- Pai, por que razão levantas o rosto, fechas os olhos e sorris, enquanto procuras as memórias da minha infância?
O rapaz esquecera-se da inspiração longa e suave que, qual brisa suave, primeiro chega ao lugar onde brotam as mais belas flores. O sorriso antecipava a forma singela, a cor sincera e o perfume honesto de cada uma. Os olhos assim cerrados, como farol nas costas bravias que observa quando há luz e é visto quando a noite esconde o caminho, orientavam a viagem até essa enseada segura onde as memórias aguardavam sossegadas. O rosto assim levantado parecia uma bandeira que se erguia plena de gratidão e de satisfação!
Pai e filho estavam agora atracados na mesma angra, unidos no que ficou desse tempo que os amarrou para sempre ao mesmo cais. Sim, poderão partir, percorrer distâncias diferentes, porque é maravilhoso ter onde chegar ou não saber onde se vai chegar, mas é eternamente radical saber onde voltar, ter onde voltar.
- Lembras-te ou não? - insistia o rapaz, aprendiz de adolescente, tentando domar a voz que teimava em começar grave e acabar estranhamente aguda. Às vezes, sempre grave, às vezes, sempre aguda, às vezes não sabia bem.
- Sim!
- É uma das minhas memórias mais antigas... acho que tinha cerca de três anos! Tu pegaste em mim, colocaste-me nesse cesto e passeaste comigo pela casa!
O pai acenava concordante. Estavam os dois sentados lado a lado, unidos no mesmo momento, tocados pelo Sol sereno que parecia satisfeito.
- Tens também alguma memória da tua infância… que me queiras contar?
Tinha várias. Aguardavam alinhadas, lombadas desejosas de proximidade, ávidas de espaço que lhes acolhesse as histórias encerradas.
- Hoje é um dia especial… quando tinha a tua idade… enquanto vivi em casa dos teus avós… lembro-me bem!
- Conta!
O pai regressou a essas tardes de Sexta-Feira e percebeu que ainda mantinham a cor pesada, silenciosa, imponente. Havia nuvens que teimavam em juntar-se, ficando cada vez mais escuras. O Sol aguardava. Eram quase três horas da tarde.
- A essa hora, o meu pai aproximava-se, vindo do campo, onde acarinhava as flores que anunciavam os frutos, e esperava junto à entrada da nossa casa. A minha mãe vinha de dentro e ficava ao seu lado, os dois encerrados em profundo silêncio. Depois, o meu pai tirava respeitosamente a boina. E, às três da tarde, soavam dolorosamente as roucas sirenes das fábricas. Tudo parava! Terminavam as vozes na rua, estacionavam serenamente os carros. Silêncio. Até os pássaros recolhiam as melodias inocentes. Era um minuto longo. Um minuto sincero, enorme, que ainda hoje me espanta!
O rapaz procurava as melhores palavras para as ideias que aguardavam impacientes.
- Não percebo… disseste que hoje é um dia especial?!
- Sim, fundamental. Guardo aquele silêncio inspirador, que ainda procuro alcançar…
- Estás a falar de Jesus?!
- Sim.
O pai inspirou longa e suavemente, levantou o rosto, fechou os olhos e sorriu. Regressava feliz daquelas memórias. Naquela Sexta-Feira, a humanidade tinha-se reencontrado. Naquela Sexta-Feira, renascera a fraternidade que nos justifica! Uma nova ordem que nos obriga a sair da nossa certeza, a repensar a nossa grandeza! O amor alcançara uma nova medida, tendo vencido a crueldade que o arrastara pelas pedras da Via Dolorosa.
Por fim, fixou o filho e sorriu, reparando que já passavam alguns minutos das três. Tinham feito silêncio naquela Sexta-Feira.