Por momentos, o silêncio ganhou espaço no
carro. O pai fixava as paralelas brancas que acomodavam a viatura e lhe ditavam
os limites. Tinha mergulhado numa espécie de futuro que por momentos nos visita
sem nunca se deixar agarrar. Imaginava já
as agendadas tarefas que se acotovelavam para aparecer. O Mateus seguia ao
lado, calado e concentrado no exterior recortado pela janela.
- Pai, olha ali! – pediu o rapaz.
Não precisava de apontar. O pai sabia muito
bem o motivo do espanto.
- Muito corajoso, Mateus. Com esta chuva,
logo pela manhã… registo com espanto o sacrifício daquele homem!
- Oh! – reagiu o Mateus, acompanhando a
interjeição protestante com um acentuado encolher de ombros. Ainda se voltou
para trás de forma a ver mais uns segundos aquele quadro matinal.
O silêncio voltou. As árvores despediam-se
das últimas folhas que apanhavam o sopro do vento agitado e, baloiçando,
chegavam suavemente ao chão. E os ramos lá ficavam orgulhosamente erguidos. A
perda não os inclinava. Aguardavam sabiamente pela energia que vinha de dentro.
Em breve, brotariam novas dádivas inspiradas pelo Sol.
- Pai, olha!
Desta vez, tocou-lhe no braço para que
visse com atenção. O rapaz apontava para o canteiro cuidado que verdejava à
frente da porta principal de um hotel.
- Pai, olha! – insistiu.
- Vejo uma senhora que, pela forma como
caminha apoiada à bengala, me parece bastante idosa …
- Pai!... – e novamente aquele clique
aborrecido.
- Acho até perigoso, os passeios estão
muito escorregadios – completou.
O rapaz calou-se e não
mais desviou o olhar da janela.
O pai queria contar-lhe uma história, mas
não era ainda o tempo. Queria que ele percebesse o mistério das árvores que
sempre sabem onde agarrar as raízes. Que a altura sempre lhes exigiu
profundidade! E era admirável a forma como procuravam o Sol!
Como poderia dizer tais coisas ao filho?
O rapaz não tinha observado o homem que
passeava um cão, não dera atenção à velhinha que custosamente também acompanhava
um cão no passeio matinal… Interessava saber onde se agarravam aquelas ainda
frágeis raízes e para onde se orientavam os ramos que imparáveis despontavam.
O carro seguia ainda entre as paralelas
brancas, aqui e ali, tracejadas, para permitir a mudança de direção. Em breve,
apareceria o edifício escolar. O pai continuava a pensar nos quadros propostos
pelo filho e lembrou-se daquele jardim que visitara no Buçaco onde tinha visto
uma minhoca que procurava atravessar o carreiro de brita e terra seca entre os
buxos. Debalde. À sua volta, juntaram-se alguns transeuntes que lamentavam a
qualidade do piso. Um deles pegou carinhosamente no invertebrado e colocou-o sobre
a relva macia. Algum problema? Nenhum… Mas não guardaria este episódio, se não
tivesse visto a poucos metros uma criança que esticava a mão a quem passava.
Quando lhe perguntou se estava sozinha, porque andava a pedir, fugiu assustada…
Também ela atravessava um caminho rugoso... Revisitou ainda as palavras daquele
rapaz que, a meio de uma conversa, o tinha confrontado com uma certeza em forma
de pergunta retórica: …e a minha vida vale mais do que a de um animal? Nesse
momento, olhara-o fixamente e respondera-lhe que não tinha dúvidas, em caso de
escolha obrigatória…
Fixou novamente as árvores. Admirou mais
uma vez a sua altura e a sua profundidade escondida.
- Pai, porque insistes em mostrar-me as
pessoas quando eu te quero mostrar um animal? – perguntou o Mateus, ao abrir a
porta do carro, pronto para sair.
- Tens o dia todo para pensar nisso. Mais logo voltamos a conversar. Fica
bem!