar uma solução.

28
           
            O António esperava-me no bar. Como sempre, não usava a cadeira para se sentar, ouvia música sentado numa das mesas. Olhava o campo de jogos que a janela lhe recortava.
            -Olha-me aquele nabo, falhou o golo ­com a baliza aberta – gritou, abrindo repentinamente a janela. - A jogar assim, não tarda, estás no Benfica!
            - Ei, Tó, deixa lá o tipo. O Benfica ultimamente só tem ido buscar jogadores ao Porto!
            - Pedro! Desculpa, não estava a ver-te. Então, como correu a conversa na direção?
            - Bem. Contamos a história toda. Os meus pais tinham razão, não nos vai acontecer nada, nem a mim, nem ao João. O Xavier e o Eduardo continuarão a ser observados, e, sem provas, parece que nada mais poderá ser feito.
            - Se ninguém os apanhar com o produto, os tipos continuarão a fazer o que lhes apetecer aqui na escola.
            - Mas comigo não vai ser assim! O João ficou quieto mas eu não. Aquela brincadeira da Teresa não vai ficar sem resposta e o Xavier e o Eduardo não perdem pela demora. Não tenho medo deles! Vai ser na mesma moeda.
            - Não te vais armar em herói com aqueles tipos, pois não, Pedro. Por favor, pensa bem no que te vais meter.
            - Calma, Tó. Não lhes vou dar hipótese alguma. A força assusta mas a inteligência costuma ser mais forte.
            Naquele momento, eu organizava a minha nassa e era preciso atraí-los. Eu sabia que eles eram muito cuidadosos e desconfiados. Andavam sempre acompanhados e nunca deixavam a mochila em lado nenhum. De certeza que não era por causa dos livros. Um caderno de capa preta era o suficiente para guardar o pouco que captavam nas aulas. A Teresa também era de difícil acesso. Tinha pela frente a complexa tarefa de lhes dar uma lição e de os dissuadir de futuras vinganças.
            - O diretor também vai falar com os pais deles? - quis saber o António.
            - Foi o que disseram. Mas acho que eles não vêm à reunião. O Eduardo e o Xavier controlam o esquema todo lá em casa. Acho que até os pais têm medo deles. Uma desgraça.
            - Quer dizer, os tipos vão continuar a reinar e a meter na escola o que lhes apetecer. Mas os pais da Teresa são muito rigorosos, estão separados mas acompanham de perto o que filha vai fazendo. Se eles sabem, ela está metida em sarilhos, em sérios problemas.
            - Amanhã, temos a última aula de Educação Física do período. Àquela hora é só a nossa turma no Pavilhão, não é, Tó?
            - Acho que sim…
            - Amanhã, preciso da tua ajuda.
            Apresentei ao António o meu objetivo e a estratégia traçada para o alcançar. Já tinha provado ser corajoso e amigo no aniversário da Catarina. Agora voltava a precisar dele.

29

            A manhã de quinta-feira, penúltimo dia de aulas antes das férias do Natal, surgiu brilhante. O Sol contrariava a brisa gelada que durante a noite tinha passeado por cada canto dos edifícios escolares. A erva não resistia a uma fina camada de geada, curvando-se ao seu peso e temperatura. As árvores não escondiam as lágrimas que o gelo estagnara ao longo do tronco e dos ramos. Uma tristeza que esperava o abraço do sol. O verde escondido ainda teria de esperar. Por agora, a vida estava bem guardada à espera da melhor oportunidade que não tardaria.
            A Catarina devia estar quase a chegar. Tinha-lhe pedido para vir mais cedo para poder contar-lhe os planos que trazia bem guardados. Sentia um misto de audácia e medo. Mas não podia perder a oportunidade que aquele dia favorecia.
            - Mas eu não percebo como queres que faça isso! A Teresa não vai dar espaço!
            - As condições estão quase todas reunidas. Então é assim, durante a aula de Educação Física, enquanto a Teresa faz a autoavaliação, desces ao balneário e envias uma mensagem do telemóvel dela para o Xavier. A palavra-passe para o desbloqueares é t3r3sa. Mais tarde, envias outra do teu para o agente da Escola Segura. Envias os textos e apaga-los de seguida.
            - Achas que o professor vai autorizar? E a chave? Ele deixa sempre o balneário fechado!?
            - Hoje é o último dia de Educação Física e ele vai fazer a autoavaliação. Para não ser interrompido, a chave vai ficar à entrada do gabinete.
            - Percebi, quando ela for fazer autoavaliação, eu trato disso. Têm é de controlar o resto do pessoal.
            - Eu e o Tó tratamos do assunto. É só organizar um jogo de basquete. Nessa altura, afastas-te subtilmente e fazes o combinado. Vamos dar uma lição à Teresa e ao mesmo tempo pôr no sítio os amiguinhos dela. Depois da aula, vamos para casa e só amanhã saberemos o resultado.

30

            - Obrigado, Professor. Bom Natal! Quer que chame o Rui?
            - Sim, pode ser. Se houver algum problema lá dentro, quero que me venhas chamar imediatamente.
            - Pode ficar descansado, estamos a jogar basquete.
            Saí do gabinete mas já nem me recordava da classificação atribuída. A minha preocupação era outra. Daí a pouco, a Teresa ia ser chamada e começava a contagem decrescente para a Catarina fazer o que tínhamos combinado. Aproximei-me do centro do campo onde todos se agrupavam para dar início a mais uma partida. Procurei os olhos da Catarina. Tudo pronto. Restava esperar e manter toda a calma necessária para que ninguém desconfiasse.
            Naquele momento o tempo só corria para mim, acompanhava as batidas do meu coração. Parecia só meu. As linhas do campo afunilavam todas na mesma direção. Apenas eu e a Catarina. As escadas, o balneário feminino, o saco da Teresa, o telemóvel, as mensagens…
            - Teresa, agora és tu. Podes ir - anunciou o Rui.
Repentinamente, uma força estranha apoderou-se das minhas pernas. Estava na hora. A Catarina afastou-se, procurando certificar-se de que ninguém a seguia com o olhar. Deixei de a ver.
            - Então, Pedro?! Joga! - gritava o Bernardo. - Estás a pensar em quê? Ao menos passa a bola.
            Passei a bola e o Bernardo facilmente encontrou o António em melhor posição para fazer três pontos.
Desejava acima de tudo que a Teresa discordasse da proposta do professor, que ligasse o complicómetro como era seu costume. Era importante que o tempo se demorasse por ali o mais possível.
            - Tó, podes ir lá agora? Inventa qualquer coisa. Aguenta a Teresa o mais possível na sala do professor. Diz que te lembraste de um trabalho que o professor não considerou na avaliação.
            - Conta comigo! Já lá estou.
            O António gostava daquelas coisas. Não perdia uma oportunidade para fazer parte da minha equipa. Desta vez a jogada era mais arriscada, mas valia a pena.


31

Sexta de manhã. Não me atrevia a sair da cama. As imagens do dia anterior disputavam espaço com aquelas que a minha imaginação antecipava. Um reboliço intenso que nem a almofada conseguia acalmar. Olhava a luz que invadia o meu quarto por uma nesga que a cortina não conseguia tapar devidamente. Sentia-me na mira de uma arma especial apontada para mim. Algo me dizia que, nas horas seguintes, muita coisa mudaria na vida da Teresa, do Xavier e do Eduardo. Ou não.
O João já tinha descido. O aroma a pão torrado invadia o quarto e convidava-me para o pequeno-almoço. Devorei o pão sem lhe sentir o sabor, concentrado nas mensagens do telemóvel. Bebi o leite com chocolate de um trago e voei para o carro onde já me esperavam.
Depressa avistei os muros da escola e levei de imediato um murro no estômago. Nenhum carro da polícia estava estacionado junto ao portão. Na verdade, era frequente a presença policial na entrada da escola, sobretudo, nos horários de maior trânsito. Contudo, naquele dia, nem sinais. Por momentos, tentei afastar qualquer conclusão precipitada. Eram várias as possibilidades.
Saí. A mochila baloiçava leve nas minhas costas. Era o último dia. Fiz questão de acompanhar o meu irmão que me olhou num misto de espanto e desaprovação. Não percebi se por achar que não precisava da minha proteção ou por lhe parecer que eu estava com medo de alguma coisa. Talvez as duas razões.
A informação não tardou.
- Já sabes o que aconteceu?
Os meus ombros disseram que não. O Bernardo, seguido pelo António que me piscou o olho à mistura com um sorriso maroto, continuou a disparar.
- A bófia à paisana esteve aqui e apanhou vários tipos. Acho que a Teresa também está envolvida.
- O Xavier e o Eduardo foram apanhados com material - completou o António. Os agentes acertaram em cheio. Apareceram de repente, do nada. Ninguém sabe como. Desta já não se livram. Estão no gabinete da direção. Não tarda, seguem para a esquadra.
Naquele momento, apeteceu-me soltar um grito há muito sufocado e contrariado, mas contive-me perante a presença de vários colegas que não iriam perceber a minha alegria naquele contexto. Limitei-me a apertar a mão do António num cumprimento interminável onde os nossos dedos pareciam ter vida própria tais os movimentos que eram capazes de fazer numa harmonia perfeita.
O meu pensamento abriu caminho à procura de Catarina. Já teria chegado? Precisava de lhe dar aquela notícia. Mais do que ninguém, ela arriscara tudo para descer ao balneário e enviar a mensagem que alterou a vida daqueles três que há muito precisavam de uma lição.
Encontrei-a junto à sala de aulas. A professora de Francês acabara de entrar.
- Já te disseram o que aconteceu? – segredei.
- Quem é que ainda não sabe?! Foi um escândalo! Parecia um filme. Polícia. Quietos. Encostados à parede, já! Revista completa, apreensão… Até eu fiquei assustada!
-Tu assististe?! Tiveste coragem?
- Achas que ia perder um momento destes? Ver a cara da Teresa?
Fiz-lhe sinal de silêncio. A aula ia começar.

32

            Noite de consoada. Chegamos a casa do meu avô ao final da tarde. A minha mãe já lá estava. Viera mais cedo para ajudar nos preparativos. Já não eram novidade para mim aquelas panelas enormes onde as batatas, as couves e o bacalhau se cozinhavam, libertando um aroma inconfundível. As tradicionais sobremesas estavam já expostas e alinhadas no aparador da sala de jantar. A mesa esperava preparada para acolher os comensais.
            Era uma noite especial. Os meus primos apareciam sempre repletos de cenas para contar e mostrar. A casa parecia sorrir tal era a alegria que a preenchia. Os espaços quase desabitados durante o ano eram agora invadidos por conversas ruidosas. Continuavam abandonados apenas aqueles que resistiam à tecnologia wi-fi.
            - Então, Pedro, ouvi dizer que tramaste a vida a uns tipos lá da tua escola - intrometeu-se o Tomás.
Eu não desviei o olhar da televisão, apesar de não prestar qualquer atenção ao programa que lá passava e há muito abandonado.
            - Não sei de que é que estás a falar - disse, tentando desanimá-lo.
            - Deixa-te de coisas, o João já me contou.
            - Então já não tenho mais nada para te dizer.
            Nesse momento, o meu avô passava no corredor ao lado da sala e espreitou para nos ver.
            - Pedro, chega aqui ao quarto, por favor.
            Segui-o, enquanto caminhava lentamente, medindo cada passo que encostava à bengala que abria caminho mais seguro.
            - Senta-te aí na beira da cama - indicou, acompanhando cada movimento que eu fazia com aqueles olhos claros e húmidos.
            - Diz, avô. Precisas de alguma coisa? - comecei, procurando antecipar o motivo daquela reunião.
            - Já tentei saber junto da tua mãe, mas ela não satisfez completamente a minha curiosidade. Diz-me lá como montaste a nassa e como caíram lá os pássaros.
            - Avô, não quero que isto se espalhe muito... Mas não tem sentido estar a dizer-te isto. Muito bem, aqui vai.
E contei-lhe como combinei tudo com a Catarina e com o António. Apesar de eu ter arquitetado tudo, os louros iam, sobretudo, para a Catarina que, com coragem e agilidade, enviara naquela tarde uma mensagem para o agente da Escola Segura, pedindo-lhe ajuda, pois, no dia seguinte, dois colegas, antes do início das aulas, iriam obrigar a Teresa a levar droga para dentro da escola. Enviou outra para o Xavier, a partir do telemóvel da Teresa a pedir-lhe que, no dia seguinte, lhe levasse “três folhas de teste”. Era um código que usavam entre eles e que nós conhecíamos porque, às vezes, a Teresa falava demais.
            - A Catarina assistiu a tudo - continuei. - Não imagina a minha alegria quando ela me descreveu a cara dos três perante a intervenção policial. A Teresa olhava o Xavier e o Eduardo completamente incrédula. Estes depressa ficaram em choque, porque perceberam que os agentes procuravam, estranhamente, protegê-la. Entenderam que teria sido ela a traí-los, informando a polícia. Nesse momento, o Xavier não se conteve e mostrou a mensagem que a Teresa lhe enviara a pedir “folhas de teste”. Um dos polícias confirmou o número do telemóvel e resolveu levá-la também para o gabinete da direção. Algum tempo depois, foram conduzidos para a esquadra onde foram chamados também os pais.
            - Ainda hoje estarão a tentar perceber como é que a mensagem foi enviada do telemóvel da Teresa – disse, sorrindo, o meu avô.
            - É verdade. Há pistas muito óbvias. Eles sabem que foi durante a aula de Educação Física. Mas não sabem com certeza quem foi. Aliás, a Teresa não imagina como foi descoberta a palavra-passe do telemóvel dela: encontrei-a, por acaso, numa aula em que ela me emprestou o caderno de Matemática para eu copiar uns exercícios.
            E continuei, explicando que a Teresa tinha sido proibida de contactar com o Xavier e o Eduardo. Os pais dela voltaram a viver na mesma casa para a ajudarem naquela fase difícil.
Por sua vez, o Xavier e o Eduardo tinham agora um acompanhamento diário por técnicos da comissão de proteção de jovens em risco.
Entretanto, o meu telemóvel vibrou.
            - Muito bem, rapaz, fizeste um ótimo trabalho com a nassa que inventaste! Agora lê a mensagem que recebeste. Deve ser dela - disse, piscando o olho temperado por um sorriso meigo. - Deseja-lhe bom Natal e diz que lhe admiro a coragem. E despacha-te, está na hora da ceia.
            E seguiu pelo corredor certo de que outras aventuras não tardariam. Eu também não duvidava disso. Aquelas mensagens ainda dariam muito que falar.


Fim


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