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As escadas do sono

 

           Todas as noites, antes de se recolherem para dormir, os pais do Mateus passavam nos quartos para verificar o sono dos filhos, desligar as luzes e os rádios. Uma espécie de revista amorosa antes do descanso sereno.

- Ele teima em cobrir-se completamente! – sussurrou o pai.

- Já sabes que é por causa das melgas – justificou a mãe que há muito sabia que o Mateus se defendia assim dos importunos insetos.

- Mas não temos melgas cá em casa! – protestou.

A mãe respondeu-lhe com um sorriso discreto, fitando-o de forma divertida.

- Melgas há muitas…!

O pai não lhe deu tempo de terminar a famosa tirada.

 

No dia seguinte, durante o pequeno-almoço, o pai observou pausadamente a crescente agitação dos filhos, as disputas ardentes sobre a posse do comando e sobre o programa a ver daí a momentos. Não se entendiam!

- Mãe, posso ver tablet?! – reclamou a Clara, prevendo a ineficácia dos seus argumentos.

- Não. Têm de ver o mesmo filme! Os três! – determinou a mãe, incentivando o pai a intervir também. Mas a Clara não lhe deu tempo, afirmando com agilidade:

- Já sei, pai! É importante vermos o mesmo filme para depois falarmos sobre ele…

- Sim, muito mais saudável do que estar cada um no seu tablet a ver anúncios de chupetas disfarçados de Uma aventura secreta em casa do Neto! – dramatizou o pai de forma hilariante.

- Chupetas, pai! – resmungaram a Clara e a Teresa. – Está bem, nós escolhemos um filme.

 

- E eu? É a minha vez de escolher um filme! – insurgiu-se o Mateus, procurando o lado mais grave da voz que teimava ainda em fugir para o lado mais agudo.

- Mateus, fica mais um pouco – pediu o pai.

O filho fixava o pão, encontrando nele um confidente. O único elemento à face da terra que entendia naquele momento a injustiça que o atacava constantemente. Ninguém o compreendia! Ninguém o deixava falar! Nunca podia escolher os filmes! Nunca podia escolher a ementa! E agora tinha de ficar ali a ouvir mais um sermão!

- Mateus…

- Sim, pai! Já te disse que elas já escolheram, agora é a minha vez! Não acreditas em mim!

- Não quero falar sobre essa questão. Ouve. Por que razão cobres a cabeça quando te deitas para dormir?

O rapaz ficou baralhado com a inesperada pergunta. Mudou de posição na cadeira para acomodar as melhores ideias e para que estas encontrassem a forma das palavras.

- Sabes que não há melgas no teu quarto…– antecipou-se o pai.

- Eu sei! É por causa das escadas de madeira…

- As escadas que levam ao sótão?! Mas conheces muito bem o que há no sótão: um quarto cheio de luz, várias estantes com livros, uma secretária, uma cama… e trabalhos que vocês foram fazendo ao longo dos anos… parece um álbum de recordações!

O rapaz fixou novamente o pão. Não o comia porque precisava ainda de um amigo capaz de ouvir, apenas ouvir. Depois disse, num tom de voz incrivelmente grave:

- Isso que dizes acontece apenas durante o dia! À noite é muito diferente…

O pai guardou aquelas palavras, palavras enormes. Um murro na certeza daquele adulto que ficou sem argumentos. À noite subiam e desciam por aquelas escadas todos os sonhos acordados, todos os sonhos adormecidos, todas as memórias, os futuros todos, os passados todos…

- E se nós voltarmos a colocar uma luz de presença junto às escadas?  – propôs a mãe.

O rapaz comeu finalmente o último pedaço de pão, tendo sentido que alguém o compreendia. O pai ficou espantado com a eficácia da solução: a luz prolongava o dia nas escadas e iludia a imaginação. Inspirou fundo e acompanhou os passos do filho que se dirigia para a sala. Ouviu depois a normal discussão sobre a posse do comando e a normal discussão sobre a escolha do filme. Olhou com encanto a mulher e ambos perceberam que era durante o dia que tinham de cuidar das escadas do sonho daquelas criaturas. Tudo o que à noite subia e descia pelas escadas do sótão era preparado durante o dia. E eram eles os principais encenadores. Todas as personagens que à noite ganhavam forma nas escadas do sótão tinham também a sua marca. Importava é que fossem figuras felizes e que não fizessem ruído ao passar.

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