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Histórias com valor(es) - compilação


Dona Verdade e Dona Liberdade

A Dona Verdade conhecia a Dona Liberdade há muitos anos. Moravam no mesmo lugar, uma em frente à outra, e já não se lembravam do dia em que tinham vindo para ali viver.
Todas as manhãs vinham à janela. Esperava uma pela outra e conversavam longamente. Eram tantas as histórias que tinham para contar!
A Dona Verdade, que nunca foi dona da verdade, nunca se cansava de dizer que tinha sido verdade toda a vida mas que já não se lembrava da sua primeira verdade. Partidas da memória. Aqueles cabelos brancos não a deixavam mentir.
A Dona Liberdade gostava de lembrar as histórias da sua juventude. Fechava os olhos em busca do passado que trazia ao presente com saudade. Aqueles tempos em que percorria as ruas à frente das multidões!
- Amiga, nesse tempo andava um pouco descomposta! – intrometia-se a Dona Verdade. – Lembra-se daquela pintura?
E ficavam a rir abraçadas pelo olhar que as unia.
Certa manhã, a Dona Verdade veio à janela, como era habitual.
- Bom dia, vizinha! Hoje não está com boa cara!
- Bom dia! – saudou a Dona Liberdade, acabando de abrir a janela para se deixar acariciar pelo Sol.
- Então, amiga, não me diz nada?!
Silêncio. Ficaram em silêncio durante algum tempo. A Dona Liberdade fitava a árvore que sempre esteve entre as duas casas. A Dona Verdade acompanhou-a com o olhar e rapidamente percebeu o sofrimento da amiga. O tronco da árvore mantinha-se robusto, profundamente agarrado à terra. Os ramos mais novos rompiam em busca de espaço e de luz, agarrados aos ramos mais velhos. Mas as folhas…
- As folhas da nossa árvore tardam. Há muito que as espero mas não as vejo surgir – explicou a Dona Liberdade.
- Agora que fala, amiga, reparo nisso. Mas não se preocupe, não tarda teremos sombra para conversarmos durante as tardes de calor. Continuemos a regá-la, a vizinha desse lado e eu deste.
Era assim há muito, muito tempo: as raízes da árvore recebiam a água da Dona Liberdade e a água da Dona Verdade. E sempre rebentavam as folhas e as flores e os frutos no tempo certo. Mas não naquele ano.
Naquela manhã, várias crianças brincavam debaixo da árvore.
- Tu não jogas! Tu não sabes jogar!
- Sei, sim! O meu pai disse que eu já sei jogar.
- Não quero jogar contigo. Se jogar, vou perder!
O rapaz, rejeitado, ficou sentado, murcho, não se atrevendo a levantar o olhar. Se o fizesse, sabia que seria novamente atacado. Ouviria palavras duras por não controlar as lágrimas que escorriam teimosamente pelo rosto.
- Podemos jogar a outra coisa? – arriscou, tentando levantar-se do chão.
O outro olhou-o pronto a disparar palavras ainda mais cruéis.
A Dona Verdade reparou no olhar preocupado da Dona Liberdade. Ambas estavam assustadas com a verdade e as escolhas daquele rapazito que se mantinha de pé junto ao outro que procurava limpar as lágrimas que pareciam humilhá-lo ainda mais.
- Jogar a quê? – respondeu, abrindo uma passagem no muro que ainda há pouco tinha elevado até ao mais alto nível do orgulho.
- Pode ser às caçadinhas? – propôs, abrindo um sorriso no olhar que expulsou rapidamente a última lágrima. – Eu sou bom às caçadinhas!
- Pode ser! Queres ser tu primeiro a caçar?
Os outros aproximaram-se para darem início ao jogo onde todos tinham lugar. Caçar ou fugir tinham a mesma natureza. Por isso o riso que libertavam foi subindo até ao mais alto ramo da árvore que ali perto os observava.
A Dona Liberdade suspirou de alívio e reparou que a Dona Verdade limpava discretamente uma lágrima que lhe atravessava o rosto, como um barco sulcando o mar levemente ondulado. Olharam-se depois. Bastou um sorriso para confirmar a satisfação que as invadia. Há verdades que não mudam, há escolhas que não devem mudar!
Estavam quase a recolher-se, quando algo chamou a atenção da Dona Verdade. Apontou alguns ramos da árvore para que a amiga também confirmasse. Era verdade! Ali tinham caído as lágrimas do rapazito que agora corria feliz atrás dos amigos. Era verdade! Os ramos mais próximos responderam, libertando as primeiras folhas daquele ano. Em breve todos os outros seguiriam o exemplo.



Dona Desculpa e Dona Licença

A Dona Desculpa e a Dona Licença caminhavam pela rua sorrindo a quem passava. A Dona Desculpa com os óculos na pontinha do nariz, a Dona Licença agarradinha à sua bengala.
- Bom dia, menino! – saudavam, parando uns segundos para reparar no rosto do rapaz que seguia apressado.
- Ó Dona Licença, o rapazito deve ser mais surdo do que nós! – protestou.
- Eu cá também acho, deve ouvir mal, é um pouco surdo, assim como nós! – concordou a Dona Licença, enquanto soltava uma divertida gargalhada.
E foram andando. O passeio era estreito e, por isso, seguiam lado a lado muito juntinhas. Às vezes, a Dona Desculpa dava o braço à Dona Licença. Como quando foi preciso atravessar a rua e a bengala não era ajuda suficiente. Na verdade, o senhor de verde que brilhava e assobiava ao mesmo tempo andava tão depressa que de repente ficava ofegante e vermelho. Perigosamente vermelho, porque os carros parados logo começavam a rosnar e a fazer tentativas de arranque assustadoras.
- Ó Dona Desculpa, para onde vão estes senhores?! Nunca tanta pressa vi!
- Eu cá gostava mais daquele semáforo onde havia um senhor verde de chapéu e um senhor vermelho de chapéu! Eram assim como nós, demoraram mais tempo a mudar de cor.
- Só não tiravam o chapéu quando passávamos por eles – riu-se a Dona Desculpa.
- Já ninguém usa chapéu, minha querida!
- Já ninguém nos tira o chapéu! – lamentou-se a Dona Desculpa.
E continuaram. A Dona Desculpa ia com a amiga a casa do filho para matar saudades dos netos.
- Os meninos já devem estar muito crescidos – disse a Dona Licença.
- É verdade! Basta um mês sem os ver e já quase não os conheço – exagerou a Dona Desculpa.
- No nosso tempo, crescíamos mais devagar! – lembrou Dona Licença.
- Sim, mas só em altura!
- Ó minha querida, nem para o lado crescíamos, era comer pouco e andar muito! – disse, enquanto soltava uma gargalhada.
- Mas crescíamos por dentro! – afirmou a Dona Desculpa com convicção. - É aqui, chegamos.
Um homem simpático abriu a porta e convidou-as a entrar com um sorriso, estendendo também a mão para ajudar a duas senhoras a ultrapassar os dois degraus da entrada.
Já dentro de casa, perguntaram pelos garotos. A resposta não tardou, o sossego da sala ficou envergonhado com o turbilhão que a invadiu. As crianças chegaram com a mãe a correr uma atrás da outra, dando gritos de alegria. Só elas conheciam as regras daquele jogo. Os adultos olhavam-nas calados e maravilhados com aquela energia contagiante! O sonho tem a medida do sorriso, a grandeza da alegria!
De repente o mais velho, sem reparar, passou pelo meio das duas senhoras, que ainda permaneciam de pé, forçando a passagem, quase tombando a Dona Licença. A senhora equilibrou-se com dificuldade, agarrando-se à bengala. Silêncio entre os adultos. Espanto expectante. Alguns segundos. E a corrida recomeçou. Voltaram as gargalhadas. A mãe trocou um olhar sério com o pai e a Dona Desculpa ajudou a Dona Licença a sentar-se.
- Posso falar com os rapazes? – pediu a Dona Desculpa.
- Claro. É importante que oiçam o que tem para lhes dizer – respondeu a mãe.
As senhoras mais velhas trocaram um olhar simpático. A Dona Desculpa olhou depois pela janela, reparou nas árvores e sorriu à procura das melhores palavras. Os rapazes já estavam sentados à sua frente, inquietos.
- Que árvore é aquela? – perguntou, apontando para o jardim.
- Fácil, é um pinheiro – respondeu o mais novo.
- E a outra que está ao lado? – continuou.
- Oliveira – respondeu o mais novo.
- E as outras junto ao portão?
Perante o silêncio dos rapazes a Dona Licença ajudou:
- Liquidâmbares.
Antes que se levantassem, a Dona Desculpa pediu:
- Reparem nos ramos. O que acontece quando chegam perto uns dos outros?
- Não sabemos, avó.
Então a Dona desculpa levantou-se e explicou que os ramos eram tão educados que nunca ocupavam o lugar dos outros. Procuravam os espaços vazios, por onde cresciam felizes. E apontava para o pinheiro e para os liquidâmbares.
- Sabem o que dizem os ramos quando o vento os empurra e tocam uns nos outros?
O olhar dos rapazes respondia que não. A Dona Desculpa imitou-os:
- Desculpe, amigo ramo, não vi que estava aí.
- Não há, problema, caro vizinho. Já agora, dá-me licença que cresça nesta direção para que as minhas folhas tenham mais Sol?
- Ora essa, por aí não me causa qualquer transtorno.
- Já agora, sabe dizer-me por que razão ali a vizinha oliveira continua tão pequena?
- A oliveira não aprende. Não posso ajudá-la. Ninguém gosta dela. Nunca pede desculpa, nunca pede por favor, quer o espaço dela e o dos outros. Agora tem apenas o suficiente para sobreviver. É uma pena.
Os rapazes absorviam cada palavra com o olhar fixo nas mãos da Dona Desculpa que desenhavam a história carregadas de vida.
- Ó Dona desculpa, acha que os miúdos aprenderam alguma coisa com a história das árvores? – brincou a Dona Licença.
Os garotos já tinham saído para o jardim. Corriam com os braços no ar como árvores tocadas pelo vento. A dada altura, o mais novo tropeçou no mais velho e caiu desamparado.
- Desculpa! Estás bem? – perguntou preocupado o mais velho.
A Dona Desculpa sorriu satisfeita. Entretanto serviram o chá e ficaram a conversar sobre as pessoas que viram na rua e da necessidade de também elas ouvirem a história dos ramos.



Senhor Bom Dia e Senhor Obrigado

                O Senhor Bom Dia entrou na sala e percebeu que teria de esperar muito tempo para resolver o seu problema. Retirou o papelinho e atravessou o espaço em busca de uma cadeira desocupada. Olhou cada pessoa, uma por uma, à esquerda e à direita. A todas foi desejando «Bom Dia!». Silêncio. Todas se mantiveram fechadas, perdidas nos pensamentos ou perdidas na conversa que mantinham para ocupar o tempo.
Sentou-se o Senhor Bom Dia satisfeito por ter encontrado um lugar junto à janela. Ver as árvores era suficiente para suavizar a espera. Não trazia nada nas mãos. Se tivesse um telefone muito inteligente poderia tirar fotografias às árvores. Mas afastou rapidamente do pensamento aquela estupidez. Guardar as árvores dentro do telemóvel não serviria para nada. As árvores mudavam a cada momento e isso era mais interessante. Mexeu-se na cadeira, para incentivar outra ideia mais feliz.
À sua frente, duas crianças destacavam-se do grupo dos esperadores. As gargalhadas invadiam o espaço e pareciam incomodar o trabalho das senhoras que se desconcentravam do outro lado do balcão. Olhavam os papéis através dos óculos que penduravam na ponta do nariz e, de vez em quando, por cima dos óculos, soltavam um olhar reprovador abanando sapientemente a cabeça. O Senhor Bom Dia reparava divertido naquela antipatia. Furiosas, as senhoras carimbavam com estrondo os papéis dos clientes. Pareciam estaladas que as crianças não sentiam. Um dos esperadores recebeu os papéis carimbados e não sentiu necessidade de ficar obrigado. Saiu cabisbaixo. Não parecia feliz. Talvez tivesse ainda de ir esperar para outra sala igual àquela.
Nesse momento, o Senhor Bom Dia reparou no homem que entrava. Distinto, sorridente.
- Obrigado! Tenha um bom dia – agradeceu a quem o deixou entrar, mantendo a porta aberta.
Era o seu velho amigo! Esperou que atravessasse a sala e confirmou:
- Obrigado, meu caro amigo! Há quanto tempo! Sente-se aqui!
E ficaram um ao lado do outro o Senhor Obrigado e o Senhor Bom Dia.
As crianças, ao invés dos outros, não esperavam, ainda não tinham aprendido a ser esperadores. Eram elas que ocupavam o tempo. O contrário é sempre mais aborrecido. Por isso as senhoras continuavam a carimbar com violência as folhas inocentes e os adultos contavam em silêncio os minutos que ali dentro eram sempre mais longos. As crianças brincavam.
- Pedra, papel ou tesoura?
- Tesoura!
- Pedra! Ganhei!
O Senhor Bom Dia não tinha reparado mas, ao cumprimentar o amigo, tinha deixado cair o papelinho com o seu número. Uma das crianças apanhou-o e fez um avião de papel, minúsculo, mas já dava para voar! Voou pela sala com o amigo. Não precisavam de uma pista muito longa. Um o capitão, outro o passageiro. No segundo voo inverteram os papéis. Os esperadores não conseguiam voar assim. Estavam demasiado amarrados à desconfiança. As senhoras atrás do balcão continuavam a carimbar como se disparassem contra o avião de papel. Não era aquele o lugar apropriado para correr com um pedaço de papel na mão. Que horror!
- Veja, amigo Obrigado, estas crianças são como aquelas árvores lá fora.
- Não percebo onde pretende chegar, prezado amigo.
- Quero dizer que árvores e crianças são capazes de voar bem agarradas ao chão, à terra – explicou o Senhor Bom Dia.
- Nunca tinha pensado nisso. E, vendo bem, é verdade. Elas levantam os braços e descolam sem qualquer dificuldade – concordou o Senhor Obrigado.
- Tal como as árvores, veja como os ramos se elevam – apontou.
- Meu caro, Bom Dia, já reparou na torre de controlo, aqueles olhares parecem dizer que se aproxima uma tempestade. Que não está bom tempo para estas crianças voarem.
- Número dezanove. Dezanove! – ouviu-se ao mesmo tempo que o número aparecia vermelho num ecrã.
- Sou eu, quer dizer, é a minha vez – reagiu de pronto o Senhor Bom Dia. Dá-me licença, amigo Obrigado. Eu já volto. E avançou decidido para o balcão número cinco.
- Bom dia!
- O seu número? – foi a resposta que obteve.
Esperava o Senhor Bom Dia que a senhora lhe perguntasse o nome, que lhe desejasse bom dia, que levantasse o olhar, que o recebesse com um sorriso e só depois perguntasse ao que vinha.
- O seu número?
- Dezanove, cara senhora!
- Coloque o papel nesse cesto.
- Não sei onde o guardei. Espere um momento.
- Sem papel não o posso atender.
O Senhor Bom Dia procurou mais uma vez em todos os bolsos. Percorreu o chão com o olhar. Chegou até ao amigo Obrigado que se levantou e caminhou ao encontro do amigo. Também ele procurava o número a que o Senhor Bom Dia estava reduzido. Ofereceu-lhe o seu. Na pior das hipóteses dividiam a meio o acrescido tempo de espera. Além disso as crianças continuavam ali. Também as árvores.
Estavam tão concentrados na procura que não repararam no menino que puxava o casaco do Senhor Bom Dia.
- Dezanove – disse, levantando o papel o mais que podia. Estava no chão!
- Obrigado! – agradeceram os dois senhores.
O dezanove foi orgulhosamente depositado no cesto e ativou os dedos da senhora que começou imediatamente a carimbar. Enquanto isso, o Senhor Bom Dia não deixou de reparar naquele avião estacionado e impedido de voar. Discretamente, salvou-o, retirando-o do cesto.
- Aqui tem – concluiu a senhora, devolvendo os papéis.
Mais nada. Voltaram ao lugar. O Senhor Bom Dia olhou com encanto o papel mais pequeno que ainda tinha as dobras que o fizeram voar. Escreveu no verso «Obrigado!». Por sua vez, o Senhor Obrigado escreveu «Bom Dia!» que é como quem diz «Sê feliz!». Devolveram a forma de avião ao papel e entregaram-no às crianças.
- Meu caro amigo, foi uma alegria revê-lo – despediu-se o Senhor Bom Dia. – Até um dia, bom dia!
- Bom dia!
- Bom dia!
- Bom dia!
Desta vez ouviu três vozes, três respostas que tornaram mais humano aquele espaço de esperadores onde o avião voou ainda mais alto nas mãos daquelas crianças.



O Senhor Sorriso apresenta uma queixa

O Senhor sorriso saiu disposto a apresentar queixa. Estava cansado, não aguentava mais aquela situação. Contudo, entrou no carro sorridente – afinal continuava a ter razões para sorrir. Aquele era apenas um problema que resolveria facilmente com a ajuda da polícia.
Estacionou no centro da cidade e percorreu a pé o percurso até à esquadra mais próxima. Caminhou determinado, enquanto acenava amavelmente aos outros transeuntes.
- Bom dia!
- Bom dia. Faça o favor de dizer. Em que posso ajudá-lo?
- Senhor Agente, estou chocado com o que me está a acontecer ultimamente. Alguém anda a brincar com a minha cara nas redes sociais.
- Queira ir direto ao assunto, por favor.
- Sim, Claro. Resumidamente, colocaram a minha fotografia a circular nas redes sociais, sem me consultarem, contra a minha vontade. Mais grave ainda, não me revejo naquele sorriso amarelo, mais ou menos torrado, enfim, sorriso amarelo.
- Mas tem a certeza que é o senhor?
- Sem dúvida! Veja.
E apresentou-lhe as imagens que tinha guardadas no telemóvel.
- Pelo que vejo, o nome que acompanha as imagens não coincide com o seu, Senhor Sorriso…
- Está enganado, Senhor Agente. Esse facto agrava o problema. Para me ofenderem ainda mais, alguém decidiu tratar-me por Smile! Veja bem, eu batizado Sorriso, toda a vida Sorriso, ser agora tratado por Smile! Isto é uma ofensa ou, como dizem atualmente, bullying.
- Muito bem. Então o Senhor procura o responsável por estas fotos e por esta agressão verbal.
Daí a pouco, o Senhor Sorriso assinou o texto redigido pelo Senhor Agente e saiu satisfeito. Restava esperar pelos resultados da investigação.
Parou ali perto para tomar um café numa esplanada que o convidava com a sua sombra fresca e sossegada. Entretanto, desbloqueou o telemóvel para ler as mensagens entretanto recebidas.
- Outra vez estas mensagens!? Quando é que vão acabar com esta brincadeira? Bastava escrever parabéns, felicidades, abraço… enfim!
- Senhor Sorriso, Senhor…
- Desculpe, João. Não o tinha visto. Bom dia! Quero apenas um café, por favor.
- Então esse sorriso, onde o escondeu? Vejo preocupação no seu rosto.
- Nada de especial. Descobri que alguém anda a brincar comigo.
- Eu já volto com o seu café. Hoje temos poucos clientes, terei tempo para ouvir a sua história.
O Senhor Sorriso observou as árvores orgulhosas das folhas que se espreguiçavam levadas pela brisa. Os pássaros saltavam de ramo em ramo, enquanto libertavam as mais felizes melodias. Uma cena magnífica: a luz, a cor, a forma, a melodia, o perfume das flores, a frescura da brisa.
- Só falta o seu café – arriscou o Senhor João, ao colocar a chávena na mesa e percebendo que o amigo estava maravilhado com o cenário envolvente.
- Sim, só me falta saborear este café magnífico! O aroma promete uma experiência única.
- Mas diga-me então o que o preocupa.
O Senhor Sorriso contou-lhe a sua história, acabando por assegurar que já tinha ido apresentar queixa na polícia. O Senhor João parecia não mostrar muita preocupação.
- Não me parece necessária a intervenção da polícia! – interveio para discordar.
- Não?! – reagiu com espanto e algum receio.
- Calma, eu explico. O Senhor Sorriso, pelo que me tem contado, tem família espalhada pelo mundo, certo? Muito bem, repare o amigo nestas fotos.
E mostrou-lhe as imagens no telemóvel. Observaram com atenção todos os pormenores: a forma dos lábios, a posição dos olhos, a cor do rosto.
- Note estas diferenças, não pode ser o Senhor Sorriso, são com certeza familiares seus. Onde quer que haja um sorriso, há uma fotografia parecida com a sua, meu caro amigo.
- Nunca tinha pensado nisso!
Durante algum tempo tentaram identificar a origem de cada sorriso, alguns deles até eram bem divertidos.
- Mas, meu caro João, não percebo esta cor – afirmou, mantendo ainda alguma desconfiança.
- O amarelo?!
- Sim, o amarelo. Sabe muito bem o dizemos sobre o sorriso amarelo! Não me parece que seja um elogio. Alguém procura ofender-me com esta cor.
- E se mudar de perspetiva? Verá que o amarelo é muito mais do que esse amarelo do sorriso.
Os dois amigos encontraram o amarelo das flores, das aves, dos frutos, da chama que nos aquece.
- Parece-me uma cor cheia de vida! – admitiu o Senhor Sorriso.
- Sem dúvida. E já reparou na cor que atribuímos ao grande maestro da Natureza?
O Senhor Sorriso pensou imediatamente no Sol. Por momentos admitiu que seria ele o modelo daqueles sorrisos amarelos que invadiam as redes sociais com aquelas formas que até àquele momento pensava serem um insulto à sua imagem e importância.
Alguns dias mais tarde, recebeu uma missiva da polícia que procurava explicar-lhe o desenvolvimento da investigação levada a cabo até àquele momento. Ficou a saber que os seus descendentes procuravam expressar-se em todos os continentes e encontraram uma linguagem comum, que todos podem entender. Aquelas fotografias não eram, portanto, um insulto, mas a forma do sorriso para cada momento da vida. Ficava arquivada a investigação e o conselho para que se atualizasse e passasse a dar-se também pelo nome Smile.
Senhor Smile! Olhou novamente as dezenas de sorrisos e sorriu, sorriu, pensando na alegria que todos eles assinalam só comparável com o Sol que se levanta e eleva com ele toda a Natureza.



Números amigos

                - Posso entrar, Tri?
                - Hepta, meu amigo, claro, entra!
                O Hepta estava muito cansado. Já não tinha idade para aquela escadaria. Podia descer de elevador, mas detestava ficar fechado naquele cubículo. Era como andar a mando das teclas de uma máquina que o colocava alinhado ao lado dos vizinhos números para fazer deles o que queria, tirava, punha, dividia, nunca sabia o que lhe iria acontecer, dentro daquelas máquinas malucas. Portanto, preferia as escadas, uma por uma, agarrado ao corrimão.
                - Senta-te um pouco, descansa – aconselhou o Tri.
                - A cada dia que passa, parece que vivo mais afastado de ti.
                - Não digas isso, as escadas que nos unem continuam as mesmas.
                - Olha, amigo, já nem sei quantas são!
                 - Ainda me lembro do tempo em que as avançavas de um salto só…
                 - Que saudades, Tri, lembro-me muito bem!
               
Nesse tempo, os amigos números viviam entusiasmados com as brincadeiras do Tri e do Hepta. Saltavam para as casas do Tetra, do Penta e do Hexa, desafiando-os para ver qual deles era o mais rápido. O Tri era o mais entusiasta. Todos queriam ser o melhor. Nem pareciam racionais.
                - Eu sou melhor do que tu, sou tetracampeão! – justificava o Tetra, depois de ouvir o Tri.
                - E eu? Eu sou pentacampeão! Top! – orgulhava-se o Penta.
                - Chiuuu… - todos se calavam à espera da resposta – e eu? Eu fui quase, fui quase hexacampeão! – brincava o Hexa, como sempre.
                Nesse dia, o Hepta ficou calado algum tempo. Não se lembrava de ter sido campeão tantas vezes. E também não gostava muito daquelas correrias escada-acima-escada-abaixo. Desde pequeno, aprendera também a observar. A ficar em silêncio por alguns momentos. Só assim escutava as melodias que o ruído dos amigos ocultava.
                - Eu sou o campeão das maravilhas! – respondeu por fim o Hepta.
                Perante o silêncio expectante dos amigos, o Penta arriscou:
                 - Das sete maravilhas do mundo?
                 - Não, Penta. Comando os meus sentidos e eles obedecem-me.
                E explicou que cada um deles era uma porta aberta. Dedicava-lhes os dias da semana: um para observar, outro para encontrar formas, outro para descobrir aromas, outro para experimentar delicadamente os sabores, outro para escutar.
                 - E dormes nos dias que restam? – troçou o Tetra.
                 - Não, num deles, procuro a maravilha capaz de deliciar todos os meus sentidos. No último, descanso. Preparo-os para as descobertas seguintes.
                 O Hepta era o número mais velho e procurava mostrar aos amigos que era bom subirem e descerem escadas, perderem-se nas entranhas de uma máquina que os multiplicava ou dividia. Porém, muito melhor descobrir as maravilhas.
                 - E tem de ser assim, um dia para cada porta? – interessou-se o Tri.
                 - Não, mas é necessário que cada uma delas não esteja fechada durante muito tempo. Se assim não for, ficará muito pesada e será cada vez mais difícil abri-la. Pouco a pouco, esquecemo-nos que ela existe e para ali fica escondida, desaparecida.

                 - Nunca esqueci o que nos dizias nesse tempo, Hepta. Todos te devemos a sábia insatisfação – agradeceu o Tri, regressando das memórias que acabava de visitar com o amigo.
                 - Sim, sábia insatisfação. Não me conformo ainda hoje. Sabemos muito, temos a cabeça cheia de coisas, de muitos números, que podem ser inúteis. É ridículo conhecer o músico e não ouvir a sua música. Conhecer a receita e nunca a ter saboreado.
                 - O Tetra e o Hexa têm aparecido? – perguntou o Tri.
                 - Há muito que não os vejo. Só mesmo quando precisam de fazer umas operações mais complicadas. Ainda não se dão bem quando os obrigam a multiplicações e divisões.
                 - Não mudaram nada…
                 - …desistentes, quando aumentam a dificuldade – concordou o Hepta.
                 - Não perceberam a lição das maravilhas.
                 - Talvez.
                 - E o Penta?
                 - Está muito bem. Continua a descobrir, nunca satisfeito. Foi ele que me explicou as notas musicais. Agora escuto os sons com mais encanto.
                - Mais logo, recebo aqui em casa os nossos números vizinhos. Queres ficar? – propôs o Tri.
                 - Claro! Com muito gosto.
O encontro que se aproximava seria uma oportunidade para rever os velhos amigos.
- Além disso, não te apetece subir as escadas até ao sétimo andar, verdade? – observou o Tri, enquanto soltava uma divertida gargalhada.



A Idade Menina tornou-se Maior

A Idade Menina chegou a casa. Saiu do carro e caminhou em direção ao portão.
- Até logo. Se precisares, liga.
- Até logo – respondeu.
O pai voltou para a cidade. Ela, introvertida, atravessou o jardim.
Não reparou que o botão da peónia tinha cedido ao abraço do Sol e abrira em flor como quem sorri a quem passa.
Não reparou na borboleta que esvoaçava de flor em flor orgulhosa das cores que o Sol lhe oferecera, no dia em que voara pela primeira vez. Tanto tempo desejou voar que agora não sabia se havia de voar ou de pousar. Andava por ali, indecisa, de flor em flor. Voar ou pousar? Pousar e voar.
Não reparou no pássaro que saltava de ramo em ramo, ensaiando pequenos voos, sempre tentado pelos mais afastados. Tanto tempo desejou voar mas agora não sabia se havia de voar ou de pousar. Voar ou pousar? Pousar e voar.
Entrou em casa. Continuava ensimesmada. Voltou atrás para confirmar se tinha fechado a porta.
Sentou-se a Idade Menina a pensar na Idade Maior. Ficaram de encontrar-se, aproximava-se o momento. Procurou as notificações. Nada. Tanto tempo o desejou, tanto tempo o preparou. Sabia que voaria nos sonhos que desenhara no tempo em que os sonhos ainda não eram sonhos. Sabia que seguiria pelo caminho a escolher na encruzilhada. Voar ou pousar? Pousar e voar.
Voltou ao jardim. Levantou o olhar e, desta vez, reparou no pássaro que aprendia a voar. Observou ainda a borboleta que pousava delicadamente na peónia que acenava agradecida.
- É linda, não é? – perguntou a mãe.
- O quê? – estranhou a Idade Menina.
- A flor da peónia?
- Sim.
- A escolha delas é mais fácil – continuou a mãe.
- Sim, não têm escolha, dão flor.
- Já decidiste?
As escolhas tornavam a Idade Menina Maior, voaria com as asas coloridas de sonhos. E reparou novamente no pássaro que regressava do voo inaugural, certo de que controlava o seu voo e isso fazia dele um pássaro maior. Voar ou pousar? Pousar ou voar? Voar e pousar.

A Idade Menina tornou-se Maior e vai voar certa de que terá sempre onde pousar e de que será sempre maior.


A princesa que queria um abraço
           
Entre o móvel e a parede havia um espaço apertado. Parecia que o mundo todo cabia naquele lugar onde ela se refugiava. Daí lançava o seu protesto, como uma tartaruga recolhida na sua concha.
- Não quero este vestido!
- …
- Não quero estas sandálias!
- …
- Não quero este gancho!
- …
- Este vestido não roda!
- …
- Não quero os botões apertados!
A princesa permanecia sentada de braços cruzados sobre o peito, de rosto em banda, lábio inferir sobreposto e exageradamente voltado para o exterior. Olhava de soslaio.
- …
- Não quero ver um filme!
- …
- Não quero brincar!
- …
- Não sou linda!
O olhar começava a ceder, mas o sorriso permanecia escondido.
- Queres fazer uma roda?
- Não quero fazer rodas!
Nesse momento, já me olhava, mas ainda cabisbaixa, queixo encostado ao peito.
- Queres um beijinho?
- Não quero beijos!
Não queria mas estendia os braços em forma de súplica. As portas da fortaleza abriam-se finalmente.
- Um abraço no meu colo?
Acenou afirmativamente e deixou-se envolver como quem se refugia num abraço seguro. Uns minutos ficamos assim. Repentinamente:
- Posso fazer uma roda?
- …?
- Queres ver?
Caminhou até ao meio da sala. Certificou-se várias vezes se ainda a olhava. Assim fiz.
Sorriu, abriu os braços em forma de tê, flexionou uma das pernas em forma de quatro, manteve por segundos o equilíbrio e rodou três vezes, elegante e segura. Olhou-me no fim vitoriosa e afastou-se sorridente.
Daí a pouco brincava no quarto. Falava com as bonecas devidamente alinhadas e atentas.
- Tu és a princesa amuada. Tu a princesa sorridente.
Satisfeito, fui preparar o jantar. Daí a pouco, ao meu lado:
- O que é o jantar?
- …
- Não gosto de batatas!
- …
- Não gosto de peixinho!
Desta vez era a princesa mais nova que não desistia:
- Arroz e carne! Arroz e carne!
- Queres brincar com a mana!
- Arroz e carne!
Precisava urgentemente de subir àquele castelo e salvar mais uma princesa amuada.
  


Pai, quantas ondas tem o mar?

A Clara continuava na água. Abraçava as ondas e deixava-se levar qual capitão à proa do barco da imaginação. Atracava feliz e logo se voltava para sulcar a seguinte.
O pai permanecia sentado, observava aquele vaivém e também ele navegava em cada onda que beijava inocentemente a areia.
- Pai, viste o meu mergulho? – perguntou, enquanto se aproximava.
O pai acenou afirmativamente, evitando as palavras e o olhar. Não queria regressar daquela viagem que a imensidão sempre proporciona. A menina, curiosa, perspicaz, feita de perguntas e saberes nunca satisfeitos, sentou-se e ficou também a olhar.
- Estás a ver ou estás a pensar?
- As duas coisas… – respondeu o pai, inseguro.
- Posso fazer-te uma pergunta? – continuou, procurando melhor posição na areia.
- Sim.
- Quantas ondas tem o mar?
O pai levantou os óculos escuros para ver melhor o rosto da criança e não encontrou sinais de brincadeira. Reparou, sim, na dúvida que permanecia no olhar concentrado e insatisfeito.
- Não estava à espera de uma pergunta tão difícil. É o mesmo que querer saber quantas pingas tem a chuva… - arriscou. Tu sabes quantas gotas tem a chuva?
- Depende. Se for num dia de tempestade, é mais difícil.
Calaram-se. A melhor resposta acontece no silêncio. A menina voltou ao mar.
Quantas ondas tem o mar?!
Quantas pingas tem a chuva?!
Depende do tempo que dás ao mar,
Depende do tempo que dás à chuva!
Quantos abraços tem o amor?
Depende…
Quantos sorrisos tem a amizade?
Depende…
Quantas lágrimas tem a tristeza?
Depende do tempo que demoras a encontrar alguém.
Quantas lágrimas tem a alegria?
Depende do tempo que demoras a perder alguém.
Quantos suspiros tem a esperança?
Depende do tempo que presente dá ao futuro.

Repentinamente, sentiu-se agarrado. Oito braços arrastaram-no para o mar, quatro suspiros de esperança, o Mateus, a Clara, a Teresa e a Inês. Ao lado, outro sorriso maravilhado, maior.
- Os meus óculos?
– Já não precisas deles – respondeu a Clara, mostrando-os. – Aqui, contas melhor as ondas.
Sim, ali sentia o abraço das ondas




Mãe, emprestas-me um beijinho?

A Teresa rodava no centro da sala com os braços esticados sobre a cabeça. Era uma bailarina encantada pela música, rodopiava nos braços da melodia.
- Mãe, olha para mim! Vês, já sei dançar!
- Linda! Que princesa tão linda!
E logo a envolveu num abraço, emprestando-lhe um beijo no rosto. A menina olhou-a de uma forma inesquecível. Nos olhos, um tempo indistinto, um tempo sem tempo que reunia ali todos os tempos. O beijo provocou-lhe uma explosão interior sentida no olhar, uma alegria que se alargava no sorriso e se apertava no abraço que reafirmou à volta do pescoço da mãe.
Depois afastou-se para reencontrar-se com os amigos de peluche que aguardavam pela sua imaginação.
- Vem cá, pequenino, estás com frio?
Agarrou-o, envolveu-o num pequeno cobertor e ofereceu-lhe um beijo demorado.
O Mateus também estava na sala. Tinha reparado com curiosidade na irmã e na mãe.
- Também me davas beijos assim?
Como não obteve resposta, aproximou-se e encostou a cabeça no ombro da mãe que se tinha sentado no sofá.
- Diz, filho, não percebi.
- Mãe, tenho uma pergunta para te fazer.
- Sim.
- Porque é que os pais dão beijinhos aos filhos?
- Tu gostas dos meus beijinhos?
Em resposta, apenas o movimento afirmativo da cabeça e um abraço. Algum tempo assim, para depois dar espaço a mais uma dúvida:
- Porque é que tu emprestas os beijos? Emprestas-me, emprestas às minhas irmãs. Todas as pessoas dão os beijos… Não entendo.
Esta era uma pergunta que há muito a mãe esperava. Também ela a tinha feito.
- Empresto-te os beijinhos. Deixo-os no teu rosto, mas não quero que os amarres a ti para sempre.
- Não percebo, mãe. Queres que tos devolva?
- Um dia saberás!
Não era o momento ainda. Para já, aqueles beijos ficavam ali. Medalhas de amor no rosto de cada filho. Marcas que voltarão sobre a forma de um abraço, de um sorriso e de tempo, sobretudo tempo.
- Emprestas-me um beijinho?
- Mais um? – reagiu a mãe com um sorriso feliz. – Assim a tua dívida aumenta ainda mais!
- Achas que não consigo devolver-tos?
A mãe não tinha dúvidas quanto à resposta que transmitiu apenas com o olhar.
- Vou jogar à bola!
E lá foi com mais uma medalha no rosto que lhe incendiava o peito. Tinha para já uma certeza: um beijo obrigava-o a estar por perto, à distância de um abraço.

  


A princesa que não queria ler

De entre as inúmeras companheiras que a ela se encostavam na estante, fora ela a escolhida. Inesquecível o momento em que sentiu o indicador a percorrer a sua lombada. Quando percebeu que a puxavam, arrepiou-se, susteve a respiração e fechou os olhos. Nem teve tempo de se despedir das histórias amigas. Mas a ideia de que ia fazer história aos olhos de uma criança imediatamente apagou essa mágoa.
Porém, quando reabriu os olhos, sentiu algum receio. Tudo tinha ficado escuro e sentia-se muito apertada entre as folhas. As amigas já a tinha prevenido para essa possibilidade. Seria só por umas horas. Aguentou firme até ao momento em que ouviu um ruído arrepiante. Nesse instante, apodereou-se dela um medo terrrível, pensava que cada palavra podia dividir-se para sempre, sílaba por sílaba… Ficou lívida, a cor das letras confundia-se naquele momento com a cor das folhas. “Será que estão a rasgar as minhas páginas, espaço onde habito e faço sentido?”
Depressa percebeu que alguém desfazia o papel que a embrulhava. E de novo se sentiu confiante. Em breve, daria de caras com os olhos de uma criança curiosa. Por isso, não deixou de espreitar pelas estreitas janelas que o espaço entre cada folha permitia. Quem seria?

- Um livro! – conseguiu ouvir.
- Sim, um livro, aquele que a professora sugeriu, lembras-te?
- Um livro! – desta vez ouviu melhor e sentiu algum desalento nas palavras da princesa.
- Sim. Já reparaste na ilustração? E o título, já leste o título?
- Sim, não me parece nada de especial - respondeu com desdém.
- É capaz de ser engraçado, não achas?

A história continuava em cima da mesa e sentia-se muito maltratada. Pediu então à lombada que apertasse as folhas para poder ficar completamente às escuras. É que corria o risco de ficar perdida no fundo de uma gaveta, de ficar esquecida numa estante abandonada no sótão. Sentiu, por isso, uma tontura e escondeu-se atrás de todos os circunflexos, dos parênteses e das aspas que conseguiu reunir. Não aguentava aquela humilhação.

- Não gosto de ler! - ouviu ainda.

Nesse momento, refugiou-se nas páginas centrais para não continuar a ouvir as barbaridades que lhe manchavam as folhas. Ficou completamente desalinhada.
Daí a pouco, reuniu os parágrafos para recolher opiniões. Eles estavam habituados a suportar a sua mudança de humor sempre que mudava de linha. É que as palavras nem sempre aceitavam com facilidade passar para a linha seguinte, por preguiça ou por não quererem separar-se das amigas mais chegadas.
- Não temos solução para este problema. Com sorte, pode ser que voltemos à estante e à companhia das tuas amigas histórias. Falamos há pouco com um folheto perdido e encostado à folha de rosto, chamam-lhe talão de troca. Contou-nos que só ele poderá fazer-nos regressar.
- Pois, neste momento, ainda será o melhor para nós– reagiu a história ainda muito encolhida.
- Eu tenho ainda mais receio – interveio o marcador. A qualquer momento posso cair ao chão e ninguém se lembra de me socorrer. Tenho muitos amigos que terminaram assim ou foram parar ao interior de histórias horríveis, insuportáveis.
 - Vamos deixar o livro no quarto da menina – ouviram uma voz que lhes pareceu simpática.
 A história nem teve tempo de se reposicionar nas páginas. Daí a pouco, sentia a capa numa pequena mesa ao lado da cama da princesa. Imediatamente, pediu ao marcador para ficar alerta. Era ele o único que tinha o privilégio de ver para além das folhas, qual periscópio de um submarino a navegar num mar de palavras.
- Silêncio! – ordenou o marcador.
Todos ficaram quietos. Suspensos. E agora?
- Naaaaaaaaaaaão! - quis gritar a história mas atempadamente impedida pelas badanas.
O marcador tinha decidido. Deixara-se cair.

No silêncio escuro, a princesa quis saber de onde vinha aquele barulhinho. Ligou a luz do telemóvel e procurou no chão. Rapidamente, decobriu o marcador e abriu o livro para o abandonar na primeira página que o quisesse receber.
Abriu uma, abriu outra e mais outra. Não se decidia. Cobriu a cabeça com o lençol e releu o título. Toda a história se escondeu atrás da folha de rosto e rezou para que a princesa virasse mais uma página.
O silêncio era luz quase suficiente. As palavras, o silêncio, a luz.
Virou e leu! Passou a barreira do título e avançou!
O folheto encostou-se à badana e adormeceu descansado. O marcador sentia-se admiravelmente preso entre o polegar da princesa e a folha onde a história acontecia.
A princesa e a história estavam agora juntas, o mundo acontecia naquele pedaço de luz que se escondia no silêncio do quarto. Nenhuma delas ouviu o movimento satisfeito da porta que se deixou encostar, nem a frase sussurrada e feliz:
- Voltamos quando adormecer, naquela tenda há duas histórias para contar!



Diálogos (im)possíveis a caminho de casa

O Mateus tinha finalmente conquistado o lugar da frente ao lado do condutor. Olhava fixamente um ponto no horizonte e mantinha um sorriso discreto de vitória. Endireitava também as costas para que ninguém tivesse dúvidas da sua altura. A Clara resolveu então interromper aquele momento de glória:
- Pai, já sei as minhas notas, tirei satisfaz ple…
- Clara, por favor, o pai está cansado. Não vais falar agora dessas coisas. A tua geração é mesmo chata! – cortou o Mateus.
A Clara não se deu por vencida.
- O que é uma geração?
- Nem sequer sabes o que é uma geração?!
- É, até parece. Diz-me lá então o que é uma geração!
- Pai, diz à Clara o que é uma geração. Já estou cansado de a ouvir!
O pai conduzia em direção a casa. Estava realmente cansado, mas aquela conversa provocou-lhe uma gargalhada que ele tentou suster sem sucesso. De repente, ela explodiu-lhe nos lábios e nos olhos. Foi risota geral, imparável e contagiosa. Só parou quando uma voz meiga e frágil rompeu, impondo seriedade:
- E eu, pai? E eu? Não me perguntas?
- Pergunto o quê, Teresa?
- Não me perguntas como foi o meu dia?!
- Diz, Teresa, como foi o teu dia? – tentou o Mateus.
- Cala-te, não és tu, Mateus – protestou.
- Sim, Teresa, eu falo contigo. Como foi o teu dia?
Pelo retrovisor, o pai conseguiu ver o sorriso feliz da filha que tinha conquistado também o seu espaço.
- Posso dizer-te as minhas notas?
- Clara, o pai está a falar com a Teresa!
- Cala-te, Mateus, o pai é que sabe.
- Pai, quando chegar a casa, posso andar de bicicleta?
- Oooooooh, Maaaaaaaaateus! Não és tu que falas! – queixou-se novamente a Teresa.
 A noite tinha avançado sem avisar, dando a sensação de que a Natureza sabiamente se recolhia mais cedo, para espanto das pessoas, que continuavam a fazer as mesmas tarefas a um ritmo ainda mais alucinante.
- Não há tempo, filho. Além disso, já anoiteceu e, em breve, vai chover.
Algum tempo de silêncio e umas centenas de metros percorridos. Os olhos vagueavam pelas casas e pelas árvores, sem ocupar o pensamento que se perdia nas recordações do dia. Só nesse momento perceberam que o rádio murmurava baixinho.
- Pai, porque é que a tempestade se chama Beatriz? – irrompeu o Mateus.
- Não sei bem, parece que as pessoas têm mais cuidado se a tempestade tiver um nome…
- Podia chamar-se Clara – continuou, fitando de soslaio a irmã.
Mas a Clara não lhe prestou atenção. Tinha reparado numa varanda bastante iluminada.
- Que dia é hoje, pai?
- Estamos no início de novembro, dia sete.
- Viste as luzes naquela varanda? Já têm a iluminação de Natal! – estranhou a Clara.
- Sim.
- Se calhar é uma família que veio da Austrália – tentou o Mateus.
- Não percebi, Mateus – interveio o pai.
- Não percebes? Lá o Natal é no verão…
- E então?
- Por isso põem as luzes mais cedo… qualquer dia, fazem árvore em agosto para respeitar a estação do ano.
- O Natal acontece no mesmo dia em todos os países, a estação do ano é que pode não ser a mesma – insistiu o pai, para que não houvesse dúvidas.
- Estava a brincar, contigo, pai!
- Também já podemos fazer a nossa árvore de Natal? – pediu a Clara.
- Ainda é muito cedo – intrometeu-se o Mateus.
- Não é nada, assim, o Pai Natal pode preparar com mais calma os nossos presentes!
- Clara, por favor, o Pai Natal já não…
O pai não deixou o Mateus acabar a frase. Interrompeu-o de forma abrupta com o olhar. Não queria que o mundo de repente ficasse cinzento, da cor dos adultos. A Clara e a Teresa pintavam-no de cor-de-rosa e ainda era cedo para passarem ao lápis de carvão. Por vezes, conhecer é sofrer.
Voltou o silêncio. O portão abriu passagem e o carro seguiu para o alpendre.
- Papai, podemos escrever uma carta ao Pai Natal?
- Sim, Teresa.
- Papai, a Teresa gosta muito de você!
O pai desligou o carro, suspirou, preparou-se para o desembarque e prometeu que tinha de ver o que se passava com o Youtube.
- Pai, posso ir ao computador?
- Mateus, eu estava primeiro! – protestou a Clara.
- Papá, deixei o gatinho na escola! Eu quero o gatinho!
- Pai, sou eu não sou? – insistiu o Mateus.
- Primeiro, vamos ver se há trabalhos para fazer.
E abriu a porta de casa cercado de protestos. Mas nada que uma boa notícia não resolvesse.
- Quem quer ir visitar o Francisco?
Todos queriam, claro!
- Se fizerem os trabalhos, depois do jantar, vão com a mãe.
- Viva!
O Francisco era o primo mais novo recém-nascido. Com ele o mundo mantinha a cor e o sentido.
- Viva!


Mãe, quando for crescido, posso ir à Lua?

O Gabriel estava sentado sofá. Sentado não, pois parecia um acrobata: uma perna na China, outra em Portugal. Tinha numa das mãos o comando que disparava ordens em busca do canal desejado. E a pobre televisão lá soluçava um de cada vez espantada com a indecisão do rapaz.
Mesmo ao lado, a Mariana deslizava pelas publicações de uma rede qualquer sem saber ao certo o que procurava. Fixava de quando em vez uma foto que esticava e encolhia para logo voltar à patinagem com o polegar no rinque colorido e brilhante.
A mãe estava ali perto cercada de equações que às vezes não cabem nos números. Nesses casos, a solução foge por entre os sinais quase sempre limitadores para se fixar na beleza do Sol que beija o mar ao fim da tarde. E tudo acontecia ali ao lado. Cansada de alinhar números, levantou-se e caminhou pela sala, bebendo lentamente o café ainda morno. A dada altura, o Gabriel seguiu-a com o olhar. Aqueles olhos enormes, sedentos de respostas, questionaram em silêncio a inquietude da mãe. Queria o rapaz saber por que razão os olhos dela não se encontravam com os seus.
- Mãe, porque caminhas sem ver ninguém, como se estivesses a ver o teu próprio pensamento?
- Por favor, Gabriel! A mãe está a trabalhar! – admoestou-o a Mariana sem levantar os olhos do telemóvel.
- Não estou a falar contigo! – protestou o Gabriel.
A mãe continuou pela sala, passeando para embalar o pensamento. Pouco depois, aproximou-se da janela. O Sol imediatamente lhe beijou o rosto, destacando a cor aveludada dos olhos, que também pode ser de esperança.
- Porque pensas tanto, mãe? – tentou o Gabriel, enquanto lhe tocava suavemente no braço e olhava também o longe.
- Não estás a ver televisão? – perguntou como quem quer ficar só.
- Não me apetece ver mais. Estás preocupada?
- Não, Gabriel, estou apenas a tentar encontrar o caminho que pretendo percorrer.
- Mete na aplicação do telemóvel. Com GPS é mais fácil! – sugeriu o pequeno.
A mãe sorriu e afagou o cabelo desalinhado do menino que imediatamente percebeu que aquele itinerário não aparecia no Google Maps. A mãe explicou-lhe depois que era necessário desvendá-lo passo a passo, centímetro a centímetro. A cada momento tomar decisões, fazer escolhas.
- Mas nunca ninguém percorreu esse caminho, mãe?
- Não, sou eu que inauguro cada pedacinho que descubro e percorro.
- De que é que estás a falar, mãe? – interveio a Mariana que entretanto se interessara pela conversa.
- Dos sonhos que torno realidade, filha!
Por instantes ficaram calados. O Sol desenhava no mar uma linha contínua, parecia um caminho brilhante em direção ao colo do horizonte.
- Mãe, quando for crescido, posso ir à Lua?
- Claro!
Claro que ir à Lua era importante. A Lua poderia vir a mudar de forma e de nome, mas o importante era querer ir à Lua! O importante era querer.
E assim permaneceram mais algum tempo, embalados pelo sonho, ensaiando o passo seguinte.
Pai, senta-te aqui
                O Mateus chegou calado. Trazia a mochila às costas, a lancheira a tiracolo, o casaco perdido no braço e o saco da natação suspenso no ombro. Os sonhos ocupavam o espaço disponível, onde, por vezes, ficavam muito apertadinhos.
                Um dos livros espreitava por uma pequena abertura da mochila, estava preocupado com a lentidão desanimada do rapaz e com a pergunta que ele trazia suspensa no olhar - queria saber quanto era cem por cento.
- Depende – respondeu o pai, enquanto abria a porta de casa. - Se conseguires responder corretamente a todas as perguntas de um teste, poderás alcançar cem por cento. Imagina um jogo onde, para chegares à meta, tens de ultrapassar cem obstáculos. Quando conseguires chegar ao fim, tens cem por cento; porque ultrapassaste todos os obstáculos, conquistaste todos os pontos.
- Sim, pai, mas posso não ser o primeiro...
Com esta não contava! O pai percebeu que o problema era bem mais difícil de resolver. Encontrar a justa medida entre a capacidade e o necessário esforço, o equilíbrio entre o desejo e a possibilidade, era uma tarefa árdua.
- Não precisas de ser o primeiro e nem sempre é necessário chegar à meta - contrapôs o pai.
- Pai, estás a dizer que o esforço é desnecessário?
- Não, digo que tens de continuar a estudar com dedicação, se necessário, com sacrifício. Mas também quero dizer-te que não cortar a meta pode ser mais extraordinário do que ultrapassá-la em primeiro lugar.
Tinha o pai criado um enigma que o silêncio aprofundava a cada minuto que passava. Nem a Tartaruga nem a Lebre o salvariam naquele momento. Pela abertura da mochila abandonada junto ao sofá, o livro que dizia ser de Português ainda tentou dar-lhe uma sugestão, mas não conseguia abrir a boca, apertado como estava entre os colegas de História e Geografia de Portugal e o de Matemática. Dir-lhe-ia que a história da Cigarra e da Formiga poderia ajudar.
 - Às vezes, o percurso é mais agradável do que a chegada, filho!
O Mateus ouviu e guardou as palavras. Na verdade, sentia-se um atleta de alta competição, tal como os amigos. Mas havia um problema, treinavam todos em dezenas de modalidades ao mesmo tempo, e todos queriam ser o melhor em qualquer delas. Tarefa quase sempre impossível que os deixava inquietos e impacientes. Não tinham tempo para olhar pela janela enquanto viajavam. Sempre insatisfeitos, frequentavam depois aulas para curar a insatisfação, como se a brincadeira pudesse ser orientada.
Os livros entreolharam-se. Tinham percebido a resposta. O Mateus também.
- Tu olhas pela janela enquanto viajas, pai?
- Diz? – disfarçou o pai, enquanto se dirigia para o portátil.
- Podes sentar-te aqui ao meu lado?
- Não posso agora, tenho de ver um mail
- Mãe, podes sentar-te aqui um pouco?
A mãe, surpreendida, rendeu-se ao convite. Também o pai acabou por não resistir. Daí a pouco, o sofá era pequeno e as mantinhas insuficientes.
Era bom olhar pela janela.
Ali eram lebre e tartaruga, cigarra e formiga, pensaram os livros que também se aconchegavam para descansar após um dia extenuante.
Ali os sonhos tinham mais espaço. Toda a insatisfação encontrava respostas no ombro do lado e nos olhos que finalmente se fitavam. Todos eram cem por cento, melhor, sem por cento.


Pai, com quem vou ficar?

O menino tinha a pergunta suspensa nos olhos que naquele momento mantinha escondidos com as mãos. As palavras alinhadas no pensamento formavam uma onda que daria lugar a um silêncio assustador. Arriscaria? Tocou no ombro do pai que se encontrava no banco da frente. Parecia uma ilha. Olhava fixamente sem ver absolutamente nada.
- Com quem fico este fim de semana?
O silêncio confirmou-se.
De um lado, a insegurança, a incerteza que, como a sombra, pode impedir o crescimento. Do outro, a divisão, a bifurcação: onde antes era um, agora eram dois os caminhos. A dividi-los um fosso de segurança. O menino percorreria ora um, ora outro.
O silêncio continuava. Será que devia ter feito aquela pergunta?
Reparou pela janela do carro nas aves alinhadas num fio elétrico ali perto. Eram centenas, imóveis, à espera. Em breve partiriam rumo a zonas mais quentes, fugindo do longo inverno prestes a começar. Lá longe encontrariam as cores da segurança. Depois voltariam de novo ali para partilhar as aventuras de mais uma viagem. Era preciso deixar o lugar, soltar as amarras. A novidade da viagem é sempre mais do que a certeza de quem fica.
O pai do menino saiu do carro e voltou a entrar, sentando-se ao lado filho, sem libertar uma palavra que fosse.
- Já viste aquelas aves, pai?
- Não, não tinha reparado. Preparam-se para partir – acabou por afirmar.
- Já sabia. O que estarão a sentir?
- Não sei bem. Se eu estivesse no lugar delas, estaria a sentir medo e entusiasmo.
- Porquê?
- Medo, porque não saberia o que iria encontrar durante a viagem; entusiasmo, porque há sempre um prémio para quem arrisca e quer descobrir, para quem tem um sonho e procura realizá-lo!
- Achas que eu sou assim como aquelas aves?
O pai não controlou uma gotinha que rolou pelo rosto.
- Não quero sair deste fio, pai!
Um abraço uniu-os longamente.
O menino carregava assim o coração para a viagem. Ambos sabiam que o carinho precisa de carregamentos frequentes e que nos torna mais brilhantes.
- Vais ficar bem! Cada viagem que fazes é uma oportunidade. Não a desperdices. Daqui levas novidades boas. Quando voltares quero que me fales do Sol, do arco-íris, das árvores, dos rios – dizia ainda abraçado ao filho, fixando as aves que continuavam à espera.
Um carro tinha acabado de estacionar mesmo lado. O menino foi o primeiro a vê-lo. Estava na hora de partir, largar o fio. Beijou o rosto do pai que, de imediato, pegou no saco que fez questão de entregar à senhora que já esperava no exterior.
- Olá, mãe! – disse, enquanto lhe oferecia um beijo desejado. - Até segunda, pai!
E partiram.
- Mãe, viste as aves alinhadas?
- Sim. Preparam-se para partir para outras terras. – respondeu.
- Eu também estou sempre a chegar e a partir!
- Sim… espero que as tuas asas fiquem cada vez mais fortes!
 O menino compreenderia com o tempo estas palavras. Naquele momento, reparava já numa das aves que arriscara o voo inaugural e que todas as outras a seguiam.
Em breve voltariam.





Um piano que nos toca

Ela levantou-se e fixou o longe pela janela por onde o Sol tinha invadido o quarto. O olhar encontrou-se por momentos com a luz – o brilho e a profundidade líquida uniram-se num abraço ímpar.
Lá fora, a manhã ensaiava o vestido verde que tinha escolhido para aquele dia e o vento brincava com as folhas das videiras alinhadas.
Ela sorriu e fechou os olhos para inspirar todas as cores. Paulatinamente uma melodia ganhou espaço e com ela viu-se menina sentada no tapete da sala com janelas enormes por onde se via o mar. Viu-se no tempo em que descobriu que o mar cercara de espanto a terra. O mar cercava a sua terra! Nunca deixou de a abraçar! Ao final da tarde, beijava-a com ondas suaves. Depois preparava-se para ouvir.
Ao seu lado, outros meninos sentados, abraçavam os joelhos e a eles encostavam o rosto, espreitando apenas os olhitos para ouvir melhor.
Silêncio! O Professor ia começar!
O Professor sorria-lhes, enquanto preparava o banco. Inspirava depois como quem pede licença e a beleza acontecia em cada tecla beijada levemente pelos dedos. A melodia era arco-íris, era arrepio, era bolo de milho, era doce aroma do Pico. Um eco que permaneceu na memória e que volta sempre num sorriso, numa lágrima alegre, num gesto carinhoso, numa sensibilidade que só a música e a dança sabem esculpir.
O mar permanece pasmado a olhar a terra. A terra continua a vestir-se de verde para o receber.
Agora, longe, ela continua a oferecer cada nota que a infância guardou feliz. Ao seu lado, sempre os meninos, “conchas puras”, que só ela sabe preencher com melodias que vêm de longe, que acalmam a curiosidade, ecoam no coração.
Um piano que nos toca.



Até onde gostas de mim?

                - Adoro-te!
                E fechava os olhos para sentir melhor o abraço embalado. O beijo vinha depois. Com ele marcava o amor maternal que as palavras timidamente diziam. O abraço e o beijo vão sempre mais longe.
                - Até onde gostas de mim? – quis saber o Mateus, trazendo ao presente aquela música que tantas vezes ouvira.
                - Diz-me tu: até onde vai o meu amor? – contornou a mãe.
                - Eu gosto de ti até ao meu coração!
                - Essa medida já conheço! – protestou enquanto lhe fazia cócegas.
                - Até à lua!
                O olhar carinhosamente ameaçador da mãe fê-lo reconsiderar:
                - Até ao Sol!
                - Melhorou ligeiramente!
                - E tu, mãe? – desafiou.
                - Os meus olhos não alcançam a medida do que sinto por ti.
                - Poderás usar uns óculos ou um telescópio! – gracejou.

                Nesse momento, a Teresa passava a correr perseguida em grande alarido pela Clara. Tropeçou mesmo à frente da mãe que, num ápice, a agarrou. A Clara ficou estupefacta com a queda da irmã e muito mais com a rapidez da mãe. Correu para as duas e abraçou-as aliviada.
                - Acho que o amor se mede melhor ao perto! – comentou a Inês, levantando o olhar do aparelho onde parecia estar concentrada.
                 - Também me parece que o amor não mede mais do que a distância de um abraço! – concordou o pai.
                A Teresa recuperou facilmente do susto e a Clara voltou a sorrir:
- Vamos brincar?
E voaram novamente pela sala, bailarinas ao ritmo da imaginação, enquanto o Mateus tentava ainda compreender por que razão tinha sido disparado dos braços da mãe. O tempo trará a resposta.

- Gosto muito de ti!
Nesse momento, a Inês sorriu e convidou sub-repticiamente o Mateus a sair da sala. A mãe também tinha ouvido aquelas palavras do pai e fingia não ser o seu destinatário.
- Gosto muito de ti! – reforçou.
- Eu sei! – respondeu, fixando-o.
- Não me perguntas até onde?
- Pois eu gosto mais deles do que de ti! – desafiou-o, enquanto se levantava.
Algum tempo ficaram calados. Ele pensava aparentemente desarmado. Ela aguardava. Naquela resposta também estava o sentido da vida que parecia perdido naquele instante. Por momentos, fixou a chama que ela avivava na lareira, depois arriscou.
- Queres dizer que em cada um deles há uma adição? - Ela sorriu, incentivando-o a continuar. - Que ao que sentes por cada um deles somas o que sentes por mim?
Seguiu-se um aceno afirmativo e um encolher de ombros como quem garante uma simplicidade.
Então o olhar dele discordou ligeiramente:
- Concordo, mas proponho uma pequena alteração: em cada um deles tu multiplicas!

Daí a pouco, estavam todos no sofá.
- Qual é o filme? – quis saber a Teresa.
- “Sozinho em casa!” – gritaram os outros.
As mantinhas chegavam para todos!

           




O sorriso da Bisa

Os meninos estranharam a presença da mãe na escola àquela hora. A Teresa correu para ela, seguindo pelo caminho que o sorriso abria. Os seus braços encontraram rapidamente os da mãe que a recolheram num longo abraço.
- Porque é que vieste buscar-nos? - estranhou a Clara.
- Hoje saíste mais cedo? - quis saber o Mateus.
- Depois explico melhor. Vistam os casacos, lá fora está muito frio.
Seguiram atrás da mãe que levava nos olhos a notícia que em breve encontraria forma nas palavras certas. 
O Sol ainda espreitava no horizonte, protestando com a noite que chegava ainda mais fria do que a anterior. A noite, por sua vez, defendia-se, dizendo-lhe que a culpa afinal era dele, pois andava mais afastado da Terra. Assim, não a aquecia o suficiente e os ventos frios ocupavam o seu lugar. Além disso, a noite tinha de fazer horas extraordinárias porque o Sol se levantava tarde e se deitava muito cedo. Uma desgraça!
- Olha! O Sol está a pôr-se! - apontou o Mateus.
- Sim, mas deixa um brilho inconfundível! - suspirou a mãe. -É como aquele sorriso que permanece para sempre no nosso coração!
- Estás bem, mãe?! Pareces a minha professora de Português a dizer poesias! - espantou-se o Mateus.
- Não fiques triste, mãe, amanhã, o Sol volta para nos visitar – disse a Clara.
- Eu sei – concordou a mãe, limpando disfarçadamente uma lágrima.
- Estás a chorar, mãe?! - perguntou a Clara.
- Não, foi apenas o Sol... Quer dizer, estou a chorar! – admitiu.
Ficaram todos calados. Aquela lágrima pediu tempo e silêncio. Ninguém se atreveu a fazer perguntas. Depressa chegaram a casa, onde a Inês já os esperava.
- Sentem-se aí, preciso de falar convosco.
- Podes falar, mãe - disse o Mateus que não gostava nada daquele tom de voz.
- A minha avó morreu – afirmou com todo o cuidado que as palavras às vezes precisam.
- A nossa Bisa?!
- Estava já muito velhinha, não é, mãe? - suavizou o Mateus.
- Viveu mesmo muitos anos! Resistente como poucas! – acrescentou a Inês.
O Mateus encostou-se ao ombro da mãe. A Inês abraçou a Teresa e a Clara. Ficaram algum tempo assim. A memória trazia-lhes então tantas recordações que algumas delas se transformavam em pequenas gotinhas que percorriam o rosto de cada um.
Em cada uma o brilho de um sorriso meigo e profundo, rasgado pelo tempo e pela sabedoria.
Em cada uma o gesto longo e lento da mão que acolhe e acarinha.
Em cada uma o olhar que nos fixa e quer conhecer, o olhar que nos quer ouvir.
Em cada uma o tempo que foi e que é.
- Mãe, estive aqui a pensar... Lembraste dos Jogos Olímpicos? - perguntou o Mateus.
- Sim...
- E daquela tocha que os atletas transportam no início dos jogos? - continuou.
- Sim...
- Nós somos os atletas que agora levamos a chama da Bisa! Que continuamos o trajeto! Com a tocha bem no alto – disse, enquanto levantava o braço para exemplificar.
- Claro! Muito bem! É isso! – afirmou maravilhada.
Mais uma vez o silêncio.
Daí a pouco brincavam e o som de cada sorriso levantava bem alto o sorriso da Bisa!

O reencontro da Dona Educação
O autocarro abrandou junto à paragem, obedecendo ao sinal sonoro rouco e desafinado.
- Muito obrigada, António. Hoje fico aqui.
- Saia com cuidado, precisa de ajuda?
A Dona Educação agradeceu com um sorriso prolongado e apeou-se. Fixou depois a fachada que há muito trazia inscrita na memória. O edifício apresentava ainda um rosto sólido, equilibrado e inspirador, tal como nos anos em que ali entrava todos os dias. Caminhou em direção à portaria onde foi recebida pelo funcionário.
- Posso ajudar?
- Bom dia, desejo visitar a escola.
- Visitar?!
- Sim, gostava de a rever.
O funcionário contactou diligentemente a direção da instituição. Repetiu o nome da ilustre visita para que do outro lado não restassem dúvidas.
Alguns minutos depois, receberam a Dona Educação. Quiseram saber a razão daquele interesse, o motivo daquela visita.
- Nada de especial. Há muitos anos que não venho aqui e gostava de entrar nas salas, de sentir a curiosidade insatisfeita dos alunos, conhecer os professores.
Os dois funcionários, que pensavam agilmente como um só, não encontraram nenhum entrave que impedisse o desejo da velha senhora e, despedindo-se ligeiramente, voltaram para o gabinete.
Os corredores mantinham a cor inicial ainda brilhante e alegre. A Dona Educação caminhou por eles como quem se embrenha nas memórias de um tempo que justifica o presente.
Repentinamente, as portas abriram-se e as crianças saíram das salas. A Dona Educação sorriu perante aquela energia alegre.
- Bom dia! – dizia para uma que quase lhe levava a bengala, correndo descontroladamente. – Bom dia! – dizia para outra que passava desiludida com o lanche que acabara de ver na lancheira. – Bom dia! – continuou ela agarradinha à sua bengala, olhando ora para a esquerda, ora para a direita.
Passaram todos. Seguiu-as com o olhar até ao recreio. Era o tempo delas. Distribuíram imediatamente os papéis e a brincadeira aconteceu! Ali todos eram encenadores, todos eram atores, ninguém na plateia! Ali era o reino da brincadeira.
Silêncio no corredor. Apenas os passos ecoavam, amparados pela bengala. Cada passo uma sílaba do passado que ali voltava. Parou em frente à sala. Aquela que tinha o seu perfume, a delicadeza dos seus gestos, a cor do seu olhar. A sala onde o negro quadro foi vencido pela palavra, branca de esperança. Onde as crianças venciam os mostrengos e dobravam o cabo, pois, naquela sala, também começou vezes sem conta a esperança! Entrou.
- Bom dia!
- Bom dia!- retribuiu.
- Posso ajudá-la?
Não lhe respondeu de imediato. Aproximou-se lentamente para lhe ver os olhos, a cor dos olhos, o brilho dos olhos. Afinal era a professora que viera ocupar a sua cadeira.
- Peço desculpa por entrar sem aviso ou sequer pedir licença!
Reparou no espanto parado, hesitante, da ouvinte.
- Durante muitos anos, fui professora nesta sala! E continua linda! Tem o conhecimento entranhado nestas paredes. Os sonhos ainda ali estão marcados nos vidros das janelas. Repare: ficam sempre as impressões digitais dos meninos que por ali fogem a galope na imaginação.
Um raio de Sol quis apoiar a Dona educação, entrando pela janela para ficar a seus pés. Ela sorriu e lembrou-se dos dias cheios de luz que vivera naquele espaço.
- Agora parece tudo muito diferente, não lhe parece?
- Que boa surpresa! Temos falado muito sobre si!... Não, o que mudou parece-me menos importante. No essencial, tudo se mantém – discordou.
A Dona Educação deixou a janela e voltou-se para a professora. Queria confirmar aquelas palavras. Os ouvidos nem sempre são o melhor fiel, os olhos são uma grande ajuda nestes casos.
- Vejo nos seus olhos a verdade do que diz. Atrevo-me a dizer que educação começa e acaba no olhar. E nos seus olhos vejo a paixão tão necessária para cativar e navegar em alto mar, com ventos a favor ou contra o vento.
- Sim, cativar, importa cativar.
A Dona Educação acenou afirmativamente como quem percorre as razões daquela afirmação.
O reboliço voltou ao corredor. A Dona Educação despediu-se então da professora com a promessa de que voltaria em breve.
Os meninos entraram na sala. Daí a pouco ouviam uma história. Com ela fugiram pela janela. A professora também. Destas paisagens lembrar-se-ão mais tarde. Sempre.
Pouco depois, a Dona Educação apanhou o autocarro para casa. Ia satisfeita: a sua sala estava em boas mãos, não tinha dúvidas.
Era preciso que todos soubessem disso!
Era também preciso que todos dessem tempo às crianças para elas deixarem nos vidros das janelas as marcas dos seus sonhos!



O fim do mundo já não é ali à frente!

O Mateus estava na sala e fingia uma distração qualquer - os olhos presos no ecrã, os ouvidos agarrados à conversa dos pais.
                - Eu não concordo! O mundo que nós conhecemos acabou!? Que ridículo! – protestava o pai.
                - De certa forma, o texto faz sentido.
                - Desde quando é que o teu mundo na adolescência, por exemplo, era o mundo idealizado pelos teus pais? É uma posição extremada para causar polémica.
                - Não te esqueças de que o artigo termina de forma positiva. Afirma-se que as crianças estão hoje melhores e que o mundo pode renascer…
                - Sim, de acordo. Mas o título!
                O Mateus resolveu intervir.
                - Mãe, posso fazer uma pergunta?
                Os pais trocaram olhares e um sorriso apoderou-se dos lábios. Aquele rapaz nunca fazia uma pergunta sem antes lhe preparar o caminho! O silêncio foi o sinal afirmativo.
                - Desculpa, pai, disseste há pouco que o mundo vai acabar?
                Silêncio nos olhos que procuraram o chão. Silêncio nos lábios que deixaram de sorrir.
                - Então, não estão preparados para me responder? – insistiu com traquinice.
                Não, não estavam preparados para negar o futuro àquele aprendiz que ainda lançava à terra as sementes das árvores de que um dia fará fortes caravelas. Com elas dobrará os cabos por achar. Também ele deixará o seu padrão, encimado pelas suas quinas, cinzeladas pela loucura do sonho bom.
                - Não entendeste bem o que eu queria dizer – tentou o pai.
                - Desculpa, mas escutei com atenção! Tu disseste que o mundo vai acabar!
             - Entendeste mal. Falava sobre um texto que tinha acabado de ler. – Levantou-se e continuou. - Enquanto escutares as nossas conversas aqui na sala, enquanto fizeres perguntas difíceis, inesperadas, o mundo nunca acabará!
               
Enquanto eu souber onde estás,
Enquanto eu quiser ver o que vês,
Enquanto eu me sentar ao teu lado para jogar contigo,
Enquanto eu te contar histórias,
Enquanto eu te apontar quem vale a pena,
Enquanto eu for casa e alimento,
Enquanto eu for uma das razões do teu futuro,
Enquanto eu te trouxer para casa,
O mundo não acaba!

Enquanto tu souberes onde estou,
Enquanto tu quiseres ver o que eu quero ver,
Enquanto tu te sentares ao meu lado para me ouvir,
Enquanto tu me contares as tuas histórias,
Enquanto tu seguires quem vale a pena,
Enquanto tu fores casa e alimento,
Enquanto tu me deres notícias das tuas conquistas,
Enquanto tu me levares a tua casa,
O mundo não acaba!

                O Mateus reparou no silêncio do pai. A mãe descobriu-lhe uma lágrima inquieta à procura de saída. Susteve-a, quando as suas mãos se encontraram.
                - Está descansado. O mundo não acaba. Parece que termina sempre que se torna diferente, porém, é na diferença que ele se renova – afirmou a mãe.
                - Os marinheiros que não voltavam do fim do mundo assustavam os mais pessimistas e incentivavam os mais curiosos. Aí o mundo acabava para uns, aí começava para outros – concordou o pai.
                Em breve, o Mateus perceberá que para uns o mundo termina na curva ali à frente, para outros começa precisamente aí.

Um jogo singular

O Mateus estava sentado na bancada ao lado dos amigos. Mantinha os braços apoiados nas pernas e observava com interesse os movimentos dos jogadores. Segurava nas mãos uma pequena folha branca que agitava discretamente de vez em quando.
Em campo, o objetivo era simples e comum, marcar mais golos do que o adversário. Além disso, importava ser elegante e preciso no passe. Até aqui tudo parecia estar equilibrado. A dificuldade começava quando se comparava a velocidade dos atletas: de um lado, a velocidade explosiva, voadora, imparável; do outro, a velocidade controlada, arrastada, sorridente. De um lado os mais novos, do outro os mais velhos. Estes, mais cautelosos, não arriscavam muito em território alheio, para não deixar abandonado o jogador mais recuado - aquele que usava luvas para aguentar as chicotadas da bola que chegava sempre furiosa e cheia de pressa.
Não tardaram os golos tão desejados. Mas quase todos na mesma baliza – a dos mais velhos. Na bancada, o Mateus mantinha-se quieto. Os amigos, sempre mais efusivos, aplaudiam os golos marcados. Outros mostravam uma certa deceção, a desilusão de quem apostara na equipa errada e era agora necessário reconhecer a mais forte.
O Mateus continuava sentado, concentrado. Tinha ainda a folha na mão agora mais esquecida. Movimentava apenas os olhos. Com eles fixava as cenas que recortava por momentos naquele quadro em constante mudança. Raramente acompanhava a trajetória da bola. Preferia acompanhar o jogador parado para corrigir os atacadores ou aqueles que ficavam a rebolar no chão agarrados às canelas. Esta cena divertia-o muito, pois sabia que o sofrimento acabaria tão depressa como tinha começado.
- É falta! É falta!
Nada. O árbitro ignorava aqueles queixumes a mandava seguir.
A cada minuto que passava a derrota tornava-se cada vez mais expressiva. Mas os jogadores mais velhos continuavam a lutar.
Estranho!
Um deles, o da baliza, até batia palmas quando sofria um golo. Felicitava o goleador.
Estranho!
O Mateus observava atentamente estas atitudes desusadas.
O apito final atravessou o pavilhão como um interruptor. De imediato, todos se desligaram da bola que rolou abandonada para um canto. Os jogadores aproximaram-se da bancada para agradecer o apoio.
O Mateus reparou que também o pai se aproximava. Esperou-o na mesma posição e manteve a folha na mão.
- Então, filho, gostaste do jogo? – perguntou sorridente, estranhamente vitorioso, enquanto tirava as luvas.
- Tu perdeste, pai! – lamentou-se o Mateus. – Seis, um!
E mais não disse. Os olhos ficaram inundados, quase, quase a transbordar. E deixou cair a folha que o pai apanhou sem hesitar.
- Mas conseguimos aguentar o jogo até ao fim!
Agora o Mateus já confundia os olhos com um sorriso que despontava maroto, onde o pai encontrou uma mistura de desalento e admiração.
Finalmente, olhou para a folha branca. Leu: “Força, pai!”.
Quando de novo procurou o filho na bancada para lhe agradecer, já ele seguia longe ao lado dos amigos.
O que o Mateus levava na memória seria mais importante do que o resultado do jogo. A derrota ficava ali. Os gestos durante a derrota perdurarão, como um sorriso que nos obriga a levantar.


O amor permanece

                O pai fixou o rosto da Teresa que na pequena mesa vermelha dava voltas à massa elástica e colorida, acomodando ali a sua imaginação.
                - Obrigado, pai! Este é o melhor dia!
                E lá continuava com a mão na massa, alisando, amassando, moldando. Em cada gesto uma história, em cada forma uma vitória!
                Aquelas palavras ficaram a brilhar no ouvido. Este é o melhor dia! A mãe também as tinha ouvido, fixando a filha, perdendo-se de imediato nas memórias, deixando à porta um sorriso materno.
                - É um amor para sempre! – exclamou o pai.
                Não obteve resposta.
                - É um amor para sempre. Não daqueles que colocamos no friso das histórias que desaparecem ao fim de umas horas. Aparece, desaparece, esquece.
Aparece, desaparece, esquece.
Desaparece, esquece.
Esquece.
Não obteve resposta.
- Um amor assim permanece. Acontece constantemente onde as memórias nos abraçam e o futuro nos beija de surpresa. Um amor assim permanece, não achas?
Não obteve resposta.
A Teresa tocou ligeiramente no ombro da mãe.
- Diz, filha!
- O pai está a falar contigo.
- Desculpa, estava a pensar… Não ouvi.
- Não há problema. Ao olhar a Teresa, provavelmente, pensavas sobre o mesmo que eu- arriscou.
Sim, pensava.
Pensava que havia um compromisso
em cada movimento,
em cada palavra,
em cada sorriso,
em cada desejo,
em cada sonho
daquela menina.
Que havia o conhecimento que os percorria até às entranhas.
Que havia a confiança que os mantinha de braços abertos.
- Eu dizia que os filhos nos obrigam à eternidade! – continuou o pai.
Ela acenou afirmativamente, num gesto que lhe garantiu que o amor para sempre não pergunta se é para sempre, acontece,
permanece no beijo,
no olhar que se demora em silêncio,
na mão que conhece a forma do carinho,
nas palavras que respeitam o silêncio,
no tempo que não é nosso.
- Mãe, este é o melhor dia! – repetiu a Teresa, levantando a massa colorida que parecia ter conquistado a forma do amor e que tinha acabado de receber.

  
               
A lição das folhas

O Mateus observava, pela janela, as árvores que se agarravam à terra. Admirava a sua vontade e resistência - mesmo despedidas, permaneciam direitas, elevadas, à espera do Sol que sem vem.
- O que vês lá fora? – quis saber o pai.
- As árvores.
- Porquê?
- Não sei bem, estou a olhar e parece-me que estou um pouco confuso.
- Porquê?
E o Mateus explicou, completando com gestos eloquentes os espaços que as palavras deixavam vagos.
- Já reparaste na forma das árvores?
Queria o rapaz mostrar que, em parte, aquelas árvores se assemelhavam a um triângulo.
- Tu queres dizer uma pirâmide? – ajudou o pai.
- Sim, uma pirâmide, pode ser.
O pai apontou então outras copas divergentes na forma.
- Sim – concordou o Mateus – mas, se reparares, em todas elas, as folhas, todas as folhas, mesmo diferentes, permanecem verdes.
E continuou para explicar que os ramos fazem uma cadeia solidária até às folhas mais altas. O pai começava a perceber a lição das folhas, espantando-se depois, discretamente, com tantas outras pirâmides incapazes de manter as folhas verdes.
- O segredo está nos ramos e nas raízes – concordou o pai, revelando, nas suas palavras, a inversão da importância. Assustadora esta lição de poder!
E o Mateus voltou a fixar as folhas. Também ele era uma folha verde, ávida de altura, ávida de luz. Garantia-lhe a cor e a forma a seiva interior que os braços fortes e constantes lhe faziam chegar.



Joga comigo!

O Mateus percorria vezes sem conta o estádio que tinha desenhado na calçada apenas com o olhar. Conduzia a bola até à baliza que o banco de pedra há muito sonhava ser - todas as pedras precisam de imaginação para renascer! O garoto fintava, rematava, celebrava. Era ali todos os golos, todos os jogadores que o sonho lhe permitia. Todos os heróis renascidos naquela calçada!
Ao lado, o pai observava aquela correria e avaliava erradamente cada toque na bola, cada remate tentado. Dali, todos lhe pareciam falhados. Talvez jogassem em estádios diferentes!
- Viste o meu remate, pai?
O pai sorriu, prisioneiro da qualidade que a brincadeira do miúdo não aceitava. Talvez não soubesse que a imaginação nunca cresceu e nunca quis ser adulta.
- Continua a treinar, filho! – foi o que conseguiu dizer. E passava-lhe a bola para que ele rematasse novamente.
- Viste o meu remate, pai?
Sim, mas continuavam em estádios diferentes. Os olhos do adulto estavam reféns de uma perfeição que não lhe deixavam ver o sorriso do miúdo que rolava feliz em cada remate.
- Viste, pai?
Continuava a sorrir, mas não tinha visto, reparava apenas na distância entre aquilo que via e aquilo que queria ver.
- Joga comigo!
Hesitou. Entrou depois no estádio. Agora no mesmo estádio. Dali, podia ver melhor. Percebeu que a baliza afinal até era pequena a avaliar pelas vezes que ele também não acertava.
- Então?! Tens de te concentrar!
E o miúdo correu com a bola em direção ao pai. Tentou a finta, passou a bola, mas o jogador não. Ficou suspenso nos braços do pai que lhe adivinhou a queda.
- Mais uma jogada, temos de ir para dentro.
- Já! Não quero! Ainda é cedo!
Tinha o miúdo tarefas para fazer, de aprender a ser adulto. Por isso não queria. O pai sabia disso. Aguardou então mais um pouco, na esperança de poder equilibrar o desejo que tinha de trazer o filho para o seu estádio e a necessidade de o deixar jogar no seu espaço e aí marcar os melhores golos da sua vida. Sem dúvida, os melhores!
- Jogo contigo mais uns minutos! Vou à baliza! – arriscou o pai.
Ele sabia que, quanto mais tempo jogasse no campo do filho, mais tempo este iria jogar no seu. Para isso, não precisava de ser um craque, nem de preencher todos os requisitos dos adultos. Ali, no mesmo campo, bastava que o banco de pedra colaborasse, se rendesse à imaginação, que o sorriso fosse mais brilhante do que os remates e que as quedas fossem sempre aparadas por um abraço.
Por vezes, o filho que queremos impede-nos de abraçar o filho que temos, pensava o pai que acabava de deixar passar a bola pelo meio das pernas para gáudio do filho que correu de imediato para casa, onde anunciou tamanha vitória. Nem resistiu, quando a mãe lhe indicou os exercícios.
- Nem imaginas, mãe, o golo que eu marquei ao pai!
Sim, era verdade, um golo inesquecível. Faziam agora mais sentido todas as equações que lhe apareciam à frente. De quando em vez, lá voltava à imaginação que mantinha depois quietinha no lápis que rodava entre os dedos.
 


A fuga das palavras!

- Pai, tenho uma pergunta para te fazer.
- Sim?
- É um pouco inusitada.
O pai já não estranhava certas palavras que o miúdo utilizava. Inicialmente irritava-se, no entanto, foi percebendo que afinal as usava com propriedade, como quem calça pela primeira vez os ténis preferidos. Aquele brilho, aquele sorriso, aquela felicidade!
- Tu sabes o que é a poesia?
- Não.
O petiz ficou perplexo com a incipiente resposta. No olhar, germinava uma certa desilusão.
- Vá lá, pai! Essa não é a tua melhor resposta!
- Já tentaste o dicionário?
- Quero a tua resposta. No dicionário, as palavras não têm futuro, estão presas ao que foram.
- Consideras o dicionário uma prisão?
- Não tinhas pensado nisso, mas até faz sentido: cada palavra vive na sua cela dentro do dicionário.
- Cada cela será a definição, o significado de cada uma.
- Sim.
- As palavras que dão corpo ao significado serão as grades apertadas…
- Sim.
O Mateus fazia um esforço por acompanhar o pai, mas continuava com a pergunta insatisfeita presa no olhar.
- Ainda não respondeste à minha pergunta.
O pai sorriu como quem estende o melhor tapete para as palavras que pretendia alinhar.
- Parece-me que a poesia acontece quando as palavras se evadem da prisão.
- Queres dizer do dicionário?
- Também.
- Explica melhor.
O pai disse-lhe então que a poesia acontece quando as palavras se libertam do peso e do caminho a que as obrigam todos os dias. Quando arriscam um novo brilho, se tornam estranhas, diferentes. É como se as palavras vestissem o seu melhor fato para ir ao teatro.
- Queres experimentar? – desafiou. E, perante o aceno afirmativo do filho, continuou. – Escolhe uma palavra.
- Pode ser… bota?
Bota!? Seria um verdadeiro desafio retirá-la da cela.
- Parece-me bem. Vamos preparar-lhe uma fuga decente, retirar-lhe a cor do chão, o odor do trabalho. Vamos mostrar-lhe a beleza.
- Podemos dar-lhe um nome?
- Claro!
- Pele e sola! – batizou o Mateus.
O pai ficou maravilhado com este jogo de palavras. Havia nele uma certa gravidez.
- Pele e sola. Pode ser. Vamos libertá-la, ouve:
                                Pele e sola
Pele e sola
Levanta-te do chão
Pele e sola
Pele e sola
Tens aqui a minha mão

Vou contigo
Vou contigo
Sairei desta prisão
Não sou bota
Não sou bota
Eu conduzo um pelotão

                O Mateus repetiu de forma divertida.
                - Vês?! Mal sabia a bota que conseguiria muito mais do que fazer o mesmo caminho todos os dias.
                Continuou:
                                               Pele e sola
Pele e sola
És bota, és capitão
Pele e sola
Pele e sola
Tens o mundo sempre à mão
                 O Mateus não parava de rir.
                - Ó pai, como é que esta bota tem o mundo sempre à mão?!!
                Riram os dois. O Mateus atreveu-se:
                                               Pele e sola
                                               Pele e sola
                                               Tu já não podes pisar
                                               Pele e sola
                                               Pele e sola
                                               Tu agora és poesia
                O pai verificou algum desalento no rosto do rapaz.
                - Não rimou, pai.
                - Não precisa.
                Não precisava. A poesia tinha acontecido. A bota fugira da prisão até que alguém a fechasse novamente. Conhecera a beleza do ritmo, carregara por momentos a responsabilidade dos sentimentos, a dureza da denúncia, o entusiasmo da descoberta de outros sentidos.
                Outras palavras esperam a evasão a qualquer momento.
                                              


Para além do meu umbigo!


O Mateus tinha nas mãos uma narrativa. Delicadamente, deixou que os olhos fugissem pelas margens até se fixarem numa fotografia que permanecia na mesa. Sorriu ao ver-se bébé. Voltou a fixar o texto. Descobriu concordâncias com outras histórias. Que as histórias nunca se desligam, são solidárias, conhecem-se umas às outras.
Começou a bater suavemente com a palma da mão numa das páginas. Depressa o ritmo chamou as palavras.


Umbigo, umbigo meu,
Tu conheces alguém
Mais belo do que eu?

Umbigo sempre fui
Mas depois de ser teu.
Antes disso fui cordão
E som do coração.

Umbigo, umbigo meu,
Tu conheces alguém
Mais belo do que eu?

Umbigo sempre fui
Mas depois de ser teu.
Antes disso fui ponte,
Fui nascente e fui fonte.

Umbigo, umbigo meu,
Tu conheces alguém
Mais belo do que eu?

Umbigo sempre fui
Mas depois de ser teu.
Antes fui colo preciso,
Silêncio e sorriso.

Umbigo, umbigo meu,
Tu conheces alguém
Mais belo do que eu?

Umbigo sempre fui
Mas depois de ser teu.
Antes disso fui afago,
Gestos que não apago.

Umbigo, umbigo meu,
Tu conheces alguém
Mais belo do que eu?

Para além do umbigo
Que eu sou com certeza,
Levanta os teus olhos
Para veres a beleza.

Para além do umbigo,
Surgirás verdadeiro,
No abraço que recebes,
No sorriso primeiro.

Umbigo, umbigo teu,
Sou marca de um segredo:
A beleza que tens
É o que dás sem medo.

O Mateus retomou a narrativa. Queria agora saber o que ia acontecer à menina que tinha perdido as asas por olhado demais para o umbigo.


O filho do peixe aprende a nadar


O Mateus elevou a colher e, mesmo antes de provar a sopa, hesitou, voltando a colocá-la no prato. Depois olhou fixamente o pai:
- Pai, o filho do peixe é o peixe, certo?
- Sim…?
- E o peixe sabe nadar?
- Sim.
- Sempre?
- Não conheço nenhum incapaz.
- E por acaso sabes dizer-me como aprendem os peixes a nadar?
O petiz teve ainda tempo para refazer a pergunta: queria saber se, ao nascer, logo começam a nadar.
Mas o que preocupava o pai não era a resposta que agora preparava, mas, sim, as perguntas que ele ainda não tinha feito e que apenas esperavam o momento certo. Respondeu, portanto, com cautela:
- Todos os peixes, na minha opinião, aprendem a nadar. E agora já podes comer a sopa? – perguntou, tentando escapar ao assunto.
Porém, o Mateus não encolheu a imaginação. Ficou apenas algum tempo pensativo, fazendo rolar na mesa a argola do guardanapo. Ensaiou mais uma colher que elevou lentamente. O pai respirava já, secretamente, um certo alívio.
- Pai, tenho uma pergunta para te fazer?
Era agora. Era, com certeza, ali onde ele queria chegar, o cerco apertava.
- Diz.
- Tu eras bom a Educação Física?
- Nunca fui extraordinário…
Foi preciso explicar-lhe que não tinha sido excelente e que alcançava normalmente bons resultados.
- Já imaginava… eras bom. E tu por acaso sabes que nota tirei hoje nos exercícios de ginástica?!
O pai, nos gestos do filho, percebeu uma profunda indignação, reforçada pela gargalhada que emergia no seu olhar que rapidamente se transformou em lágrimas de desencanto. Podia ter graça, mas afinal não tinha graça nenhuma.
- Imagina que tive de fazer cambalhotas para a frente, para trás, o pino, o avião, a aranha… Tu sabias fazer estes movimentos quando tinhas a minha idade?
- Tens de continuar a esforçar-te, é preciso repetir para aperfeiçoar – foi a melhor resposta que conseguiu. – Aprender dá trabalho, demora tempo, exige sacrifício.
- Nunca percebi por que motivo dizem que o filho do peixe sabe nadar!  - desabafou, provando finalmente a sopa para grande alívio do pai.
Daí a pouco, o Mateus corria pela calçada. Pontapeava, driblava e relatava o jogo onde era defesa, avançado e treinador. Um jogo onde vencia e era feliz. Pelos critérios do pai, isso bastava para lhe atribuir nota máxima.
- Queres jogar, Clara? Vais à baliza. E tu, Teresinha, também queres?
Nadavam todos naquele mar onde a imaginação atenuava as derrotas para se fixar nas vitórias. O sorriso bastava para respirar, para retemperar as forças.
Aprender é difícil, por vezes, até doloroso. O Mateus sabia já que o filho do peixe afinal tem de aprender a nadar!



Vences quando perdes?

A Clara entrou no carro, atrás do Mateus, sem dizer uma palavra. Não era habitual.
- Clara, correu tudo bem? – perguntou a mãe.
Não respondeu.
O pai arrancou, fixando, por momentos, os olhos da mãe, em busca de uma resposta.
Era Sexta-feira, pouco tempo faltava para as três horas. As nuvens acumulavam-se num só espaço, cada vez mais cinzentas, cada vez mais escuras e o vento aguardava, mirando pasmado aquela construção.
- Quando é que volta o sol? – lamentou-se a Clara.
- Também já sinto falta – concordou a mãe.
O trajeto era curto. Depressa chegaram a casa. A Clara reparou então que as árvores do jardim continuavam encolhidas, voltadas para dentro. Parecia que também elas esperavam pelo sol.

- Mãe, porque é que as árvores se despem no inverno?
- Sem as folhas, talvez possam aproveitar melhor o sol que lhes aquece o tronco e os ramos… Mas ainda não me disseste por que razão estavas tão pensativa.
- Ouvi uma notícia no rádio do carro esta manhã.
- Que notícia?
- A do polícia que morreu quando tentava prender um ladrão que assaltava um banco.
- Esse homem foi um herói: entregou-se para que o assaltante libertasse os reféns! – interveio o pai.
- Não percebo.
- Foi um vencedor – reforçou a mãe.
O Mateus ouvia a conversa e não entendia o que os pais acabavam de assegurar – para o petiz, um herói teria de ser extraordinário, invencível.
- Também não percebo – interveio.
- Este homem deixou bem claro que, para ele, foi mais importante salvar as pessoas do que proteger-se. Desafiou-nos com uma lei que não conhece fronteiras.
- Não sei bem o que é uma lei – disse o Mateus.
- É uma regra, uma orientação – explicou o pai.
- Tal como uma bússola?
- Parece-me bem – concordou a mãe. - Como uma bússola. Quando encontramos vários caminhos pela frente, temos de decidir por qual continuar. Assim, quando temos de fazer uma escolha, também podemos ter uma regra que nos ajude a decidir.
- A regra do sorriso? – arriscou a Clara.
- A lei do abraço? – tentou o Mateus.
- É mais do que um abraço e mais do que um sorriso – respondeu o pai.
- Houve em tempos um extraordinário pensador que entendeu a lei de uma forma muito especial. Dizia ele: “Ama e faz o que quiseres” - acrescentou a mãe.

- Mãe, já está Sol! – espantou-se, repentinamente, a Clara.
Naquele momento, as nuvens abriam caminho para que o sol passasse, sorridente, brilhante. Vestiam-se de branco e tinham escolhido a melhor forma para o receber.
- Mãe, diz-me, então, qual é a lei – quis saber a Clara.
- Ajudas-me a levar estes sacos para dentro? – arriscou a mãe.
- Oh!, mãe, mas eu quero andar de baloiço!- protestou.
- Ajudas?
- Está bem, mas depois volto para andar de baloiço!
A Clara começava a entender.
As azáleas e as camélias mostravam orgulhosamente as suas cores vivas e alegres e incentivavam toda a natureza a procurar o sol, a brotar, a irromper do interior onde, durante meses, todas viveram fechadas, à espera.

Pai, tu gostas de ser adulto?

                - Um, dois, três, macaquinho do chinês! Um, dois, três, macaquinho do chinês! Para trás, mexeste-te! Um, dois, três, macaquinho do chinês!
                O sorriso não cabia na sala, invadia todos os espaços da casa, renovando-os a cada gargalhada que o acompanhava. As folhas das plantas, que procuravam a luz, baloiçavam com aquela brisa feliz que as tocava, tornando-as mais brilhantes.
                - Um, dois, três, macaquinho do chinês! Pai, para trás, mexeste a perna!
                - Continuem, vou à cozinha, já volto.
                - Pai, tu gostas de ser adulto?
                Aquela pergunta disparada à queima-roupa e pelas costas nada tinha de traiçoeira. O pai, quando se voltou, encontrou nos olhos do Mateus um brilho feliz, agradecido.
                 - Vou à cozinha e já volto.
- Pai, tu gostas de ser adulto?
                A pergunta era séria. A repetição intensificava a ausência de resposta e a certeza da dúvida do rapaz.
                -Claro, filho, claro que gosto.
                E foi à cozinha, levando a pergunta insatisfeita presa no olhar como uma candeia que vai abrindo um túnel brilhante na escuridão.
Lembrou-se de alguém que já teria perguntado que criança teria vocação para adulto. Mas, naquele caso, importava perguntar que adulto teria vocação para criança.
Pensou depois que esse era o drama dos adultos e das crianças: destas porque têm de ser adultos antes do tempo e daqueles porque não têm tempo de ser criança ou já não sabem ser criança. E a infância parece um estádio abandonado, por vezes, em ruínas, onde há muito não se ouvem os passos das crianças que passam ao lado e o avistam como um museu onde estacionam peças valiosas que não podem tocar… pagam bilhete e têm hora marcada para sair. Aí encontram a brincadeira devidamente acomodada e protegida, encerrada.
O pai do Mateus reduziu digitalmente o calor na placa para acalmar a pressão (dentro da panela) e regressou à sala.
- Agora és tu a contar, pai! – indicou a Clara.
- Sou eu! – protestou a Teresa.
- Falem mais baixo! – insurgiu-se a Inês, despertando da série que tinha entre mãos.
- A Teresa conta comigo – resolveu o pai. - Um, dois, três, macaquinho do chinês! Um, dois, três, macaquinho do chinês!
Enquanto contava, fitava ainda a pergunta agarrada à memória como cisco nos olhos. Incomodava, dolorosa, como pico no calcanhar que bem podia ser de Aquiles.
- Um, dois, três, macaquinho do chinês! Um, dois, três, macaquinho do chinês! Para trás, Mateus!
Que vocação tinha o pai para adulto? Que vocação para criança? Gostava ele de ser adulto? Que intervalo reservava no horário para ser criança?
- Um, dois, três, macaquinho do chinês! Um, dois, três, macaquinho do chinês! Mexeste-te, Clara!
- Eu também vi! – assegurou a Inês.
- Tu não estás a jogar, Inês!
- Vou entrar agora, posso?
Claro, podia.
O pai, adulto, ali criança, desdobrava-se para garantir que era bom ser adulto. Uma missão que assegurava o futuro, que justificava o tempo da infância. Adulto como o mar que acolhe os rios, guerreiros que tudo vencem para lá chegar. Adulto como o mar que, por vezes, percorre o leito dos rios para melhor os acolher. Adulto como o mar num vai e vem incessante, onde já não há margens. Como o mar, caminho para as ilhas, para os continentes.
- Um, dois, três, macaquinho do chinês! Um, dois, três, macaquinho do chinês! Agora é a tua vez, Inês!
Um, dois, três, macaquinho do chinês!
Um, dois, três, macaquinho do chinês!
Um, dois, três, é agora a tua vez!

             

               
A pergunta desparasitada

A conversa ao jantar estava a tornar-se mais séria. O Mateus fixou então o prato, na esperança de não ser o primeiro a responder às perguntas.
- Ainda não me falaram sobre a vossa avaliação – começou o pai.
O Mateus olhou a Clara de soslaio e, com uma careta divertida, sugeriu-lhe que fosse a primeira a falar. O pai percebeu a jogada e decidiu:
- Mateus, primeiro tu… um aspeto positivo e outro onde tenhas de melhorar.
O rapaz ainda protestou, mas não teve alternativa. Admitiu que, por vezes, se deixava levar pela imaginação, mas que isso não seria motivo para preocupação. Dependia. É que nem sempre a imaginação era a melhor convidada para determinadas tarefas. Só para casos de extrema importância? Talvez. Nos outros reinava a quadrada regra. Imaginação só para os casos fora do quadrado. Que pena!
Tinha uma certa razão o rapaz. Quando nos vêm a pedir imaginação, já não sabemos ter imaginação. É um caminho escuro, um sótão cheio de pó há muito encerrado. Quando lá voltamos, temos medo de ligar a lanterna. Receamos que as formas, ali há muito quietas, se mantenham exatamente como são. E ninguém é feliz com o que já sabe. O que nos move é outra coisa. E essa coisa é que é… “linda”.
- Mateus, há momentos em que tens de estar concentrado, mesmo que custe. Acredito que valorizamos mais as coisas que conquistamos com esforço – acabou por aconselhar.
A Clara mantinha-se no lugar algo espantada com aquela conversa.
- Agora tu, Clara. O que…
- A professora disse que eu não posso fazer perguntas desparasitadas! – disparou.
Silêncio. Gargalhadas espreitavam já nos olhos brilhantes que a fitavam.
- A professora disse o quê?! – insistiu a mãe, esperando que a filha desse conta da divertida falha.
- Que não posso continuar a fazer perguntas desparasitadas!! Porquê?!!
O Mateus não aguentou e riu, riu, riu até às lágrimas. Doía-lhe já a barriga que afagava levemente, enquanto o rosto corado era percorrido por lágrimas felizes.
- Que foi?!! – reagiu a Clara, espantada, espicaçando ainda mais o riso geral.
Sim, seria mesmo desparasitada. Que pergunta tem hoje a coragem de ser desparasitada!? Que pergunta vem pura, livre de máscaras, de segundas e mais intenções? Que pergunta se apresenta livre, sem medo, oportuna, pertinente? Sem percebermos, quando ganha forma, já a pergunta vem carregada de parasitas que lhe consomem o sentido.
O pai tinha mergulhado nestas considerações e não tinha reparado que agora era ele o motivo da risota.
- Em que estás a pensar, pai?!
- Achei a palavra interessante. Não é fácil fazermos uma pergunta desparasitada!
- Mas não era desparasitada que a Clara queria dizer! – esclareceu a mãe.
O pai sugeriu que já tinha percebido!
- Eu queria dizer disparatadas, pai. Eu não posso fazer perguntas disparatadas.
- Claro, filha. Não convém! - concordou o pai.
Mas não estava convencido.
Afinal serão as perguntas disparatadas perguntas desparasitadas?!
Sílaba desmedida!

Mãe, não cabes na palavra que te quiseram dar.
Uma casa minúscula para tanto ser! Uma sílaba: dois lábios que se fecham em forma de beijo para logo abrirem caminho à brisa que lhe desenha a forma sonora.

Rosto carregado de frutos maduros e doces, nos olhos correm os rios que matam a sede e que, por vezes, rolam pelas margens ao meu encontro.
No teu sorriso está o teu segredo.
As tuas mãos conhecem os contornos dos meus sonhos e soltam as amarras no porto onde sempre me esperas, onde sempre te encontro, onde sempre me voltas a prender.

Mãe, não cabes na palavra que te quiseram dar.
Uma casa minúscula para tanto ser! Uma sílaba: dois lábios que se fecham em forma de beijo para logo abrirem caminho à brisa que lhe desenha a forma sonora.

Aprendi a respirar ao ritmo do teu embalo.
Tenho ainda no ouvido a melodia das histórias que me segredavas e espanta-me a nobreza da tua humildade, quando rezas ao meu lado.
                Todas as nascentes, todas as fontes contigo aprendem sobre a vida que libertam em cada gota pura e transparente. Fonte cujo leito se estende até ao mar, caminho do arroio que quer crescer. Por ele também percorro e descubro a tua esperança.
Mãe, não cabes na palavra que te quiseram dar.
Uma casa minúscula para tanto ser! Uma sílaba: dois lábios que se fecham em forma de beijo para logo abrirem caminho à brisa que lhe desenha a forma sonora.


Pai, o que são pessoas normais?

O Mateus fazia exercícios de Ciências Naturais, quando, calmamente, levantou os olhos do caderno para retirar do sapato a dúvida que durante alguns dias o tinha incomodado:
- Pai, tu sabes o que é uma pessoa normal?
- Diz?
- Pai, perguntei se sabes o que é uma pessoa normal – repetiu com alguma impaciência.
Não havia margem para dúvidas, era mesmo uma rede que o apanhava e, quanto mais procurasse fugir, mais se enredaria. Era agora necessário saber onde tinha começado aquela pergunta para que a resposta preenchesse o vazio da dúvida. Sim, porque a dúvida tem sempre a forma da resposta, tal como o copo guarda a forma da água que vai receber.
- Pois, assim desprevenido, talvez não saiba dizer-te o que é uma pessoa normal. Mas porque me fazes essa pergunta?
- Por nada de especial. Estava a conversar com alguns amigos lá da escola…
Que resposta seria justa e capaz? Que terão dito aqueles rapazes sobre o assunto? Que padrão exigiam para ascender ou descer à normalidade?
- Os teus amigos são normais?
O rapaz gesticulou como quem não tem dúvidas sobre isso. Eram todos normais.
- Tens algum amigo exatamente igual a ti?
O Mateus considerou a pergunta desnecessária e garantiu que não.
- Ainda bem, não há cromos repetidos na tua caderneta, não podes trocar nenhum por outro – gracejou o pai.
- Pai, as tuas piadas antigas já não resultam.
- O que eu queria dizer-te é que não há pessoas normais, há pessoas e todas são diferentes. Tu tens qualidades que os teus amigos não têm e eles têm outras que tu não tens ou ainda não tens.
- Acho que percebi!
O pai sorriu e atreveu-se a mais uma das suas piadas desengraçadas com o tempo:
- Se fôssemos todos normais, éramos uns caramelos repetidos!
- Por favor, pai, caramelos!? Não és tu que tens uma t-shirt que diz Caramelo em letras garrafais?!!
Ups! Era verdade, por isso poucas vezes a tirava do gavetão.
- Mas ainda não me disseste qual foi o motivo que vos levou a conversar sobre este assunto. Como vês, para mim, a diferença é que faz as pessoas normais. É a diferença que as torna mais sábias e interessantes.
Então o Mateus explicou ao pai que estava a brincar com os amigos a ver quem dava mais toques com uma raquete de ténis sem deixar cair a bola, claro!
- O António conseguiu trinta e seis!
Fez uma pausa. O pai não se atreveu a preencher o silêncio que o filho deixou disponível.
- Não queres saber quantos toques consegui dar?
O pai olhou-o expectante.
- Seis, pai. Seis! Achas normal?!
Achava normal.
- E tu quantas raças de cães consegues identificar?
E saiu do quarto, reparando no brilho satisfeito que renascia nos olhos do rapaz que de imediato retornou às Ciências Naturais.
- Pai, tu conheces o bedlington terrier?
Nem olhou para trás. Seguiu consciente do dever cumprido. Tudo continuava normal.


Mãe, o que queres ser quando fores crescida?

A Teresa não queria jantar.
- Só três batatas e três peixes, pode ser, mãe?
Não queria mais do que três pedaços de peixe. Batata, se possível, ainda menos.
- Aqui tens, Teresa.
- Mãe, – reagiu ofendida – colocaste cinco batatas!
E contou em voz alta para que ninguém à mesa duvidasse da certeza do seu protesto.
A mãe fixou os olhos do pai, suplicando ajuda.
Ao seu lado, a Clara, desafiadora, imitava e ridicularizava qualquer gesto que o Mateus fizesse.
- Mãe, a Clara não para!
- Mas eu não estou a fazer nada – protestou, assumindo de imediato uma postura ajuizada, irritando ainda mais o irmão.
- Esquece, Mateus, não valorizes. Vais ver que ela desiste – interveio a Inês, tentando moderar a disputa.
A Teresa continuava amuada e a contar os pedaços de peixe e de batata. Não havia forma de desaparecerem!
- Na escola comes sozinha?
A Teresa acenou afirmativamente. O pai continuou:
- Quem costuma ficar ao teu lado no refeitório?
- A Carolina.
- Eu posso ser a Carolina. Queres que a Carolina te ajude?
- Tu não és a Carolina! Eu é que sou! Tu és o Bernardo.
O pai aceitou o desafio.
- Muito bem, Carolina. Eu vou acabar primeiro do que tu.
- Tu és o Bernardo, o Mateus é o Afonso, a Clara é a Joana, a Inês é a Maria, e a mãe é a Catarina…
E assim continuou a distribuir tarefas pelos inesperados amiguinhos e nem reparou nos pedaços que, entretanto, a mãe foi acrescentando. A certa altura, fixou a Clara por alguns segundos e perguntou:
- Clara, o que queres ser quando fores crescida?
- Cabeleireira!
-E tu, Mateus?
- Eu vou ser veterinário!
- E eu vou ser a doutora brinquedos – completou a Teresa com satisfação. Depois fitou a mãe:
- Diz, filha.
- E tu, mãe, o que queres ser quando fores crescida?
Distraiu-se a menina com as gargalhadas explosivas dos irmãos e não reparou no repentino movimento do pai que se endireitou na cadeira para ouvir atentamente a resposta da mãe. Aquela pergunta inocente, com aparência absurda, acabava de abrir uma passagem secreta entre os dois mundos normalmente separados pouco depois da nascença. De repente, paramos de crescer. Habituamo-nos à altura que temos e ao mundo que daí vemos. Uma vez crescidos, crescidos ficamos.  De imediato, cortamos o cordão inicial que sempre nos obriga a crescer – sonhar.
- Mãe, o que queres ser quando fores crescida? – insistiu a Teresa.
Mais uma vez os irmãos reagiram divertidos. Provavelmente, já não esperava a resposta. Mas o pai continuava à espera. Ele próprio tentava lembrar-se da última vez que tinha crescido.
- Eu já sou crescida, filha!
- Oh! Então já não cresces mais?!
- Talvez… Mas estou bem certa de que continuo a crescer contigo e com os teus irmãos. Serei sempre da vossa altura. Daí verei o mundo. Os vossos sonhos serão também os meus.
O pai respirou de alívio, maravilhado!
A Teresa inventou outra palhaçada para divertir os irmãos. A Inês guardou discretamente a resposta.
Talvez mais tarde, quando todos forem crescidos, estas palavras os ajudem a crescer.


Mãe, levas-me a mochila?

O rapaz seguia cabisbaixo, arrastado, balão vazio. Despedia-se contrariado do sono. No cabelo arrepiado trazia ainda vestígios do sonho, mastros, pedaços de vela, que ficaram da viagem que fizera durante a noite.  Seguia, por isso, como marinheiro em terra, desejoso por içar novamente as velas e partir.
A mãe avançava decidida, inclinada para compensar o peso da mochila que levava numa das mãos. De quando em vez, vigiava a retaguarda, não vá o rapaz ficar parado, outra vez amuado! Em cada passo, a terra e o mar, ficar e partir, partir e ficar.

Indiferente o rapaz.
Decidida a mãe do rapaz.

Ele entrou displicente, aparentemente.
«Mãe, porque abres a minha mochila?
Por que razão a preenches com os teus sonhos?
Mãe, que caminho percorres com ela às costas?
Porque me obrigas a seguir-te?»

Ela saiu confiante, aparentemente.
«Filho, porque não abres a mochila?
Porque não libertas os teus sonhos algemados em cada lombada alinhada?
Filho, os sonhos que carrego não são meus,
São o segredo que há muito me confiaste!»

A noite chegava pelo lado do costume. Ele virava-lhe as costas, para seguir o Sol que preparava já o horizonte para nele se deitar. Levava a mochila às costas. Caminhava sempre, segurando no rosto o brilho quente e distante que o chamava. Caminhava para que o Sol não se pusesse.

Seguiam confiantes, certamente.
«Mãe, quantos sonhos abandonaste por mim?
E porque já não caminhas à minha frente?»

«Filho, preciso dos teus olhos para ver ao longe.
Bastam-me as marcas da mochila que agora carregas.»

«Mãe, enruguei as lombadas que apontaste
Icei as velas que ainda sopras.»

«Filho, os sonhos partilhados são mais fortes.»

O rapaz avançava decidido, inclinado para compensar o peso da mochila que levava. De quando em vez, vigiava a retaguarda, não vá mãe ficar parada, inquieta, outra vez espantada! Em cada passo, a terra e o mar, ficar e partir, partir e ficar.
Caminhavam sempre.
Caminhavam para que o Sol não se pusesse.


Rub, a borracha

Branca e presumida vivia em constante sobressalto. Ficava horas e horas no suporte elástico mais alto do estojo aberto sobre a mesa. Dali observava o trabalho do Pedro que, naquele dia, alinhava números e sinais numa cadeia interminável que era sempre igual a qualquer coisa, de preferência, a um número. Que maçada!
Quando o rapaz comparou o resultado obtido com o do João que, ao seu lado, percorria o mesmo caminho, ela deixou de respirar. Rub ficou ainda mais branca, quando percebeu que uma das respostas estava errada. Ups! Nem quis saber qual era! Refugiou-se imediatamente na parte inferior do estojo, junto das minas zero ponto cinco e dos lápis partidos. Havia por ali restos de aparas e papéis que guardavam sorrisos envergonhados, suspiros indecifráveis. Sabia que o rapaz não a procuraria naquele lugar.
- João, empresta-me a borracha.
Livra! A vizinha entrava mais uma vez ao serviço. Chamava-lhe esforçada e consumida, vizinha consumida, nunca uma Rub como ela! Que maravilha! Orgulhava-se dos seus intocados vértices, agudas arestas e acetinada brancura.
Voltou depois para o seu elástico e observou, curiosa, a vizinha Safa que aguardava ainda na mão esquerda do Pedro. Viu-lhe a face negra do carvão e a tristeza com que se despedia dos pedacinhos que ficavam torcidos na mesa. Um sopro os separava. Um sopro apenas. Mas reparou também na sua determinação, no orgulho que mostrava entre os dedos do rapaz, onde parecia estar aconchegada.
- Dá-me a borracha.
A Safa voou então para o caderno do João e tocava já no número sete, quando resolveu torcer-se o mais possível para fugir àquela missão. Ficou radiante quando o Pedro colaborou:
- Não apagues, está certo!
Rub percebeu tudo e ficou estarrecida: além de se desfazer aos bocadinhos, a vizinha conhecia os números!
A Safa continuou a bailar nas mãos do Pedro e do João, enquanto se lembrava da avó que ficava aborrecida, quando ela dizia que gostava de apagar os erros: «Não, nós não apagamos, nós safamos os erros!» Como já era velhinha e não conseguia safar os riscos e as letras mais pequenas (às vezes, até borratava as folhas) retirou-se para a caixinha colorida. E passava os dias a ver o jardim em casa do João, em cima da secretária, junto à janela.
Estava, pois, a Rub estarrecida e a Safa divertida, quando o Pedro resolveu emprestar a sua borracha. Claro que não ouviu o grito protestante:
- Nãooooooo!
O Tiago admirou as formas perfeitas da Rub que tinha aterrado na sua mesa e deixou escapar um sorriso misterioso que muito a assustou. Daí a pouco, sentiu uma fricção estranha que lhe atravessava o corpo, mas não percebeu a intenção do rapaz. Pelo menos não mostrava interesse em esfregá-la nas manchas de carvão espalhadas na mesa, nem nos desenhos sobrepostos no caderno de matemática! Não encontrava por ali nenhum erro e, mesmo que houvesse, não o reconheceria.
Sentiu que a fricção continuava e que o Tiago a cortava aos pedacinhos com uma régua de dez centímetros. Ainda tentou pedir ajuda, mas ele escondeu-a sob a palma da mão. Daí a pouco percebeu a brincadeira: viu metade da sua brancura discretamente apontada e disparada. Bateu em cabeças atentas, distraídas, adormecidas, divertidas e, não tardou, sentiu-se espalhada pela sala, desfeita em pedacinhos perdidos pelo chão. Um deles ficou mesmo encavalitado num dos cabides que havia junto à porta.
Reparou, despedaçada, na Safa que rodopiava carinhosamente entre os dedos do João, enquanto este sussurrava ao ouvido do Teresa. Depois, viu que a Safa, já pequena, mas sábia e senhora dos erros apagados, foi reconduzida ao estojo e guardada na bolsa secreta das borrachas certificadas.
Dali seria levada para a caixinha colorida onde a esperavam a mãe e a avó, todas safas, longe dos erros.


O meu filho está falando

O Mateus estava entusiasmado com o golo que acabara de marcar. Abriu os braços e, por momentos, correu como se voasse, para melhor receber os aplausos. Parou mais à frente para dar corpo à dança que há muito ensaiava com dedicação. Articulava movimentos que o colocavam, por momentos, num sambódromo onde só ele parecia ter palco.
De novo posicionou a bola para mais um remate.
- Pai, queres ver? Vou bater um pênalti! Olha, estás a ver?
E marcou o penálti, a grande penalidade, conseguindo que a bola entrasse num dos extremos da baliza. O rapaz não voou entre os centrais, mas, mais uma vez, abriu as asas e sorriu, para que todo o estádio o visse em grande plano, no ecrã gigante. E de novo a dança e de novo o grito:
- Golaço! Que golaço!
O pai sorriu e esperou alguns segundos para que o Mateus confirmasse que tinha assistido atentamente ao remate certeiro que acabara de fazer. Antes de entrar em casa, perguntou ainda:
- Mateus, quem está a jogar à baliza?
- Pai, estás a brincar, não há guarda-redes! Jogo sozinho!
O pai respirou de alívio, afinal não era muito grave!
- Mas, se quiseres, podes ser tu o zagueiro que eu gosto mais de ser ponta!
Foi tão natural a proposta que o pai nem colocou a hipótese de ser uma brincadeira. Respondeu que mais tarde voltaria para jogar com ele e entrou em casa.

A Teresa estava na sala com a Clara. Na perspetiva arrumada do pai, tinham espalhado todas as bonecas e procuravam dar-lhes o almoço.
- Oi, galerinha! Hoje, fomos no supermercado e trouxemos comidinha da boa para vocês! Você está muito bonitinha! E você!? Muito fofa! Oh, e você uma gracinha! – exclamava a Clara.
O pai reparou depois na Teresa que a dada altura começou a chorar.
-Diz, filha! O que foi?
- Eu perdi a mamadeira dela!
E apontava para uma boneca que embalava, como se ela chorasse desconsoladamente.
- Não sei o que é – lamentou-se o pai.
- Tu não sabes o que é uma mamadeira?! – espantou-se a mãe.
- Filha, está debaixo da cadeira – ajudou, apontando o biberão para que a filha o fosse buscar.
- Mamadeira!... – repetiu o pai, encolhendo os ombros, divertido, no mínimo.
- Teresa, me dá o chaveirinho que está em cima da mesa – pediu a Clara.
- Estou vendo, eu o levo!
A mãe estava divertidíssima com a reação atónita do pai que certamente também não sabia o que era um chaveirinho. Quando os olhos de ambos se encontraram, as gargalhadas abriram passagem de forma descontrolada.
- Elas falam assim quando brincam?! – espantou-se.
- Sim, copiam a linguagem dos vídeos que veem – esclareceu a mãe.
- Mas não é português europeu…
Pois não, era português do youtube, divertido e melodioso, incontornável.
- Pai, já podes jogar comigo? – interrompeu o Mateus.
- Sim, desde que não seja o goleiro – respondeu, deixando o rapaz surpreendido.
- Pai, estás bem?
O jogo recomeçou.
Cada golo uma vitória.
- Golo!
-Golaço!
Cada palavra conquista o seu espaço, imparável, ad aeternum


 

36. Cinquenta e um centímetros

 

            - Pai, faz-me uma pergunta sobre mim.

            - Não percebo.

            - Sobre alguma coisa que não saibas.

            - Não é fácil fazer perguntas sobre algo que desconheço.

            - Há muitas coisas sobre mim que tu não sabes.

            - Por exemplo…

            - Pai, assim é fácil!

            O Mateus queria que o pai, qual homem do leme, desvendasse os seus segredos. Que enigmas guardaria um rapaz de dez anos?!

            Caminhavam os dois na marginal. Terra e mar. Dois mundos lado a lado. O Mateus admirava a indecisão do mar, o pai a insistência – as duas possíveis, faces da mesma moeda.

            O que sabe a terra sobre o mar? O que sabe o mar sobre a terra? A praia, pedaço de terra onde se encontram, um indeciso, outro insistente, guarda os segredos de ambos. Há muito que a brisa do mar procura desvendá-los.

            Caminhavam lado a lado, dois mundos unidos na praia, plena de passado onde presente regressa, por vezes, saudoso; ávida de futuro que o presente antecipa em cada sonho inseguro e atrevido.

            - Filho, tu és como este mar, apenas conheço aquilo que me dás em cada onda que me toca.

            - Depois dizes que eu é que falo português do Brasil! Também não entendo o que dizes.

            - Quis dizer que não conheço os teus segredos. Sei apenas aquilo que me queres contar. É como a areia da praia, só conhece o sabor da água que a toca. Depois há o mar alto, o mar largo.

            A brisa marítima tocava-os suavemente e sussurrava histórias que se alongavam até ao horizonte.

            - E não estás preocupado?

            - Porquê?

            - Por não conheceres o meu alto-mar.

            Não, não estava. O alto-mar é um lugar sem caminho, onde se chega de olhos fechados. A terra, ansiosa, invasora, nem sempre sabe ficar, quer o mar igual à terra.

            - Por exemplo, podes perguntar-me com quantos centímetros nasci.

            - Pensei que querias falar de sonhos, de segredos…

            - Vês, não sabes! Já esqueceste.

            O sorriso do petiz encontrou caminho no rosto do pai que, naquele momento, não duvidava que o filho o conhecia até ao mar alto, onde ousou quebrar os seus vedados términos.

            - Cinquenta e um centímetros!

            Era esta a medida das perguntas. A medida da praia onde ambos se abraçaram.

 


 

37. O que é o futuro?

 

O rapaz esperava ao fundo do corredor, dava passos sem destino para enganar a espera que sempre o incomodava.

Aproximei-me e reparei que fixava o chão perdido na sua geometria monótona, gasta e quadrada.

- Já lhe enviei o texto! – disparou.

- Deixa-me confirmar.

Sim, era verdade. Observei-lhe o rosto e vi que um sorriso triunfava naquele momento. Afastou-se depois ligeiramente, ensaiando um bailado indeciso, passos que o levavam e traziam, impaciente, esperando a minha reação.

- Não vai ler agora, pois não? – sugeriu incerto.

O corpo crescera muito e precisava ainda de acertar umas contas com as ideias. Esperou ligeiramente curvado para me ouvir melhor. Naquele momento, o corredor acolhia já mais passos que nos cercavam curiosos, um cerco insistente.

- Gosto do título. Certamente abrirá as portas para uma bela história – adiantei.

De imediato, o rapaz foi arrastado para o intervalo, para o exterior, desviando-se das perguntas com gestos e sorrisos desligados. Também ele continuava agarrado ao texto que deixara nas minhas mãos.

O que é o futuro? 

Era o título. Parecia uma pergunta desnecessária, mas agarrou-me, desafiadora. Qualquer adulto certificado evita estas perguntas, certo de que já encontrou as respostas ou de que não as quer encontrar ou de que não há respostas.

O que é o futuro?

De soslaio, reparei que, ao fundo das escadas, o rapaz procurou ainda os meus olhos. Tentava confirmar o estado em que a pergunta me deixara. Queria uma resposta e sabia que tinha dado o primeiro passo.

 

Surgiu-me a esperança. 

Seria ela capaz de uma resposta completa, acabada? 

Tinha dúvidas. 

A esperança tem, por vezes, efeitos secundários, 

quando chega aos ouvidos das vidas incertas, 

que a recebem com um sorriso doloroso, 

desconfiado.

Mas não encontrava melhor. 

Só a esperança parecia grávida de futuro. 

E… que futuro pode ser presente? 

Todos nascem para crescer.

- Mas esperar é estar agarrado ao presente! Eu, quando espero, aguardo – dirá mais tarde o rapaz.

Direi que não, 

que a esperança é um futuro que não nos procura, 

que é o caminho que abrimos e percorremos.

A espera de quem caminha.

 

O intervalo findara. Voltavam arrebanhados.

- Já leu? – perguntaram.

 

Aumentava a minha responsabilidade. O futuro que os percorria também era meu. A esperança de quem caminha não se quer solitária.

E as derrotas cabem na esperança?

Na esperança só as conquistas.

E derrotas.

Não, na esperança só os sonhos. As derrotas são presente e são passado. Só as conquistas são presente, passado e futuro.

O que é o futuro?

Sonhos.

Conquistas.

 

Vi-os entrar na sala de aula. 

Fiquei no corredor e preparei-me para ler o texto.


 

38. Um dia, subi a uma oliveira

 

Regresso à infância pelo caminho que só as palavras percorrem. São elas o novelo que desenrolo para não me perder. Avanço de olhos fechados. Abri-los é quase tão perigoso como olhar para trás, quem vacila perde a memória prometida.

 

Suave, surge ao fundo, depois da curva.

Tinha seis anos. Estava lá o Hélder, o Luís e o Paulo.

Atrás da casa dos meus pais, uma oliveira, forte e verde. O tronco guardava orgulhoso as cicatrizes que o tempo ali gravara. O musgo, veludo verde o macio, abraçava-o. Os ramos disputavam o Sol, para ele se levantavam firmes e decididos.

- Vamos ver quem trepa mais alto?!

O desafio estava lançado. Subimos. Mas nem os gritos de vitória ouvi - um som abafado e um grito sufocado pela dor geraram um silêncio inesperado.

- Ele caiu! Ele caiu! – gritou o Hélder, gerando alarme.

-Estás bem? – perguntou o Luís, descendo rapidamente.

O braço, o braço, não sentia o braço!

A minha mãe chegou pouco depois, qual sentinela discreta que reage prontamente ao mínimo sinal de perigo. Olhou-me, sacudiu a terra das minhas calças e nada perguntou, bastavam-lhe as lágrimas que desenhavam no meu rosto o mapa da dor.

- Luís, vai a casa e pede à tua mãe para chamar um carro de praça.

- Onde vamos? – perguntei, entre soluços.

- Ao hospital.

- O que me vão fazer?

Não me deu resposta. Era mais importante ir do que ficar. Caminhei, então, ao lado da minha mãe até à estrada mais próxima, ouvindo em cada passo o cetim da blusa, respirando o calor da mão que afagava o meu rosto, recolhendo as minhas lágrimas.

Silêncio e espera pelo carro verde e preto.

- Alguém te empurrou? – acabou por perguntar.

Acenei negativamente.

Daí a pouco, o senhor José abriu a porta para entrarmos no seu táxi.

- Ó rapaz, quantos anos tens?

A minha mãe respondeu.

- E já sabes escrever o teu nome?

- Porque pergunta? – reagiu a minha mãe.

- Era só para saber se era canhoto. Daqui a dias, começa a escola e ele vai aprender a escrever. E, se tiver o braço esquerdo partido, aprende com a direita.

Aconcheguei-me para suportar aquelas palavras frias.

Sim, era canhoto e tinha razão o senhor José, o gesso acabou por me fazer destro.

Nos meses seguintes, várias vezes passei pela oliveira para fixar o ramo por onde tinha subido. Havia de lá voltar para subir e vencer.

E voltei, subi e venci.

O fio tremeu, mantive por isso os olhos fechados e voltei à curva. Não resisti ao perfume daquela mão carinhosa, à segurança dos passos decididos, ao olhar que me acarinhava e às palavras que me davam colo. Acomodei-os e trouxe-os comigo!

 

São pedacinhos que saboreio de olhos fechados.

Fica o presente mais doce.

Vou enrolando o novelo, volto ao labirinto.


 

39. Escuta!

 

 

O pai entrou na sala e encontrou-os sofá. À frente deles, o televisor mostrava, quase mudo, abandonado, imagens animadas, coloridas e divertidas: uma menina fazia as maiores travessuras para desespero do urso castanho e simpático. Mas nenhum deles reparava naquelas aventuras, agarrado cada um ao seu monitor. Riu-se o pai, sentando-se num pedacinho do sofá ainda livre, mas riu-se sozinho. Ainda olhou os filhos, esperando companhia, certo de que rir acompanhado redobra a alegria. Desligou o televisor e por ali ficou à espera de que as baterias mostrassem sinais de fraqueza.

Reparou depois que nenhum dos filmes chegava ao fim, histórias incompletas, interrompidas e truncadas. Pobres narrativas assim tratadas na ponta dos dedos inquietos e nunca satisfeitos!

- O que estás a ver?

Silêncio preso aos monitores.

- Pai, traz-me uma maçã.

Silêncio. Esperava o pai que o filho levantasse os olhos.

- Pai, podes trazer-me uma maçã?

Silêncio.

- Pai?! – protestou.

- Diz?

- Não ouviste?

- Não consegui ouvir tudo.

- Por favor – pediu, levantando, finalmente, os olhos.

O pai foi buscar a maçã, o filho voltou ao monitor.

 

Caminhava e pensava.

Em cada passo uma dúvida.

Até quando aguentaria fechado o diálogo preso em cada criança,

assim cercado de histórias fugidias e incompletas?

Que crianças estão habilitadas para o silêncio?

 

À hora de jantar, encontraram-se todos à mesa. Havia tempo, havia espaço. Estavam agora longe das mãos os monitores carcereiros do olhar.

- Sabias que os deputados discutiram hoje o programa do governo. Concordas com as propostas para a …

- Pai, a Clarinha não para de me imitar!

- Mãe, eu não fiz nada!

- Não quero sopa!

- Pai, já recebi o teste de matemática.

- Eu também já recebi os meus testes.

- Eu não gosto de sopa!

- Para de me imitar!

- Para de dizer isso, não te estou a imitar!

- A sopa tem legumes, não gosto!

- Vês, está a imitar-me!

- Eu não gosto!

- Pai, o que é um deputado?

- Mãe, amanhã, tenho natação?

- Só há sopa?

- As sapatilhas deixam entrar água!

- Hoje o professor disse que nós temos dificuldade em estar calados!

- O Mateus ainda não fez os trabalhos!

- Mãe, a Teresa adormeceu no carro, sabias?

- Não dormi nada!

- Mãe, estás a ouvir-me? Estou a falar contigo!

- Pai, não olhes assim para a mãe!

- Clara, é melhor ficares calada!

- Cala-te tu, Mateus!

- Eu não quero a sopa!

- Mãe, a Inês já telefonou?

- Pai, não dizes nada?

O pai fixou por momentos cada um deles. Uma clareira silenciosa surgia agora depois de atravessarem aquela floresta de perguntas e protestos. Era urgente ouvi-los, mais urgente ainda era abrir espaço para a escuta.

- Primeiro, preciso de acabar a pergunta que todos interromperam – começou por dizer o pai.

E abriu o caminho necessário, demorando o olhar em cada um, dando forma às palavras que seguiam sob a forma de dúvida e voltavam satisfeitas com a resposta.

- Podes ouvir-me, agora?

Claro! O diálogo era agora feito de silêncio e de escuta.

Silêncio e escuta, é urgente permanecer.


 

40. O que queres ser quando fores crescido?

 

Ouvi dizer há dias, uma vez mais, que, no futuro, no teu futuro, irás exercer uma profissão que ainda não existe. Reparei no semblante carregado de quem ao meu lado se sentava, nos acenos afirmativos e nos lábios cerrados.

Por momentos, senti que tudo aquilo que te ensinámos, que tudo aquilo que por ti escolhemos, poderia ser um logro; admiti ainda que percorrias uma escola obsoleta, cercada de altos muros, incapaz de ver para além deles.

Por momentos, percebi a monstruosidade cometida em cada pergunta que te obrigava a pensar no teu futuro: o que queres ser quando…?

Por momentos… apenas por momentos.

 

Afinal, quem me garantiu aos dez anos a profissão que hoje exerço? Dirão que não é nova. Não, não é. Mas o que é hoje afasta-se vertiginosamente do que era. Além disso, descobri que um dos meus amigos de infância é hoje operador de drones. É que, quando éramos pequenos, a única aeronave não tripulada que conhecíamos era o avião de papel ou a avioneta! Mia Couto diz ser a neta do avião… o livro está cá em casa. 

Percebes o que te digo?

Também descobri que um amigo da faculdade é hoje analista de segurança informática. Vê bem, um rapaz que passou anos a estudar a literatura e a língua portuguesas. E o engenheiro de energia eólica? A única coisa que deve ter conhecido quando era pequeno foi o moinho do avô onde o milho se transformava em farinha ou, mais tarde, os quixotescos moinhos de vento… 

Percebes o que te digo?

Ouvi dizer ainda que, no futuro, serão valorizados os candidatos com melhores skills ao nível da relação interpessoal. Sempre assim foi! A teu trunfo será o saber. Mesmo que te digam que o que aprendes hoje não será verdade amanhã! Estou certo de que hoje caranguejo, amanhã carangueijo! Ontem mater, hoje madre. Quem sabe hoje percebe melhor o que terá de saber amanhã! 

Percebes o que te digo?

E as skills?

Serás competente! Não é muito difícil, apesar do estrangeirismo. Bastará saber entrar na sala, fazer silêncio, escutar e trabalhar com rigor. 

E o trabalho colaborativo? 

Também: escutar, partilhar, concordar, discordar, fazer.

E a escola do século XIX, pai? 

Foi do século XIX e é de quem quer fazer história. 

Mas sentamo-nos da mesma forma na sala.

Não, nunca na mesma cadeira, nunca na mesma mesa, nunca no mesmo quadro, nunca as mesmas janelas, nunca com o mesmo professor, nunca com o mesmo livro, nunca com o mesmo caderno, nunca duas vezes no mesmo rio

Percebes o que te digo?

Se te quiserem tirar o verso difícil, acenando-te com uma visita à casa do poeta, resiste. Agarra primeiro cada palavra, descobre-lhe o sentido e a forma, como se cada uma delas fosse um degrau. Vai depois descobrir a casa e verás que cada pedra valerá mais do que a sua dureza.

Se te quiserem tirar o passado, mostrando-te um futuro por causa dele incerto, resiste. O passado é aquele aviso à navegação, brilhando intermitente na costa. Todos os erros teimam em voltar e desembarcam facilmente nas costas onde os faróis há muito foram abandonados, costas rasas, sem construção alguma. 

Percebes o que te digo?

 

Aquilo que te ensinamos, tudo aquilo que por ti escolhemos, não é um logro; percorres uma escola atenta, sábia e prudente e, por vezes, cercada de altos muros, para que não a destruam.

Afinal, o que queres ser quando fores crescido?


 

41. O burro que não queria cenouras e a árvore de Natal

 

           
                - Pai, tenho uma pergunta para te fazer.

                - Sim.

                - Porque é que dão cenouras aos burros?

                - Não percebo.

                Queria o pai saber a origem daquela pergunta. É que as perguntas isoladas correm o risco de ficar insatisfeitas. As perguntas trazem o caminho da resposta escondido atrás da inclinação final. É preciso desvendá-lo.

                - Vi uma fotografia num livro.

                - E então?

                - O burro estava preso a uma nora…

                - Sim, um mecanismo para tirar água de um poço…

                - E a minha pergunta é: porque lhe dão cenouras? Tu acreditas nisso?

                O rapaz achava estranho dar cenouras ao animal.

                Cercado assim por aquela estranheza espontânea, suavemente inocente, o pai viu-se obrigado a uma resposta e tratou de encontrar o melhor caminho. Estaria o problema nas infindáveis voltas que o burro dava? Na fugidia cenoura? Seria o burro animal cego que não via nem uma coisa nem outra?

                - Eu penso que ele não gosta nada daquelas voltas que dá… - adiantou-se o rapaz.

                Sim, tinha razão. E o problema nem seriam as voltas. Estar preso, não poder caminhar pelo campo florido que a água do poço alimentava era bem mais grave! Ainda se lembrou de Sísifo, mas deixava para tempo mais oportuno.

                - Não percebo o teu espanto quanto às cenouras. Pelo que sei, o animal gosta de vegetais.

                - Eu vi uma cenoura presa numa vara à frente do burro… aquilo serve para quê? Quando é que lha vão dar?

                Ainda se lembrou o pai de Tântalo, mas…

- Eu acho que o animal não quer a cenoura. Não é por causa dela que caminha.

- Não percebo.

- O burro avança no caminho porque quer conhecer as montanhas e os rios, avança porque quer ouvir o canto das aves que o cumprimentam quando passa, avança porque quer sentir o perfume das flores, saborear as ervas tenras e suculentas, sentir a brisa que lhe afaga o pelo e segreda histórias que recolhe por onde passa, trazendo-as guardadas para sempre.

O petiz ficou por momentos preso às palavras do pai.

- As coisas que o homem da cenoura desconhece!

- Talvez, tão preocupado com a cenoura e com o seu conveniente afastamento, não vê para além das pedras do caminho.

- E a teimosia do burro?

- Talvez não seja burrice. Acredito que quando para o faz por uma boa causa.

- Talvez uma flor bela e perfumada!

- Sim. Só que o homem da cenoura não percebe nada disso.

Sim, o homem da cenoura nunca percebeu nada daquilo.

- Pai, tenho um desafio para te fazer.

- Diz.

- Queria que escrevesses uma história sobre a árvore de Natal.

-Estás a desafiar-me com uma cenoura – protestou, rindo, o pai.

Sim, mas desta cenoura separava-o a distância que a imaginação podia anular. Era agora necessário merecê-la e levantá-la depois como um prémio conquistado.

- Veremos se consegues fazê-la até ao Natal.


 

42. Pai, a minha história de Natal?

           

 

O Mateus estava deitado no sofá. Tinha os olhos brilhantes, dores de cabeça e um dente que se despedia dos outros, suspenso na frágil gengiva, que o rapaz constantemente verificava com a língua.

- Pai, podes ver se tenho febre?

- Deixa ver… vou buscar o termómetro.

Daí a pouco, o aparelho sugeriu algum cuidado.

- Espera, vou falar com a mãe. Acho que precisas de tomar um remédio para baixar a febre.

- Remédio?!

- Medicamento.

- Não quero nada disso!

O pai não respondeu ao protesto. Voltou daí a pouco com um frasco conhecido e uma colher apontada à boca do rapaz.

- Água, quero água – suplicou, na tentativa de contrariar o sabor que lhe invadia a boca.

Passada a tormenta, voltou a deitar-se. Fechou os olhos, mas deixou escapar um ligeiro sorriso que o pai interpretou imediatamente.

- Acho que já estás a ficar melhor!

- Pai, já escreveste a história sobre a árvore de Natal? Tu prometeste!

Uma história sobre a árvore de Natal… Não, ainda não. As palavras fugiam das ideias, ou as ideias das palavras. Sentia-se um leito seco, sem imaginação. Mas, de repente, foi ganhando forma.

 




Verde.

Sempre verde.

Ascendente.

Dançava ao sabor do vento,

agarrando-se à terra,

sempre que ele, agitado, desafiava o seu equilíbrio.

Raízes fundas para crescer,

alcançar as alturas, crescendo na terra sem se ver.

Um dia, tocou as estrelas e uma delas falou-lhe do Menino que vira nascer.

Contou-lhe que, nessa noite, brilhara descontroladamente feliz.

Tanto que os sábios, os conhecedores do brilho certo, resolveram segui-la.

Queriam encontrar a razão daquela luz.

Contou-lhe depois como permanecera sobre o presépio, ensinando o caminho

aos que procuravam o Menino.

Aprendera com eles

o silêncio,

a simplicidade

e a confiança.

- Podemos ficar contigo? – pediu outra das estrelas ao pinheiro que permanecia ainda surpreendido com a história que acabara de ouvir.

- Para quê, se do alto tudo alcançam? – contrariou.

- Queremos estar mais perto dos homens, para ouvir o que dizem do Menino.

O pinheiro acolheu então as estrelas nos ramos, tornando-se o mais brilhante na noite escura.

 

O Mateus ficou algum tempo em silêncio.

- Em que pensas? – perguntou o pai.

- O que dizem os homens sobre o Menino? - perguntou, fixando os olhos do pai.

O pai acariciou-lhe o rosto, procurando discretamente sinais de febre. Não os sentindo, saiu satisfeito da sala.

O rapaz ficou no sofá e, durante algum tempo, observou as pequenas luzes na árvore de Natal. Quando voltou, o pai reparou no sorriso do filho, percebendo-lhe o sentido: «As coisas que o meu pai inventa!»

- Queres ver um filme comigo? – sugeriu.

- Boa ideia, chama os teus irmãos. Eu procuro a mãe.

O filme começou.

Em cada olhar um brilho intenso e feliz.

Terá vindo das estrelas?


 

43. Sonho: tempo e silêncio

 

            - Pai, podes ajudar-me? Preciso de continuar uma história sobre o Pai Natal.

            O pai pediu então para ler o texto que atormentava a imaginação da menina. Sentiu imediatamente um delicioso aroma a canela que preparava suavemente o caminho das palavras. Leu-as e ficou a saber que o Pai Natal tinha um filho e que este se preparava para uma noite de trabalho. Pelos vistos, o rapaz estava nervoso - nem o GPS que a mãe lhe oferecera o deixava mais tranquilo.

            - Como é que eu começo? – pediu a Clara.

            - Consegues ver com a imaginação? Experimenta, fixa um objeto. Alguns segundos depois abrir-se-á uma porta por onde só o teu pensamento poderá entrar. O lápis, atento, irá desenhando as palavras que recolherão tudo o que irás ver. Quando regressares, terás nesta folha a mais linda história de todas.

            A Clara ouviu atentamente o conselho, mesmo sabendo que as soluções do pai nem sempre funcionavam com ela. Ficar sossegada, olhar um objeto até deixar de o ver, para entrar no reino da imaginação!? Impossível!! Era preferível trepar a uma árvore - uma alegria para todos os sentidos!

            - E o título?

            Ainda não era tempo. O título podia ser a fundação ou o telhado. O pai gostava que fosse telhado, a melhor cobertura para as palavras que se levantam, uma a uma, como quem levanta uma parede, onde há espaço para as portas e para as janelas.

            - Casas, estás a falar de casas?!  O que é que um título tem a ver com um telhado?

            - Tal como o título, o telhado é uma das partes mais visíveis da casa.

            - E não! O telhado ninguém o vê!

            - Depende. Quando sobes à montanha, ou viajas de avião, é o telhado que as casas mostram. Aquilo que preparamos melhor nem sempre é aquilo que os outros conseguem ver. Tudo depende da altura.

            O pai notou no rosto da filha algum desencanto. Resolveu então contar-lhe, em segredo, que já tinha ouvido falar no filho do Pai Natal.

 

            Na primeira noite de trabalho, saiu de casa confiante.

            - Vai, filho! As crianças esperam pelos presentes… O teu pai nunca saiu tão tarde. Não te enganes!

            - Mãe, eu levo GPS e sigo na minha moto voadora.

            - As renas são mais silenciosas.

            - Eu sei, mas são muito lentas. Estarei de volta antes do amanhecer. 

            Arrancou, deixando nos olhos da mãe um sorriso feliz. Tocou depois no monitor para receber as primeiras indicações: «Vire à direita e depois siga suavemente até ao telhado mais afastado. Pelo caminho, verificou se os sonhos estavam já devidamente colocados junto a cada chaminé. Sonhos ou desejos, aí os deixava cada criança ao adormecer, cercados com o mais puro brilho do olhar.

            Quando chegou ao ponto mais distante do povoado, preparou-se para regressar, deixando em cada sonho aberto o presente tão desejado.

            - Apontar… preparar… deixar! Apontar… preparar… deixar! Bom Natal, meninos! – dizia, enquanto distribuía os mais bonitos embrulhos que delicadamente caíam nos telhados das casas.

            Daí a pouco voltou a casa.

            - Filho?! Não é possível!

            - Entreguei todos os brinquedos conforme me indicaram. Fui discreto e rápido. Melhor é impossível!

            - Mas trazes no saco ainda muitos presentes…

            - Também achei estranho, talvez o pai se tenha enganado nas contas. Em todos telhados deixei um presente.

            - Em todos? – perguntou o Pai Natal com algum esforço. A febre e a tosse obrigavam-no e permanecer em casa.

            - Quer dizer, em muitas delas não havia sonhos brilhantes junto à chaminé, por isso, avancei para a seguinte. Achei que aí não havia crianças…

            Ficaram os pais do rapaz bastante preocupados. Em tantos anos nunca tal erro tinha acontecido!

            Resolveram sair de novo. A mãe acompanhou o filho. Desta vez, foram no trenó puxado pelas renas.

            - Repara. Este telhado não tem sonhos brilhantes – disse a mãe, apontando. Aproxima-te. Vês estas marcas? Os sonhos já cá estiveram. Por algum motivo, já não estão cá.

            - Talvez não tenham tempo os meninos desta casa.

            - Sim, não tiveram tempo para sonhar.

            - O que fazemos então?

            - Vamos deixar-lhes uma linda flor. Terão de cuidar dela. O tempo que levará a crescer será o tempo que terão para sonhar. O sonho precisa do tempo e do silêncio que cada flor tem para ensinar.

            Passaram depois pelas outras casas onde o telhado permanecia escuro, apagado. Aí também deixaram o tempo e o silêncio escondidos numa flor.

            Por fim, regressaram a casa, satisfeitos e confiantes.

 

            A Clara olhava fixamente a folha branca. O pai retirou-se silenciosamente. Ia já no corredor quando a filha gritou:

            - Já sei! Já sei! A história vai chamar-se “O Pai Natal partiu uma telha”.

            O pai sorriu. Ia começar pelo telhado, mas tudo bem. Certamente as palavras já conheciam o caminho. Em pouco tempo, a história ganharia forma.


 

44. Confiança

 

Acabada a reunião dirigiram-se para o carro. Traziam ainda a melodia agarrada à memória. Às vezes, certos sons passeiam-se nos nossos pensamentos como uma música de fundo que tinha ficado parada durante algum tempo. 

Daí a pouco, o Mateus olhava pela janela, sustentando o queixo e o pensamento com a mão. Os olhos já tinham abandonado o caminho de regresso a casa, para não interromperem as perguntas que se formavam e preparavam para chegar à costa como a onda que deseja abraçar a areia onde carinhosamente se desenrola.

- Tu tens confiança, mãe?

- Claro – respondeu prontamente.

- Tens confiança em quem?

- Em ti, nos teus irmãos, no pai, em mim. Acredito nas tuas qualidades, nos teus sonhos.

- Então confiança é o mesmo que esperança?

- Parecem-me irmãs – interveio o pai.

O Mateus fez uma careta e encolheu os ombros. Lá estava o pai com jogos de palavras!

- Então quem são os pais? – desfiou, sorrindo, a Clara.

- A confiança e esperança estão em ti, nascem e permanecem enquanto a tua vontade quiser! – respondeu a mãe.

Por momentos, as ondas afastaram-se um pouco. A areia esperava pacientemente pelo regresso da maré plena. O silêncio percorreu o caminho que faltava até casa. Já no alpendre, a mãe tentou explicar melhor:

- Podes esperar que alguma coisa venha a realizar-se no futuro. Por exemplo, esperas vir a ser um veterinário. Para o conseguires, terás de confiar nas tuas qualidades, em nós que sempre te apoiamos e em todos os outros que contribuem para a tua formação.

- A esperança poderá ser aquela meta que queres atingir, tudo aquilo que pensas vir a conseguir no futuro, tudo aquilo que esperas – corroborou o pai. – A confiança acontece no caminho que percorres.

Saíram do carro. O Mateus não quis entrar logo em casa, ficou a jogar à bola na calçada. O banco de pedra junto à parede do anexo era a baliza ideal para os golos que festejava com euforia, através de um bailado que aprendera com os amigos da escola. Entretanto, o pai passou para recuperar um saco que ficara na mala do carro.

- Com tantas notícias más, achas que vale a pena continuar a ter esperança? Não sei se podemos confiar nas pessoas.

Aquela tinha sido uma onda gigante que varrera com violência o areal. O pai sentou-se na mala para melhor organizar a resposta.

- Sabes, a confiança não se esgota em nós e nem nas pessoas que nos rodeiam.

- Queres dizer que concordas com o que disse o senhor padre na reunião.

- Claro. As palavras de Cristo são para mim motivo de confiança e de esperança. Às vezes, não chega acreditar nas pessoas. Às vezes, as pessoas já não têm esperança, já não querem ter esperança ou não sabem…

O Mateus voltou a chutar na tentativa de fazer mais um golo e festejar à frente do pai.

- Filho – continuou, as pessoas são como os jogadores de futebol. Se não tiverem um bom treinador que os oriente, que os anime nos momentos de desânimo, correm sem sentido. Não basta o capitão dentro do campo. Também ele aguarda pela voz do treinador. Em campo, os jogadores não se bastam a eles próprios. Antes, durante e depois do jogo, o treinador é fundamental.

O Mateus ficou alguns segundos suspenso com a bola na mão. Ouvia o pai como os jogadores atentos ao capitão que transmite a esperança do treinador que os observa para lá das quatro linhas.

De novo a melodia, enquanto o Mateus rematava certeiro e cantarolava “sem medo avançarei”.


 

45. De quem é a tua vida, se a minha também é tua?

 

A Clara estava sentada na carpete. Alinhava à sua volta vários livros que a Teresa daí a pouco iria comprar; era uma loja virtual, virtual mesmo!

O pai acompanhava aquelas manobras de diversão, enquanto ouvia as intervenções políticas em destaque nos noticiários.

- O que é a eutanásia? - disparou a Clara enquanto equilibrava o último livro que dispunha para venda.

O pai ficou alguns segundos escondido atrás do olhar aparentemente ausente. Tentava uma distração atenta à notícia do momento.

- Pai, não me ouviste? Eutanásia o que é? - reforçou a menina impaciente.

Desta vez o pai fixou-a e quis responder-lhe. Mas uma nuvem fixou-se entre os dois, aparecera sob a forma de uma lágrima tímida.

- Que foi pai?

Nada, não era nada. 

Lembrou-se de falar-lhe do sentido etimológico. Caminho doloroso! Relembrar o passado da palavra não a libertaria das cores frias e silenciosas. Sustentar que é bom o que nos separa, que é bom o que nos afasta e faz sofrer seria lançar um manto negro sobre o brilho da esperança que a frágil idade da menina levantava bem alto!

Lembrou-se ainda de perguntar-lhe se a vida que espreitava pelos seus olhos grandes e inquietos começava e acabava dentro de si, se não havia por ali pedacinhos de quem lhe dera tempo, de quem lhe contara histórias até adormecer, de quem se levantara cedo, dia após dia, para que nada faltasse na sua lancheira. 

Dir-lhe-ia depois que a vida dela vinha de raízes profundas, antigas, que vento algum podia arrancar. Raízes que se agarravam a outras raízes. Que a vida que palpitava no seu corpo se entranhava noutras vidas como a da criança ainda no ventre da mãe. Filha, de quem é a tua vida, se a minha também é tua?

- Queres comprar este, pai? Muito apetitoso, com cheiro a chocolate! - propôs a Clara, aproximando o livro do nariz do pai que lhe deu, nesse momento, um abraço demorado. Tinha ali uma porta aberta para a fuga. É que os pequenos descobrem facilmente quando os adultos não sabem a resposta ou não a querem dar. Mas o vazio que deixamos outros ocuparão. Arriscou:

- Lembras-te do gato que a mamã encontrou um dia na rua? Chamou-lhe Sortudo! - A Clara acenou afirmativamente. - A certa altura, foi ficando muito velhinho e doente. Miava com os outros gatos que também viviam no jardim e que nunca o deixavam só. Todos os dias o visitavam, trazendo o melhor da sua caça e por ali ficavam, ouvindo as suas histórias, acariciando-lhe o pelo. Aos poucos o gatinho foi ficando cada vez mais fraco. Apenas os olhos eram capazes de sorrir e de pedir aconchego. Então, à volta dele, passaram a deitar-se sempre dois gatos: respiravam em conjunto, partilhando, naquele abraço, a vida que fica e a que vai. Um dia, deixaram de sentir os movimentos do Sortudo, a barriguinha já não subia nem descia e tinha os olhos fechados, serenos e vencedores. Durante muito tempo, os dois gatos falaram dele aos amigos que viviam no jardim. E, assim, viveu por muito tempo mais nas conversas dos gatos deitados ao sol, nas pedras quentes e macias.

- Eu sabia que o Sortudo já tinha morrido, pai. Isso aconteceu há muito tempo! – reagiu a Clara.

- Sim, eu sei...

A Clara voltou à loja virtual, abriu outro livro com cheiro e chamou a Teresa.

O pai sabia agora que, afinal, as crianças tinham vocação para adulto, seres para a vida. Alguns crescidos esquecem-se disso, tornando-se tristes, soturnos. Sortudos à espera de um ombro amigo com quem sintonizem a sua respiração e a quem possam contar a história das suas rugas, vezes sem conta, até que as raízes se entrelacem e a sua vida permaneça mesmo depois de terminar.

O pai sorriu, desligou a televisão e continuou à procura de respostas, de quem é a tua vida, se a minha também é tua?


 

46. Quando os muros nos libertam

 

O pai permanecia na cadeira que balançava lentamente. Naquele dia, não embalava, levava e trazia pensamentos, insistentes, demasiado circundantes. O rádio tentava conquistar o espaço, espalhando pela sala melodias suaves até irromper o sinal horário. Nesse momento, o pai levantou-se, aproximou-se do rádio e baixou discretamente o volume, fixando, por momentos, as filhas que ali perto brincavam. Rapidamente, desligou todos os sentidos, apenas ouvia, estagnado, ausente, preso às palavras que passavam como chamas empurradas pelo vento.

 

Quando voltou da terra queimada, encontrou os olhos da Clara que o fitavam intensamente, como se acabassem de descobrir no rosto do pai a verdade escondida. Momento eternamente retido, como cicatriz depois da ferida!

 

- Queres brincar connosco? - propôs a menina, perante o embaraço do pai.

 

Era melhor.

 

- Dás o leitinho ao bebé, papá! - avançou a Teresa.

 

Sentou-se o pai num banquinho cor de rosa, tornando verdade o sonho das crianças que se derramava nas palavras e nos gestos que inundavam a sala.

 

- Pai, pai, já está! O bebé não quer mais! Agora vais mudar a fraldinha – orientou a Teresa.

 

Nesse momento, o Mateus aproximou-se da porta. Trazia no rosto o melhor desalento que conseguira ensaiar minutos antes. O pai não resistiria!

 

- Quando é que terminas a casa na árvore?

 

- Primeiro tenho de adormecer o bebé! - segredou o pai.

 

A Teresa e a Clara ficaram deslumbradas com a resposta do pai. Espanto brilhante no olhar, o pai estava a brincar a sério!

 

- E depois vens? - insistiu o Mateus.

 

O pai acenou afirmativamente, logo esbugalhando os olhos, fixando algo por trás do filho.

 

-Que é?!

 

- Não faças barulho. Vira-te!

 

O rapaz obedeceu e ficou pasmado. À sua frente descia suavemente uma lagarta verde presa a um fio transparente. Regressava de um dos ramos da ginkgo biloba que já libertava as folhas em busca de Sol. Aterrou no buxo onde pela cor se confundiu. De lá sairá da cor de uma borboleta que voará para além da sebe que reforça o muro!

 

- Também te quero mostrar uma coisa que descobri – desafiou o Mateus.

 

O Pai acompanhou-o até ao alpendre onde o petiz apontou três ninhos discretamente construídos. Ainda tiveram tempo de ver um pássaro que saiu alarmado de um deles. Ouviram depois o chilreio que se elevou nas árvores ali perto. Uma sinfonia alegre, possível porque a estrada escura que passava encostada aos muros da casa permanecia calada há vários dias. Parece que os homens tinham resolvido fazer silêncio para escutar o concerto da Natureza.

 

- Amanhã vamos almoçar a casa dos avós?

 

- Não, filho! Ainda não é possível!

 

- Quando é que vamos poder sair? Não quero estar muito tempo atrás dos nossos muros!

 

- Acho que hoje à tarde consigo acabar a casa na árvore, se me ajudarem, claro!

 

Ali perto, as glicínias formavam uma ramada de folhas verdes de onde pendiam cachos azuis sorridentes, que se deixavam tocar pelas insistentes abelhas. Um zunido tornado doce pelo aroma das flores brancas e macias do jasmim que se agarrava à varanda.

 

Caminharam então até à vetusta oliveira que ocupava um dos canteiros do jardim. Presa aos ramos robustos eleva-se a base da casa que ganhava forma à medida dos sonhos e dos materiais que iam aparecendo. Uma construção tosca, mas onde cabia a esperança de subir mais alto para ver além dos muros.

 

- Anda, sobe!

 

Subiu e sentiu que o espaço diminui à medida que crescemos - porém o Mateus encontrava aí uma ampla plataforma para observar as estrelas. A casa tinha já duas paredes feitas de retalhos de madeira e um esboço daquilo a que o rapaz gostava de chamar abóbada.

 

O pai acomodou-se por fim. Aos poucos, apoderou-se dele uma angústia cujo grito abafado queria derramar-se pelos olhos. Tentou disfarçar. Reparou nas árvores ainda sem folhas, eram liquidâmbares podados fechados sobre si próprios. Aguardavam o melhor momento para romper, para libertar os ramos e as folhas. Era preciso saber esperar! Observou depois o horizonte para lá dos muros. Era preciso saber esperar!

 

- Acho que não vou pôr aqui nenhuma iluminação, Mateus?

 

- Porquê?!

 

Sem luz era mais fácil ver as estrelas. Além de ver para além dos muros, aquela casa permitia encontrar o brilho das estrelas, aquele fulgor que atenua as noites que parecem não ter fim.

 

Quando voltou à sala, a Teresa e a Clara entreolharam-se, desfazendo-se numa gargalhada.

 

- Pai, estás cheio de folhas no cabelo! Estiveste na casa da oliveira? - perguntou a Teresa.

 

- Nem penses! - afirmou a Clara. - Não vais ouvir de novo as notícias! Vais brincar connosco!

 

Sem perder tempo, a Teresa colocou-lhe nas mãos uma caixa de legos.

 

Depressa voaram para além dos muros!


 

47. A enxada e a caneta

 

            - Desde quando há feriados ao sábado?

            O pai ouviu o protesto do filho, mas não desviou o olhar das últimas camélias que se despediam, libertando-se demoradamente dos ramos. 

Enquanto o jardim permanecia introvertido, qual madrugada aguardando, as camélias tinham despontado, numa explosão de cor e forma! Tinham desafiado as negras nuvens e o vento gélido! Agora que a terra acordava e se mostrava extrovertida, libertando cores, formas, sons e aromas, espetáculo envolvente, resolvem as camélias retirar-se. Não podemos florir todos ao mesmo tempo!

Lembrou-se por instantes da história da mãe que tinha sete irmãos, quatro rapazes, quatro raparigas! Os rapazes foram à escola, as raparigas não. Malhas que o Estado tece. Aquela mulher foi camélia no inverno longo e cinzento, abraço perfumado e colorido, melodia em cada madrugada assustada. Dizia todas as palavras que nunca a deixaram desenhar!

Recordou-se ainda do pai e das armas que este lhe dedicou, uma caneta esferográfica e uma enxada velha. Esta cansada de percorrer e de rasgar a terra. Aquela pouco rompeu a brancura das folhas, porque era preciso silenciar a vontade de pensar e de dizer. 

Duas armas que abrem sulcos para aí semear a vida. A terra acolhia as sementes para as abraçar e multiplicar, abrindo sorrisos satisfeitos. A brancura da folha acolhia as palavras que escondia, temendo a leitura cinzenta e acusadora. 

Em cada sulco um verso, lado a lado as sementes dispostas, palavras alinhadas, aninhadas, suportando um metro oprimido, segredado, assustado, suspirado. 

Sabia que, no tempo em que nasceu, as armas já podiam romper sossegadamente pelos campos. As palavras tinham já despido as impermeáveis metáforas para se tornarem inteiras e limpas. Mas era preciso permanecer, urgentemente!

Deixou as camélias e resolveu contar estas memórias ao filho, porque o medo não escolhe o dia da semana.


 

48. As mães não sabem subtrair

 

O jardim elevava-se. Parece não saber fazer outra coisa! Recebia aquela dádiva como quem sente uma brisa de olhos fechados A chuva tocava levemente as folhas, sussurrando-lhe sílabas que as tornava mais verdes e agradecidas.

Ele depositou o pensamento naquela cena, procurando apenas ver. Por momentos, não queria entender, apenas olhar tal como a chuva apenas cai. Segundos que fogem do tempo, que o relógio não alcança, lugares vazios, praças abandonadas.

- Em que pensas?

Os ombros foram os primeiros a responder, precipitados. O rosto permaneceu imóvel, as mãos perdidas num ritmo qualquer contra o vidro.

O calor do rosto que se aconchegava no ombro tornou o pedaço de jardim ainda mais surpreendente - as cores permanecem escondidas nos nossos olhos até que um abraço as liberte.

- Ainda não me respondeste!

Um pássaro regressava ao ninho que habilmente construíra entre as travas do alpendre.

- Este ano temos mais dois ninhos!...

Ela sorriu! E apertou ainda mais o abraço.

- Domingo é o dia da mãe… Não sei o que possa oferecer-te. Não quero que seja mais um peixe fora d’água…

Riram. Era constante aquela recordação do primeiro filme que viram juntos. Horrível! E de quem tinha sido a escolha? Riram.

- Podes escrever…

- Não tenho ideias.

- Olha para mim!

Aceitou. Reparou que os olhos têm uma linguagem única que torna as palavras redundantes. Em cada brilho, em cada movimento, em cada lágrima, uma história. Preciso era tempo para ver, ver meigamente como quem segura uma página que liberta, palavra por palavra, as linhas que compõem o nosso ser.

- De que te ris agora?

- Lembras-te daquela carteira azul que me ofereceste certo Natal?

- Mais um peixe fora d’água!

Era melhor escrever. 

 

Procurou os olhos. 

Quantas vezes os escutamos? 

Por eles começamos a amar, um olhar basta! 

Depois perdemo-los da vista, 

ficando, perigosamente, afastados do coração.

 

As mães sabem ver muito bem! 

O botão fora da casa, 

a cor que não se dá bem com a outra, 

o buraquinho por onde espreita o dedinho quando tiramos o sapato 

e as palavras que os olhos desmentem.

 

As mães não sabem subtrair:

em cada gesto a multiplicação, 

mesmo quando dividem.

Só as mães sabem quando a divisão nunca é menos!

Só elas sabem dividir assim, 

a ter mais quando importa repartir.

E multiplicam os abraços, 

os beijos, 

os sorrisos.

As contas de menos nunca são exatas, 

numa deriva constante e teimosa para a soma!

 

- Já sabes?

- O quê? – brincou.

Ela manteve o abraço e repararam que a chuva tinha abrandado. A terra, vaso maternal, estava saciada e o jardim respondia ao apelo.

- Acho que já tenho um bom título… não, não é esse.

Manteve-se o abraço. 

Preciso era tempo para ver.

 


 

49. Há dias fui à praça

 

A noite aproximava-se não porque a sombra quisesse, mas porque o Sol se mantinha fiel a si próprio e a terra continuava a rodar, ficando, por vezes, às escuras. Nada de novo.

Mas era preciso levantar dinheiro no multibanco mais próximo. Dois minutos de carro, um cartão, dois sacos de plástico, um para proteger a mão que sabia o código, outro para guardar o dinheiro.  Reviu mais uma vez todos os movimentos e saiu.

A estrada principal apareceu imediatamente no fim da travessa, silenciosa, adormecida. Percorrê-la naquele momento era como uma fuga sem culpa. Olhou várias vezes pelo retrovisor. Nada. Seguiu em frente inseguro, tal como a Leonor. Mas só isso, até porque ela queria muito ir à fonte e ele, se pudesse, não saía de casa.

A praça esperava-o, vazia. Ninguém. Nem um carro. Nada. Silêncio apenas contrariado pelo voo de um pássaro espantado com o viajante inesperado. 

Olhou à volta. Reparou no cuidado triângulo central e nos bancos abandonados. O cruzeiro continuava ao centro, apontando a igreja que ele resolveu procurar por entre os centenários plátanos. Descobriu então São Miguel que fitava a praça como quem a quer proteger, espezinhando um inimigo invisível que parecia atacar os incautos.

Dirigiu-se depois à máquina encostada aos avisos da junta alinhados no expositor. Estranhou as lojas renovadas que pareciam ter todas o mesmo número que se destacava nos avisos colados nas portas. Dezanove. Todas fechadas, todas à espera, todas dezanove.

Preparava-se para introduzir o cartão quando ouviu vozes. Olhou novamente a praça. Ninguém. As janelas das casas mais próximas permaneciam fechadas…

Mas os sons tornaram-se mais nítidos e ele caminhou na sua direção.

- Meu caro Sebastião, tem toda a razão. Este silêncio, este abandono é extremamente necessário. Recorda-se por certo do que enfrentámos em 1918.

- Foram anos duros, amigo Crispim. Para não falar da terrível doença que durante décadas fragilizou a nossa população. Tenho ainda presentes as palavras do Cesário que com dureza sábia perpetuou a perda de um dos seus… Uma tuberculose abria-lhe cavernas!

- Sim… ainda hoje lembro com orgulho os meus colegas que nas primeiras décadas do século passado combateram com determinação essa enfermidade. Mas o que me deixa mais preocupado são as nossas crianças! Veja aquela escola, sem elas perde todo o sentido!

- Sei muito bem o quanto se empenhou na sua construção. Um edifício distinto! E à Beira foram mesmo chegando notícias acerca dos prémios que foi oferecendo aos estudantes mais esforçados.

- Mas o meu amigo Sebastião não me ficou atrás. É sabido o quanto se dedicou ao desenvolvimento do ensino por terras de Moçambique!

Curioso! Um em frente ao outro, na terra que os viu nascer, numa conversa silenciosa que os anos não poderão calar! Ciência e fé… e esta, nada que é tudo, a entrar na realidade e a fecundá-la.

Voltou ao multibanco e depois levou o dinheiro para casa, certo de que a praça já não lhe parecia tão vazia. Certo de que o passado também assegura o futuro e de que o saber persegue a esperança que sempre lhe abre o caminho.

Entretanto, a praça aguarda. Em breve, chegarão outros passos, outras vozes, vencedoras.





 

50. Temos mesmo de ler isso?!

 




 

- Temos mesmo de ler isso?!

Do espanto do ouvinte o rapaz traduziu a resposta que julgou inconveniente.

- Mas para que serve se não vou fazer exame?

Em tempos, afastados tempos no tempo, houve quem riscasse no chão as linhas que o desalento tecia perante o cruel e iminente apedrejamento. Também agora, sentado na cadeira, agarrando aquelas palavras que a distância tornava ainda mais duras, o ouvinte desenhava pequenos círculos no ambiente de trabalho, cercas onde parecia estar encurralado. Ganhava tempo, procurava as palavras que melhor contrariassem aquela ingratidão.

Levantou-se e voltou segundos depois, trazendo numa das mãos um pedaço de madeira, o que restava de um tronco cortado à medida.

- Para que serve isto? – perguntou, levantando o toro para que todos pudessem ver do outro lado.

Silêncio! Alguns ligaram as câmaras, saindo da escuridão, como se para ver fosse necessário ser visto.

- Para que serve isto? – insistiu.

O rapaz que tinha apontado as palavras como quem as quisesse julgar em praça pública arriscou como se fosse óbvia e pueril a resposta:

- Para me sentar.

Parecia-lhe aceitável! Ali podia alguém descansar depois de uma longa caminhada.

- Para segurar uma porta – riu-se ainda outro à distância.

- Para queimar – acrescentou outro.

- Para queimar ou para ser queimado? – reagiu o ouvinte que, perante o desentendimento acerca do sujeito ativo e do sujeito passivo, explicou – ser queimado para dar calor, luz e afastar os animais na noite escura… ou para queimar o que queremos anular nas chamas ou até purificar.

Um deles levantou a mão, queira falar, mas hesitava.

- No ano passado, – acabou por dizer – vimos os moldes que serviam para fazer belas peças de vidro…

- E?! – disparou outro.

- Era de madeira o molde, lembras-te?

O ouvinte ficou entusiasmado, cada palavra era o molde da mais bela ideia! E continuavam ainda os círculos no ambiente de trabalho, agora mais largos, ganhara algum espaço.

- E beleza, haverá beleza neste pedaço de madeira?

Silêncio. Parece que depende sempre de quem a procura.

- Sim, se fizer com ele um instrumento musical… - interveio mais uma vez o rapaz sempre hesitante. Por vezes, a nossa certeza não é a dos outros.

- Ou uma bela estátua – concordou o ouvinte mais velho – capaz de narrar uma vida, de restaurar a coragem do mais desanimado dos homens, de destronar o mais arrogante dos governadores!

Notava-se um certo desconforto nos olhares que chegavam da distância. Afinal, quando é que o homem iria responder à pergunta inicial e deixava de fazer círculos.

- Ainda não respondeu à minha pergunta! – reagiu o rapaz incomodado, qual miúdo com uma pedra na mão e que precisava de um motivo para o arremesso tão desejado.

- Já alguém leu este livro até ao fim? Tu já leste este livro até ao fim?

Aos poucos, as câmaras esconderam os rostos e as pedras foram caindo das mãos derrotadas.

Só o rapaz das palavras hesitantes se manteve às claras.

- Eu já li.

Claro que sim.

Ele sabia que as palavras também nos sustentam e que um estômago satisfeito não nos satisfaz. Aí começa a nossa humanidade.




 

51. Inesquecível esta tropa chinela.

 

            Percorri o corredor certo de que os olhares atentos não me deixariam escapar. 

Passei o primeiro banco. Pacífico. Não quis olhar para o fundo do túnel à procura da famosa luz porque ainda era cedo e, além disso, ao fundo do corredor, que naquele momento me parecia um túnel, esperava-me meio batalhão de olhar engatilhado. Ainda observei o banco de soslado – que me perdoe o autor das brincriações – mas nada, nem um movimento na minha direção. As cinco meninas continuavam sentadas, encostadas, e murmurando segredos quase de estado: tinha acabado de passar um rapaz, por assim dizer, um pouco mais velho, talvez bom aluno… Mas com certeza falavam das orações subordinadas, coisa bem menos complexa. Fiquei descansado.

Mais dois passos e encarei com outra menina que aguardava paciente quem ainda não tinha chegado. Seria feliz esse que ela esperava tal o sorriso simpático com que me saudou. Além disso, registei que tive direito a troca de olhar, pepita nada fácil de encontrar, que confirmou a simpatia do sorriso.

Preparava-me para chegar à esquina das tormentas. Era ali que os rapazes se concentravam, por isso, previa correntes contrárias, ventos fortes, rochedos que barrariam o meu caminho. O primeiro apanhou-me logo ao dobrar a coluna:

- Bom dia! Gosto, gosto muito! A cor verde é sublime! Fica-lhe muito bem! Foi ideia sua ou foi aconselhado?!

Toquei no ombro do rapaz e agradeci o que não deixava de ser um elogio, certo de que só assim convertia aquele indómito vento, qual Gama, enfrentando o horrendo Cabo que afinal apenas precisava de contar a sua história de amor. Atrás dele juntaram-se outros rapazes que também aprovavam a cor das minhas calças. Eram agora seis! Observei-os mais de perto por breves segundos que permitiram sondar a temperatura daquelas almas que ao primeiro olhar logo acalmavam a tormenta. Mal sabiam que o verde das calças era o verde militar, o verde daquela tropa que se preparava para marchar por veredas bem mais desafiantes. 

- Deixem o stor passar! – ouvi um deles dizer, enquanto abria os braços para forçar o caminho.

- O teu irmão já chegou? – perguntei a um deles.

Respondeu-me, desviando apenas o olhar para um dos bancos mais afastado.

- Hoje trazem mais borrachas para partir aos pedacinhos?  - questionei, surpreendendo, outros dois. Naquele momento sorri de forma discreta, senti-me como o Anjo por eles já conhecido: não se embarca brincadeira/nesta sala divinal. 

Dirigi-me depois ao banco mais afastado. No percurso, reparei que no rés-do-chão um outro petiz me acenava vivamente, enquanto esperava pela professora de apoio. Percebi que estava bem e continuei. Alguns passos à frente, encontrei mais seis rapazes ligados às máquinas. Sentados lado a lado, inclinados e apoiando os braços nas pernas, seguiam atentamente as imagens e soltavam risadas que procuravam disfarçar o mais possível. Cómico de situação e de caráter, com certeza! Coisas triviais, mas com imensa piada. A comédia sempre se alimentou de coisas banais! Para os factos ímpares, supremos, guardamos a epopeia ou tragédia, que não tem de ser uma tragédia!

Ainda ouvi uma voz conhecida:

- Stor, preciso de falar consigo!

Claro. Falaríamos daí a pouco, com calma, tempo e espaço. 

Avancei.

- Bom dia! Preciso que venhas para a sala de aula. Vens comigo?

Primeiro olhou-me intensamente, demoradamente, depois procurou as palavras que melhor expressassem a sua discordância com o mundo. Disparou todas as razões e só depois resolveu pegar na mochila. Foi sinal bastante para reacender a esperança. Ainda ouvi:

- Também gosto muito da cor das suas calças!

Era uma clareira por onde se via um imenso céu azul. O humor é um bom sinal.

A tropa deixou por fim a parada e entrou na sala. Depois da chamada, verificou-se que faltavam dois. Mas logo a sombra de um assomou à porta. Entrou, cumprimentou, elegante no trato e no jeito de andar, dirigindo-se para o lugar. Pelo caminho, acarinhou longamente com o olhar uma das meninas da turma. O amor é amigo da esperança!

Ainda faltava um que chegou pouco depois, rompendo pela sala como se a rapidez o tornasse invisível.

- Bom dia!

Estavam todos! Olhei o fundo da sala e reparei mais uma vez no insuflável e vazio esqueleto pendurado na parede que, naquele dia, ostentava mais uma inscrição: «tropa chinela». Sorri por saber que aquela gente se inspirava numa figura que possivelmente conhecia algumas das suas histórias. Era uma espécie de bandeira que os unia e inspirava.

- Tropa chinela!

- Sim!

- Sentido! Em frente, trabalhar! – arrisquei.

- Qual sentido? O das palavras? – ouvi um deles perguntar lá do fundo.

Inesquecível esta tropa chinela.


 

52. No tempo em que passam os caracóis

 

A Teresa entrou na cozinha repentinamente, deixando escancarada a porta que dava para o alpendre. Mesmo antes de falar, apontava já a razão do alvoroço que os olhos arregaladamente sublinhavam.

- Mãe, está um caracol no vaso! 

Imediatamente lhe agarrou a mão, conduzindo-a ao local indicado.

- É só uma concha, vês!? – mostrou a mãe, enquanto retirava de entre as folhas da orquídea aquela espécie de carapaça que mais parecia uma casa abandonada.

- Oh! O que aconteceu? Onde está o Caracol?

A Teresa atreveu-se a pegar também na concha que virava e revirava em busca dos tentáculos que já não procuravam o Sol.

Entretanto já o Mateus e a Clara se tinham aproximado e assistiam divertidos ao desalento da mais pequena.

- Teresa, há pouco, eu vi um caracol passar por aqui – intrometeu-se o Mateus. Acho que deixou a concha na oficina e volta mais logo.

- Não viste nada, ninguém vê os caracóis a passar! Muito menos sem a concha! – protestou a Clara.

- É verdade!

E o Mateus foi desembrulhando as ideias que chegavam da imaginação prontas para a brincadeira:

- Reparem. Veem este buraquinho aqui? É preciso consertá-lo. É como ter uma telha partida, o caracol não pode viver com segurança nesta concha. Por isso a deixou ali no vaso.

As irmãs pareciam convencidas. Pareciam.

- Mas tu disseste que viste passar um caracol! Não acredito! Como sabes que era o dono desta concha? Por acaso viajava sem concha? – protestou a Clara.

- Para onde foi o caracol, Mateus? – perguntou a Teresa.

Perante a breve hesitação do irmão, a Clara foi conclusiva:

- Ninguém tem tempo para ver passar um caracol, Teresa. O Mateus está a mentir! Não viu caracol nenhum.

Mais ao fundo, sentado à mesa que sabia aproveitar a sombra que o ácer mais próximo lhe oferecia, estava o pai. As palavras da Clara tinham-lhe assaltado o ouvido e por ali ficaram como o eco que se prolonga entre as montanhas: ninguém tem tempo para ver passar um caracol! Será ele assim tão demorado ou será da urgência em que vivemos?

O pai por momentos pensou que seria uma estupidez ficar parado, vendo passar um caracol. Por momentos, pois logo de seguida invadiu-o a ideia de que o problema não era esse. 

Talvez ver passar um caracol seja o mesmo que ver as pétalas que se abrem quando o Sol as acaricia. Ou ouvir a nascente que percorre o incipiente leito tocando as pedras, como os dedos que percorrem as cordas afinadas. Ou seguir o rasto das letras alinhadas que página a página dão corpo a uma história a que o tempo nunca deu tempo. Coisas da imaginação! Demoram como demora o caracol. Mas a verdade é que não sabem que demoram. Só os apressados sabem que demoram, sempre com urgência de estar onde não estão. É preciso restaurar esta demora, agraciar esta lentidão!

- Pai!

A Teresa trazia na mão a concha abandonada pelo caracol. Queria saber se o Mateus tinha razão. Se aquela conha estava no vaso para ser restaurada.

- Sim, filha. O Mateus tem razão. Vês aqui este buraquinho? É preciso consertá-lo para que o caracol não tenha frio no inverno.

- Sim – concordou a Teresa – e não entrem formigas.

- Achas, Teresa! – Discordou a Clara. – Às tantas vão as formigas fazer cócegas ao caracol!

O pai olhou alguns segundos o filho pedindo-lhe apoio.

- Teresa – avançou o Mateus -, o caracol que eu vi levava uma concha emprestada, mais logo volta para levar a dele. Vamos colocá-la de novo no vaso.

A Clara segui-os desconfiada.

O Pai permaneceu sentado à mesa, certo de que aquelas demoras eram as que menos atrasavam.  Ainda reparou no sorriso divertido da Inês que tinha assistido àquele diálogo. Não tinha emenda!


 

53. Conversa afiada

 

Entrou na caixa, conduzido pela mão que levantou suavemente a cobertura, e aconchegou-se no espaço livre ao lado dos colegas de ofício.

- Encosta-te a mim, deves estar um pouco tonto de tanto balançar naquela folha.

- Desfaço-me para dar cor àquelas formas! 

- Eu cá prefiro os traços contínuos. Detesto que me façam andar para trás e para a frente, nunca sei para onde vou!

Assim falavam o verde escuro e o verde claro, lado a lado na mesma casa. Aí descansavam, após intermináveis viagens por desertos brancos onde sempre deixavam um rasto de beleza.

- Olha, agora vai o amarelo! Coitado! Vai diretamente para a composição! Nem sequer passa pela aguça! – espantou-se o verde claro.

- Assim rombudo enche mais depressa a forma do Sol – explicou o verde escuro.

- Eu prefiro trabalhar bem afiadinho, o meu risco é mais delicado.

- Mas sabes que perdes um pouco de ti sempre que te aparam?!

- E para que quero eu permanecer inteiro?! Os inteiros nunca serviram para nada! Nunca desenharam um sorriso, nunca sentiram o calor de um abraço, nunca acompanharam uma lágrima, nunca cheiraram uma flor, nunca guardaram um segredo, nunca preencheram um coração!...

- Pronto, pronto, pronto! - convenceu-se o verde escuro, procurando acalmar o amigo verde claro.

E ficaram calados, enquanto observavam o colega amarelo que percorria o círculo e acompanhava os raios quentinhos até ao telhado da casa. Repararam depois no suspiro de alívio que deixou escapar ao voltar a casa, colocado ao lado dos companheiros.

- Para a próxima não escapa! Tenho de passar pela aguça, já não tenho bico, calaram-me o bico! – confessou divertido e orgulhoso. E logo adormeceu.

- O vermelho disse-me há dias que todos somos importantes. Que não há cores melhores do que outras… – arriscou o verde escuro. Perante o silêncio do companheiro, insistiu – Nós, por exemplo, estamos em todos os desenhos. Não há um sem um pedaço de natureza! Dizem até que o verde dá cor à esperança!

- Parece-me bem: a natureza, quando promete abundância, veste-se de verde!

- E então?!

O verde claro resistiu com segurança aos argumentos do verde escuro. Chamou ainda o vermelho e o amarelo para se certificar de que naquela casa, onde todos tinham lugar, não havia importâncias destacadas.

- É um facto – reagiu o vermelho – até porque facilmente nos podemos unir para dar origem a uma cor nova e surpreendente.

- Reparem no lugar onde encostam o vosso bico – pediu o amarelo.

Olharam com cuidado. No topo da caixa havia marcas de todas as cores: o lugar onde cada um agora descansava havia sido assinalado pela presença dos outros. Em cada lugar, um pedaço das outras cores!

O espanto foi suficiente para que o verde claro encerrasse a discussão, fazendo um sinal discreto ao vermelho que não entendeu.

- Diz?

O verde claro explicou:

- Agora és tu. Acho que vai pintar o telhado.

Todos sorriram.

Sabiam de cor a forma daquelas casas felizes onde o Sol tinha sempre lugar.

Na casa deles também.


 

54. Abraço!

 

- Pai, o que vês para além deste dia?

- Vejo o que fiz e prevejo o que não fiz.

- Hum, só isso?

- Sim, tenho memórias e projetos. O que faço hoje, ocupando o tempo que vai deixando de ser futuro, torna-se passado, vestígio longo e permanente.

- Então vês apenas aquilo que os teus olhos alcançam?

- Não, filho. Através dos teus, alcanço outro horizonte que começa para lá do meu.

- Certo. E o que vês quando me abraças?

- Nada, gosto de fechar os olhos quando abraço.

- É melhor o abraço?

- Sim, por momentos, recusamos o tempo e, quando abrimos os olhos, regressamos mais fortes para o enfrentar.

- Dás-me um abraço?

- Claro. 

A cadeira baloiçava levemente. 

O silêncio acariciava a brisa que tocava levemente as folhas das japoneiras.

- Pai, o almoço está pronto.

Surpreendido, olhou o filho, levantou-se e seguiu-o. Ainda pensou em falar-lhe sobre aquelas coisas, mas o melhor era começar pelo abraço. 

Fixou o melhor momento: ao deitar, quando a noite nos segreda as memórias que discretamente mistura com os sonhos.


 

55. Uma tenda no jardim

 

A noite tinha chegado e havia espalhado pelo lugar a sua mantinha leve e brilhante. A lua parecia um candeeiro atento que resgatava do escuro as mais belas flores do jardim. O silêncio era agora o tempo dos animais: os cães uivavam notícias ao desafio, as cigarras afinavam o interminável cânone e os gatos ronronavam histórias de caça.

- A minha lanterna, mãe?

A Clara avistou-a rapidamente, antes mesmo da resposta pedida, e divertiu-se a fazer círculos brilhantes no teto da sala.

- Clara, essa lanterna é minha! – queixou-se imediatamente o Mateus.

- Não é nada! A tua é a redonda! – contrariou.

Daí a pouco, a Teresa seguiu os irmãos, que já tinham saído para o alpendre. Um pouco atrás, testando a lanterna do telemóvel, avançou também a Inês. 

- Pai, ainda demoras? – protestou o Mateus que queria chegar depressa ao jardim da casa vizinha.

Saíram.

O orvalho afagava as ervinhas do caminho. Cada gotinha deslizava pelas pétalas e pelas folhas, saciando a sede que o Sol tinha causado.

- Caminhem pelas marcas dos pneus, para não molharem os pés – aconselhou a mãe.

Avançavam como exploradores pela floresta desconhecida. Debaixo do braço, levava cada um a sua almofada. Os mais pequenos abraçavam ainda um pequeno peluche - aquele amigo destemido nas aventuras mais exigentes!  As lanternas abriam oásis claros no chão e por lá avançavam curiosos e a cada passo espantados com as dádivas da noite e da luz.

- O que é aquilo?! – assustou-se a Clara que comandava na frente aqueles argonautas da noite.

Pararam todos junto ao dedo esticado. As lanternas bailavam inquietas, varrendo o chão em todas as direções.

- Não vejo nada – reagiu o Mateus.

Era preciso ver melhor, esperar alguns segundos para que os olhos ávidos de aventura acalmassem e reconhecessem calmamente as formas que naquele momento ocupavam o caminho. Um exército de capacetes redondos e castanhos fazia a longa travessia do caminho.

Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar 

Encolheeeeeeeeeeeeeeeer

Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar 

Encolheeeeeeeeeer

Recolher

Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar 

Encolheeeeeeeeeeeeeeeer

Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar 

Encolheeeeeeeeeer

Recolher

Manter

O primeiro dos caracóis tinha sentido vibrações estranhas no caminho e de imediato ordenou que todos se refugiassem na concha.

- Olha, Mateus, são caracóis! – apontou a Teresa.

- Tantos! – assustou-se a Clara.

- Estão a mudar de casa, – arriscou o Mateus – vão passar a viver no meio destes agapantos. Não os pisem!

Por momentos ficaram em silêncio.

Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar 

Encolheeeeeeeeeeeeeeeer

Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar 

Encolheeeeeeeeeer

Sentir

Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar 

Encolheeeeeeeeeeeeeeeer

Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar 

Encolheeeeeeeeeer

O pai avançou a coluna dos caracóis e todos o seguiram em direção ao portão bordeaux. Entraram e pareceu-lhes que a noite se tinha tornado mais escura.

- É apenas uma nuvem que passa e esconde a lua – descansou-os a mãe. – Daqui a pouco volta a brilhar.

Pelo sim, pelo não continuaram encostados, muito chegadinhos, até encontrarem a tenda que nessa tarde os pais tinham montado no jardim.

- Esta é a melhor noite da minha vida! – sussurrou a Clara.

- Tenho medo! – disse a Teresa, enquanto agarrava a mão do pai.

As árvores e os arbustos esticavam as sombras conforme a brisa lhes segredava.

- A tenda está ao fundo do jardim. Venham por aqui – orientou a Inês.

- Porque é que o avô não deixou as luzes ligadas? – lamentou-se o Mateus.

- Porque tu disseste hoje à tarde que era mais interessante sem luzes, lembras-te?! – espantou-se a irmã mais velha.

Passaram ao lado do pequeno lago onde as rãs coaxavam para estranhar aqueles visitantes noturnos. Algumas mergulhavam como se fossem vigias incumbidas de avisar as outras, que permaneciam no interior do lago, aninhadas nas folhas calmas dos nenúfares.

- Ouviram?! – reagiu o Mateus.

- Devem ser as rãs a mergulhar no lago. Tem cuidado com essa raiz – avisou a mãe.

Abriram a tenda esticada entre japoneiras e áceres frondosos que deixavam no chão um tapete macio.

- Este quarto é nosso! – dividiu a Clara, agarrando a Teresa e a Inês – O quarto das raparigas!

- Então e eu?! – protestou o Mateus.

- Tu ficas com os pais – afirmaram as três em uníssono.

Unidos os sacos-cama, enfiaram-se as raparigas no super-saco-cama e o Mateus recolheu-se discretamente satisfeito pela proteção que o espaço lhe garantia.

- Meninas, desliguem as lanternas! – pediu a mãe. – Agora é para dormir.

De imediato, ouviu-se um protesto vigoroso, mas sem sucesso. 

Daí a pouco, o silêncio já combinava com o sono a melhor estratégia para aquela noite na tenda. Era preciso saber quem adormecia primeiro e quem seria o último.

- Que barulho foi este? – perguntou a Teresa, que falava já entre pausas adormecidas.

- Dorme, Teresa, não foi nada – segredou-lhe a Inês.

Os sonhos foram acordando e a tenda foi adormecendo em silêncio.

Cá fora a Lucky ainda se lamentava por ter tropeçado num dos fios da tenda. Assegurando-se de que já ninguém falava no seu interior, distribuiu todos os gatos pelos lugares escolhidos ao redor daquela estranha casa e advertiu-os para que, ao mínimo sinal de perigo, miassem o código de alerta. 

Aquela noite era mágica. Todos os animais do jardim baixaram a voz e evitaram movimentos desnecessários para não perturbarem aqueles inesperados inquilinos.

Aquela casa era desmedida, do tamanho da imaginação, do tamanho dos sonhos, esse mundo onde cada um recolhe os tesouros que tornam a vida mais suave e encantadora.






 

56. Cantiga chinela

(Tropa Chinela, pelotão dedicado e aprendiz)

 

A poesia invadia a sala. Cada palavra chegava carregada de tempo e de espanto. Trazia rugas nas voltas desenhadas e a história dos séculos no ventre de cada vogal.

 

- Digades, filha, mia filha velida,

por que tardastes na fontana fria?

 

Chegavam as palavras fundadoras. Chegavam e não se reconheciam na descendência reencontrada. Sentiam no corpo a perda de cada sílaba, a rebeldia dos sons desaparecidos, a coragem dos sons alterados. 

Repararam no sorriso benevolente das meninas sentadas, longe das mães e das perguntas prudentes que sempre souberam fazer. Perceberam que elas, as meninas, já não apanhavam flores para pôr no cabelo a caminho da fonte. E sentiram-se fechadas na sala, longe dos verdes campos da cor do limão, das fontes frescas, limiar de vida. Percebiam-se despidas das melodias que outrora abraçavam as sílabas e dos movimentos intencionais dos amigos que desafiavam as meninas para a dança. E as fontes guardavam os segredos de cada encontro.

 

       Os amores hei.

           

Nesse momento, também eu quis saber o que faziam ali aquelas palavras desamparadas e quem as escutava nas suas conchas puras. Notei que alguns rapazes riscavam a página, num vaivém incessante, qual sismógrafo, detetor de terramotos interiores. Que segredos se escondiam nas linhas daquele lápis? E que perguntas terão ainda as mães por fazer?

 

- Tardei, mia madre, na fontana fria,

cervos do monte a áugua volv[i]am.

 

Sorri, porque um dos rapazes lá do fundo tinha percebido nestas palavras a intemporalidade da resposta. O sorriso discreto e o ligeiro aceno bastaram. Examinei, depois, secretamente, cada olhar e fui descobrindo as fontes onde se perdem, onde se atrasam. 

 

  Os amores hei.

As palavras fundadoras avolumavam saber e espanto em cada brilho sentido. Com elas descobri que as fontes estavam agora ao alcance dos dedos, em cada imagem publicada, em cada comentário desejado, virtuais. As fontes estavam agora ao fundo de cada corredor, onde o reencontro acontecia à hora certa. Bastava um olhar agarrado e longo, um gesto incipiente, uma promessa contida - uma dança cujo ritmo só o coração sabia marcar: cantiga de amigo.

 

- Mentir, mia filha, mentir por amigo,

nunca vi cervo que volvesse o rio.

 

As mães, sempre madres! Ancoradas, à espera, no parque. Um olhar sagaz bastava para desembrulhar o segredo. Percebi nestas palavras uma denúncia secretamente satisfeita. Um abraço que prendia e apontava o caminho da evasão. Agarrava porque investigavam as mães quem revolvia as águas do coração. Libertava porque a água sempre procura uma fonte para ser nascente, arroio, rio, em busca de mar – cantiga de amigo.

 

  Os amores hei.


 

57. Em terra de reis

 

            - Pai! – a Clara reagia com surpresa sorridente. Admitia que ele estava certamente a brincar. – Não é assim, enganaste-te!

            O pai continuou concentrado na conversa que mantinha com o Mateus.

            - E sabes explicar o provérbio?

            - Claro… - afirmou o Mateus, incapaz de esconder uma certa hesitação agarrada aos gestos, pendurada no olhar descendente.

            A explicação foi surgindo do escuro como a lua em quarto crescente.

            - Pai, não é assim! – insistia a Clara que, percebendo o desencontro do pai, continuou – o provérbio não é assim!

            - Assim?! – estranhou o pai.

            - Tu trocaste tudo!

            Não tinha reparado nas gargalhadas e nos olhares húmidos, brilhantes, que o rodeavam. E a sua seriedade tornava o momento ainda mais hilariante.

            - Em terra de cegos, quem tem um olho é rei – disseram em coro.

            - Foi o que eu disse! – defendeu-se.

            - Não! Tu disseste: em terra de reis, quem tem um olho é cego!

            O pai sentiu-se na berlinda e sem poder desmentir o trocadilho. Mas, paulatinamente, os comentários divertidos foram perdendo a forma, abrindo o espaço necessário para que aquele ledo engano tomasse conta do seu pensamento. Por momentos, lembrou-se do dia em que a mãe lhe dera um casaco de duas faces, não tinha avesso. Podia usá-lo das duas formas: às vezes, mostrava o verde seco, outras, o castanho claro. Sempre macio, sempre quente.

            Mas aquele provérbio não virava e revirava da mesma forma. Às direitas, parecia inofensivo. Mas deixava algumas dúvidas – gostava o pai de encontrar essa terra de cegos, essa terra onde todos permaneciam distraídos, indiferentes, escondidos atrás dos seus limites. Melhor, quereria muito conhecer esse rei que se atrevera a saltar a cerca, apesar das limitações que o agarravam e afastavam o horizonte. Às avessas, tornava-se assustador! Lembrava-lhe as árvores cortadas para não fazerem sombra aos reis arbustos dessa terra onde quem via não podia ver. Felizmente o luar também é para todos.

            - Em que pensas, pai? – interrompeu o Mateus.

            - No provérbio, filho!

            - Ainda?!

            - Sim… A tua explicação é ótima! Aproveita todas oportunidades, é por aí o sentido…

            - Sim! E as minhas capacidades nunca são uma limitação! Já sei.

            O pai sorriu, acenou satisfeito, reparando que a mãe não continha o riso.

            - O Mateus só queria saber se sabias traduzir o provérbio para francês... Mas, enfim, primeiro temos de entender-nos em português!

            Sem dúvida! E riram ambos com aquela divertida embrulhada.

           


 

58. Conto contigo!

 

Foram chegando de mansinho, discretamente. Os primeiros encostaram o nariz ao vidro da janela e ali ficaram apertadinhos pelos que foram chegando depois. Espreitaram, curiosos, para ver as meninas que se preparavam para uma serena noite de sono. 

A Teresa fez uma conchinha, fechou os olhos, segurou o rosto com as duas mãos, sorriu e adormeceu devagarinho.

A Clara não. A Clara resistia, mantinha os olhos bem abertos, via para além do tecto as aventuras e os sonhos que já não cabiam na sua imaginação e brotavam nos movimentos que fazia com os braços e nas melodias aveludadas, quase inaudíveis, que segredava ao unicórnio que abraçava carinhosamente.

Eles continuavam à espera no parapeito da janela. Ainda não era o momento ideal. Sabiam que só podiam entrar em caso de emergência e estavam treinados para os longos saltos que encantavam os meninos e as meninas.  As ovelhinhas e os carneirinhos mostravam o nariz rosa e os olhos simpáticos que sobressaiam da sua lã macia e branquinha.

Pouco depois, a Clara recolheu os braços sob a colcha leve e quentinha.

- Preparem-se! - ordenou o mais velho. - Já falta pouco. Quero movimentos decididos! Os primeiros um salto só, longo! Nada de ficar a bisbilhotar lá dentro. Entrar, saltar e sair. Voltam depois para o fundo da fila. Esta menina dá sempre muito trabalho. Vamos ter de entrar e sair várias vezes.

- Quando é que podemos dar cambalhotas? - perguntou uma das ovelhinhas mais novas.

O olhar severo do chefe foi suficiente para travar aquele atrevimento. 

- Agora! - ordenou, ao reparar que a Clara tinha fechado os olhos.

O primeiro carneirinho, experiente e concentrado, saltou por cima da cama da menina que abriu repentinamente os olhos e bateu palmas.

- Boa! Agora mais um!

O chefe ficou desorientado. Não estava a dar resultado. Não era suposto que a Clara abrisse os olhos naquele momento. Contar carneirinhos só de olhos fechados! Não estavam preparados para aquela situação. 

Esperaram por uma nova oportunidade. 

A menina continuava à espera dos carneirinhos. Queria contá-los, um por um. Mas nenhum entrava com receio de ser observado. Para os ver, bastava sonhar, bastava fechar os olhos. A Clara sabia disso, por isso, por marotice, voltou a fechá-los. 

- Preparar salto! Entra! - ordenou o chefe ao segundo.

O Salto longo e elegante do carneirinho foi novamente surpreendido pela Clara que se divertia com aqueles amigos branquinhos que lhe espantavam o sono.

- Dois! Ainda melhor! Como consegues saltar tão alto?! Mais um!

O mais velho dos carneirinhos começou a ficar nervoso. Precisava de uma solução, mas qual? 

- Posso tentar? - propôs uma ovelhinha que esperava no fundo da fila.

O chefe chamou-a para ouvir melhor o seu plano.

- Tens a certeza?! Quando regressares já não estaremos aqui! Temos mais meninos à espera.

- Fico até à próxima noite. Quando regressarem, volto para o grupo.

A ovelhinha entrou no quarto, lentamente, suavemente, rodopiou, devagar, devagarinho... e parou mesmo por cima do nariz da Clara.

- Três! Que giro!... - comentou. Mas reparou que não se ia embora. - Então, vais ficar aí parada?! 

A ovelhinha voltou a saltar e a rodopiar, lentamente, serenamente, devagar, devagarinho e voltou a parar.

- Não tens mais companheiros? Onde está o quarto?

A ovelhinha desta vez não saltou, rodopiou três vezes, lentamente, serenamente, devagar, devagarinho, fechou os olhinhos e … adormeceu.

A Clara não queria acreditar. Abraçou-a carinhosamente e cedeu-lhe um pedacinho da sua colcha e embalou-a lentamente, serenamente, devagar, devagarinho, fechou os olhinhos e … adormeceu.




 

59. O Pai Natal e as renas um pouquinho aborrecidas

 

- Pai, vem cá, por favor.

O Mateus agarrou o braço do pai e conduziu-o até à janela.

- Repara! - desafiou, enquanto apontava uma constelação brilhante no firmamento.

- Não me parecem estrelas! – afirmou o pai. – Vês aquele brilho avermelhado? Assemelha-se às luzes de um carro ou de um avião...

O Mateus fixou alguns segundos a claridade estranha concentrada no céu.

- Até parece um engarrafamento!

E ficaram ambos presos àquela imagem, enquanto a noite fria crescia, espalhando o luar que a tornava suave e transparente.

De repente, o Mateus notou que o rádio fazia movimentos estranhos em cima da mesinha de cabeceira. O fio que lhe servia de antena não parava quieto. Os números vermelhos apareciam e desapareciam desesperadamente. Aproximou-se e sossegou-o, tocando num dos botões disponíveis. Nesse instante, ouviu um sussurro:

- Só as crianças poderão ouvir esta notícia. Repito, só as crianças poderão ouvir esta notícia de última hora.

O Mateus sentou-se então na beira da cama para acomodar o seu espanto. 

– As crianças são capazes de sonhar dias felizes, de lutar por eles – continuou a voz inesperada. – As crianças sabem esperar, só elas sabem, verdadeiramente, fazer de conta! Por isso, esta notícia é para elas.

O Mateus reparou que o pai continuava espantado com o espetáculo de cores que invadia o céu naquela noite. 

- Soubemos há pouco que o Pai Natal teve um problema: a rena mais velha, aquela que melhor conhece os caminhos, ficou encandeada pelas luzes de um avião e, por isso, não quer continuar a viagem. Para piorar a situação, outra delas quer abandonar o trenó voador. Queixa-se de vertigens, que não consegue adaptar-se às alturas e que prefere correr em terreno seguro. Também a mais nova de todas protesta porque os chifres sintonizam as comunicações dos satélites e que, por isso, tem andado muito confusa. 

O Mateus escutou atentamente a notícia e percebeu que o Pai Natal estava a ficar desesperado:

- Josefina, eu já disse que os teus óculos escuros estão quase a chegar. Sabes que, neste momento, as entregas estão um pouco atrasadas. Por favor, faz um esforço!

- Continuamos a acompanhar esta situação que se torna cada vez mais delicada. 

- Serafina, as renas nunca tiveram medo de alturas! Por terra, nunca chegaremos a tempo!

- Infelizmente, não vai ter sucesso: a rena continua a tremer, apavorada com as vertigens.

- Albertina, por favor, tu nunca me falaste dos satélites! Coisa estranha! Agora ouves vozes!? Vá. Tens é de continuar a orientar-te pelas estrelas, são mais seguras do que aquelas latas avariadas!

- O Pai Natal está muito atrapalhado! É como ter três pneus furados! Uma desgraça! Uma terrível desgraça! A manter-se esta situação, terá de encontrar rapidamente uma alternativa.

O Mateus levantou os olhos e reparou que o pai tinha abandonado o quarto. Procurou no céu as luzes e reparou que lá continuavam formando círculos cintilantes. Repentinamente, viu que três delas se dirigiam para terra como estrelas cadentes. Depois, voltou a prestar atenção às palavras do rádio.

- Viva! O Pai Natal parece ter encontrado uma solução para ultrapassar a resistência das renas. Depois de um simpático diálogo, concordaram com a mudança de planos. Josefina, Serafina e Albertina deixaram já os arriscados voos e desceram em direção à terra. Vão ficar longe dos aviões, dos satélites e das alturas. Estas foram as palavras finais do Pai Natal:

- Josefina, vais com elas ao encontro do meu filho. Ele conhece todas as crianças que este ano não vão passar o Natal em casa.  Já que não querem acompanhar-me, vão ajudá-lo. Podem esperar horas, dias, semanas… A vossa missão só termina quando todas as crianças regressarem a casa. Pelo ar, só trabalhamos esta noite, por terra, trabalhamos os dias que for preciso!

- O Pai Natal segue agora mais devagar, mas a tempo de responder a todos os desejos. O trenó deixou de fazer círculos e dirige-se às casas brilhantes. Sabemos também que as três renas já aterraram e vão esperar que todas as crianças voltem a casa. Sabem que o Natal não acontece sem o brilho do sorriso, sem uma lágrima feliz, sem o abraço demorado e aveludado.

O Mateus afastou-se do rádio e abeirou-se novamente da janela. As luzes eram agora quase invisíveis e ele ficou muito feliz.

- Olha, já não há luzes no céu – disse o pai que, entretanto, voltara ao quarto. – Provavelmente, eram aviões à espera de autorização para aterrar. 

O Mateus sorriu, enquanto fazia uma pequena carícia ao rádio e lhe segredava:

- As coisas que os adultos já não sabem!

Ficou feliz por saber que nenhuma criança fica sem Natal, 

que o Natal não acontece sem o brilho do sorriso, 

sem uma lágrima feliz, 

sem o abraço demorado e aveludado.

As crianças são capazes de sonhar dias felizes, 

de lutar por eles.

As crianças sabem esperar, 

só elas sabem, verdadeiramente, fazer de conta!


 

60. Feliz ano novo!

 

- Pai, quando vamos a casa da avó?

            A pergunta trazia um vazio agarrado, vinha vestida de saudade. Era um protesto sublinhado pelos olhos que o fixavam intensamente.

            - Já falta pouco! 

            - Quando chegarmos, posso dar-lhe um abracinho?

            O pai refugiou-se nos olhos da mãe que ao lado também ouviu a pergunta da Teresa. Uma lágrima atreveu-se antes das palavras.

            - Que tens, pai?

            Nada. 

Não tinha nada. 

Desde quando uma criança pede autorização para abraçar!? 

Desde quando um abraço carece de permissão?

Que afluente duvida na hora em que se lança ao rio ou ao mar onde se confunde?  

Que flor tocada pelo Sol resiste à luz que a incendeia de cor e lhe muda a forma?

            - Não tarda, poderás dar o abraço que há muito guardas no teu coração.

            - Eu sei, pai, é por causa do covid… Não faz mal! - resignou-se a encantadora menina.

            Palavras simpáticas, inteligentes. Mas não traduziam a dor que lhe cercava o sorriso. 

Os abraços inacabados pesam nos braços,

enquanto esperam pelos ombros reconfortantes.

Os abraços imperfeitos aguardam o aroma,

a melodia da respiração liberta de compassos.

- Venham cá! – propôs o pai de braços abertos. – Eu e a mãe queremos desejar-vos um feliz ano novo!

- Que nunca nos faltem os abraços! – gritou o Mateus, no momento em que a Clara, a Teresa e a Inês também desaguavam naquele abraço desmedido.

- E agora todos para casa dos avós!

- Viva! - festejou a Teresa.

 

 


 

61. História fora da janela

           


A Teresa aproximou-se, os olhos eram do tamanho de uma rede gigante. Era impossível fugir-lhe. Trazia na mão uma pequena janela que o Sol nunca tocara. Por ali, nunca a brisa suave e perfumada fizera caminho, nunca o canto dos pássaros atravessara aquele vidro sensível. O Pai ainda recuou três passos na esperança de não ser apanhado, mas logo sentiu dois toques no braço seguidos do insistente vocativo:

                 - Pai, pai!

Os óculos na pontinha do nariz libertavam carinhosamente os olhos irresistíveis.

– Pai, escreve aqui um papagaio, dois ratos, uma tartaruga.

Perante a incompreensão do adulto, continuou:

- Aquela história que eu vi no outro dia: um papagaio, dois ratos, uma tartaruga…

O pai registou na barra de pesquisa as palavras mágicas. Cada uma era agora uma cana de pesca naquele retângulo que parecia um barco na superfície do mar profundo. Rapidamente, emergiram centenas de vídeos alinhados. Mas nenhum coincidia com a memória feliz da menina.

- Não foi esse que eu vi… nem esse…

Depois, recolheu a esperança, fechou as cortinas daquela janela ambulante e retirou-se desanimada. O pai segui-a com o olhar, questionando os motivos daquela tristeza.

Onde se escondia a tartaruga? Que céus atravessava o papagaio? Em que plano magicavam os ratinhos?

Percebeu que as palavras, na janela que a menina agarrava, atraíam como ímanes pedaços de histórias até aí espalhadas por uma paisagem escondida. Mas nenhuma delas satisfazia o desejo da pequena.

Agora tentava ele. Era outro o mar onde mergulhava cada uma das palavras. Esperou. Esperou mais um pouco. Era o reino da imaginação. Daí não emergiam senão histórias desconhecidas. No reino mais próximo, o da memória, eram acolhidas as histórias chegadas de fora, aí ficavam aconchegadas até que alguém as tocasse com saudade. Mas, no reino da imaginação, cada palavra vivia na sua desconhecida casinha de onde apenas saía para se juntar com as outras na praça principal do reino. Como eram muito desorganizadas, nunca se juntavam da mesma forma. Havia as apressadas, as atrasadas. As envergonhadas, as ousadas. Umas chegavam agarradas aos séculos de vida, outras recém-nascidas, espantadas com o mar de companheiras que a imaginação conseguia reunir naquela praça das histórias.

O pai esperava então que as palavras mergulhadas voltassem à superfície.

Repentinamente, reparou que a tartaruga permanecia aconchegada dentro do meio pipo debaixo da desfolhada tília. Hibernava junto às camélias que simpaticamente floriam no inverno: era um simpático sorriso que rebentava, enfrentando o frio e as gotas de chuva que tantas vezes vestiam a forma das lágrimas.

Os ratinhos esperavam mesmo por baixo do meio pipo. Dali não saíam havia vários dias. Detestavam a chuva que lhes ensopava o pelo e limitava a visão.

Foram eles os primeiros a ouvir os ruídos que vinham do alpendre. Um ruído seco e compassado que vinha das traves de madeira.

TOC TOC TOC

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Então eles chiaram e arranharam o fundo do meio pipo. A tartaruga entendeu a mensagem e lentamente esticou o pescoço para observar a resposta.

- Temos um problema – informou pouco depois.

- Conta-nos. Corremos perigo?

- Parece-me um papagaio, não precisam de ter medo.

- O que faz ele no nosso alpendre? – protestaram os ratinhos.

- Não sei!

- O que quererá dizer-nos com aqueles toques na madeira?

Fizeram silêncio para voltar a ouvir aquela frase que ainda não fazia sentido.

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- Amiga tartaruga, observa melhor, sempre tens a carapaça...

- Mas que mal pode fazer-nos um papagaio? Saiam daí, subam por uma das colunas de granito e vão lá ver o que se passa.

Os ratinhos aceitaram a missão e discretamente alcançaram as travessas do alpendre. O papagaio não deu pela sua presença e continuou a bater com o bico na madeira.

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- Para com isso! Já acordaste a nossa amiga tartaruga! – protestou um dos ratinhos. – Se continuares, corres o risco de atrair os gatos que andam sempre por perto.

- Amigos, como é bom encontrar-vos!

- Nunca te vimos por aqui!

- Eu sei. Cheguei há pouco. Fugi da gaiola onde sempre vivi e voei, voei, voei sem parar até chegar a esta casa…

- Mas porque fazes esse barulho? Por nós bastava palrares.

- Não posso. Alguém pode ouvir e apanhar-me…

- Pois então é melhor não abrires o bico… De que precisas? Tens fome?

- Sim. Mas neste momento preciso de ajuda para soltar estas cordas. Fugi com elas agarradas às patas.

Os ratinhos verificaram que as cordas estavam enfiadas num estreito orifício entre duas traves. Dali não conseguia o colorido amigo sair sem ajuda.

- Nós vamos roer a corda e em breve estarás livre para seguires viagem.

Rapidamente os ratinhos cortaram as amarras para felicidade do papagaio.

- Obrigado! Agora já posso ir! Nunca vos esquecerei. Vou tentar abrigar-me naquelas árvores lá ao fundo. Se precisarem, serei o primeiro a chegar.

- Calma, amigo. Ainda não mataste a fome! Desce connosco. A nossa amiga tartaruga guarda pedaços de fruta que te vão dar força para continuares a tua viagem.

Pouco depois, o papagaio abriu as asas e partiu palrando um feliz agradecimento:

- Obrigado! Até breve!

 

O pai ficou por momentos surpreendido com aquela história que lhe chegava inspirada nas palavras que a Teresa lhe tinha deixado. Não resistiu:

- Teresa, vem cá. Encontrei a história que procuravas.

A menina reacendeu a esperança.


 

62. Joaninha, voa, voa

 

            - Pai, hoje, vais escrever uma história sobre o Pandinha, a Joaninha, o Unicórnio e o Passarinho!

- Vou?!

O convite da menina trazia escondida a certeza da resposta e, por isso, não esperou o tempo suficiente para que o pai encontrasse um obstáculo qualquer. Um daqueles aborrecidos que sempre impedem o sonho e que nos amarram ao presente descolorido.

Ficaram aquelas criaturas, carinhosamente embrulhadas no nome dado, à espera de uma oportunidade. A menina apresentara-as daquela maneira, recortadas, pedaços da história onde as tinha encontrado, abandonadas junto à vontade do pai.

 

O Pandinha, a Joaninha, o Unicórnio, o Passarinho!

 

Quem as escuta? Quem

as recolhe, assim,

cruéis, desfeitas,

nas suas conchas puras?

 

Que acaso as uniu, assim, vestidas de pequenez aveludada?

O Pandinha esperava pacientemente pela folha escondida no rebento que despontava no poderoso tronco. Um pouco mais acima, uma Joaninha pousou e aí ficou. Nem as antenas se moviam.

- Posso ajudar? – perguntou lentamente o Pandinha.

Silêncio.

Aproximou-se dela e suavemente orientou duas folhas onde permaneciam algumas gotas de orvalho. Então, o líquido precioso percorreu a carapaça vermelha, levando consigo o veneno azulado que a tinha atingido nos campos próximos dali.

- Obrigado! – murmurou.

O Pandinha sorriu honestamente e derramou sobre as Joaninha mais uma gotinha.

- Tens de procurar outra terra. Tenho um amigo capaz de te ajudar.

E, tranquilamente, aguardaram a chegada do Passarinho que só regressaria ao final do dia para descansar no ninho que tinha construído nos ramos mais altos daquela árvore.

- Todos os dias, o passarinho percorre terras que os nossos olhos nunca alcançaram. Ficam para além daqueles montes. Lá encontrarás um lugar onde as tuas asas serão livres!

- Estarão nesse lugar as minhas companheiras?

- Talvez… Porque não foste com elas?

A Joaninha não respondeu. Mas o Pandinha logo percebeu que ela tinha sido a última a fugir. Nenhuma companheira tinha ficado para trás, presa nas folhas inundadas pelo líquido perigoso.

- Chegou o teu amigo! – reagiu a Joaninha.

- Não o vejo.

- Está no ninho – afirmou a Joaninha que tinha sentido a ligeira vibração provocada pelo passarinho.

Daí a pouco estavam juntos.

- Sim, vi as tuas companheiras esta manhã. Voam brilhantes de folha em folha. Se quiseres, posso levar-te até lá, ao nascer do dia.

E ficaram os três serenamente em descanso. O Pandinha amigavelmente abraçado ao robusto tronco. A Joaninha delicadamente adormecida numa suculenta folha. O Passarinho cuidadosamente aconchegado no altaneiro ninho.

 

A Teresa fixou alguns segundos o desenho que tinha deixado nas mãos do pai. Por fim, reagiu:

- Esqueceste-te do Unicórnio! 

Estava cercado por aquele desabafo triste.

- Ainda não o encontrei… queres ajudar-me?

A menina sorriu e libertou o pai, dando-lhe um abraço delicado.

E foram ambos à procura.


 

63. Era uma vez uma rainha

 

 

Era uma vez uma rainha bela e brilhante. 

Caminhava serenamente, 

fixando o olhar no infinito, 

desenhando um sorriso meigo e confiante. 

Não levava manto nem coroa, 

apenas uma flor 

que, pétala a pétala, 

aveludava o caminho de quem a seguia, 

oferecendo a cor arrebatadora, 

a forma admirável, 

o perfume inquietante. 

 

Era uma vez uma rainha bela e brilhante.

Falava decidida palavras despidas,

não as conhecia figuradas, mascaradas, disjuntivas…

Descia do trono da simpatia,

abraçando a diferença,

com sábia e prudente ingenuidade.

E da vontade inquebrável, 

Das lágrimas felizes nasceram novos rebentos 

daquela flor aveludada,

            fascinados pelo Sol que os acarinhava.

           

Era uma vez uma rainha bela e brilhante.

No seu colo era o reino.

Nas mãos as portas de entrada,

Nos olhos as torres de vigia 

Onde o sonho conquistava o horizonte.

14.02.2021

 

 


 

64. Sentidos adiados

 

A Pipoca acordou quando o Sol lhe acariciou a carapaça. Era a primeira vez depois de um longo e atribulado inverno. Vira-se ao espelho do gelo que cobria a superfície da água. Sentira o embalo do vento que tornava as águas inquietas. Aguentara-se com firmeza enquanto a chuva incessante provocava enchentes demoradas, revolvendo-lhe a casa até às pedras onde se agarrava.

Mas o Sol trazia agora a bandeira da paz e a natureza abria novamente as janelas, soltando sorrisos coloridos, melodias ingénuas, incentivos aos filhotes que se atreviam ao primeiro voo. As folhas rebentavam nos ramos procurando a forma no espaço.

- Félix! Que bom rever-te! – saudou a Pipoca, quando levantou o pescoço para procurar os vizinhos.

A caturra manteve-se quieta.

- Félix! – insistiu.

- Não vale a pena! Está assim há muitos dias! Não quer falar com ninguém! – explicou o gato Sonecas que passava naquele momento. – Vês aquela parede fina e transparente? Foi colocada à volta da casa deles no início do inverno. Desde essa altura que não os oiço cantar. Raramente saem do ninho…

- Terá sido para os proteger do frio e do vento.

- Pensei o mesmo. Só não percebi aquela tristeza calada e, por isso, procurei o velho Vagaroso.

- O Vagaroso! Já não o vejo há tanto tempo! Onde vive agora? O regador desapareceu deste alpendre no final do verão…

- No tronco daquela oliveira, numa cova protegida.

- Ainda bem. E que te disse ele?

- Contou-me que se deslocou até à casa da Félix, onde permaneceu alguns dias. Falou com ela, com o Johnny e com a Gema. Mas nem a caturra nem os agapórnis souberam justificar a sua tristeza.

O Sonecas contou ainda que o velho Vagaroso não desistira. Observara-os durante algum tempo e ficara alarmado, porque, mesmo nos dias em que as nuvens permitiam que o Sol as atravessasse, eles permaneciam em silêncio, vagarosos, quietos. Mesmo quando o mandarim que vivia a poucos metros soltava melodias de esperança. Mesmo quando as melhores sementes chegavam pela porta da frente. Era como se os sentidos estivessem encerrados por tempo indefinido! Quem lhes tinha roubado a cor?! Quem lhes tinha capturado a voz?!

- Temos de ajudá-los! – reagiu, por fim, a Pipoca. – O Vagaroso descobriu alguma solução?

- Sim, mas teremos de ter muito cuidado.

Claro! Muito cuidado! A Pipoca tinha ficado a saber que o motivo daquela tristeza escura vinha daquela cobertura transparente. O que protegia os amigos do frio encerrava-os numa prisão que só abria por dentro. E mais ninguém conhecia o caminho da chave singular que descerrava a porta da alegria.

- Não entendo por que razão aquele manto transparente os entristece!

O Sonecas explicou-lhe então que, aos poucos, a Félix e os amigos deixaram de ver e de ouvir claramente os vizinhos amigos que viviam nas árvores e nos arbustos. A forma e a voz de cada um chegava filtrada por aquela barreira deturpadora. Além disso, há muito que não se derramavam por ali os aromas encantadores, vibrantes, libertados pelas asas livres, que cortavam os céus em acrobacias felizes! Há muito que não partilhavam, pelo amoroso bico, as mais delicadas e saborosas sementes com as fascinantes nómadas, essas aves que lhes ofereciam depois as melhores histórias dos lugares que descobriam em cada primavera.

- Agora percebo! – concordou a Pipoca.

- Quando for tempo, falaremos com a formiga Teimosa. Ela trará as amigas e, em conjunto com as minhas garras, cortaremos aquele manto. Tudo terá de ser feito com muito cuidado. Não sabemos como irão reagir! Será uma avalanche brilhante e verde! A cor, a melodia, o perfume, o calor, o sabor, todos confundidos! A sinfonia dos sentidos!

- Olha! Não é o velho vagaroso?

- Sim, está a fazer-nos sinais. Vamos.

Em pouco tempo foram as amigas aves desconfinadas e a brisa fresca incendiou-lhes as asas e o canto brotou como um ramo tocado pelo Sol. Reaprendiam a voz de cada sentido!


 

65. O silêncio que nos fala

 

- Pai, por que razão levantas o rosto, fechas os olhos e sorris, enquanto procuras as memórias da minha infância?

O rapaz esquecera-se da inspiração longa e suave que, qual brisa suave, primeiro chega ao lugar onde brotam as mais belas flores. O sorriso antecipava a forma singela, a cor sincera e o perfume honesto de cada uma. Os olhos assim cerrados, como farol nas costas bravias que observa quando há luz e é visto quando a noite esconde o caminho, orientavam a viagem até essa enseada segura onde as memórias aguardavam sossegadas. O rosto assim levantado parecia uma bandeira que se erguia plena de gratidão e de satisfação!

Pai e filho estavam agora atracados na mesma angra, unidos no que ficou desse tempo que os amarrou para sempre ao mesmo cais. Sim, poderão partir, percorrer distâncias diferentes, porque é maravilhoso ter onde chegar ou não saber onde se vai chegar, mas é eternamente radical saber onde voltar, ter onde voltar.

- Lembras-te ou não? - insistia o rapaz, aprendiz de adolescente, tentando domar a voz que teimava em começar grave e acabar estranhamente aguda. Às vezes, sempre grave, às vezes, sempre aguda, às vezes não sabia bem.

- Sim!

- É uma das minhas memórias mais antigas... acho que tinha cerca de três anos! Tu pegaste em mim, colocaste-me nesse cesto e passeaste comigo pela casa!

O pai acenava concordante. Estavam os dois sentados lado a lado, unidos no mesmo momento, tocados pelo Sol sereno que parecia satisfeito.

- Tens também alguma memória da tua infância… que me queiras contar?

Tinha várias. Aguardavam alinhadas, lombadas desejosas de proximidade, ávidas de espaço que lhes acolhesse as histórias encerradas.

- Hoje é um dia especial… quando tinha a tua idade… enquanto vivi em casa dos teus avós… lembro-me bem!

- Conta!

O pai regressou a essas tardes de Sexta-Feira e percebeu que ainda mantinham a cor pesada, silenciosa, imponente. Havia nuvens que teimavam em juntar-se, ficando cada vez mais escuras. O Sol aguardava. Eram quase três horas da tarde.

- A essa hora, o meu pai aproximava-se, vindo do campo, onde acarinhava as flores que anunciavam os frutos, e esperava junto à entrada da nossa casa. A minha mãe vinha de dentro e ficava ao seu lado, os dois encerrados em profundo silêncio. Depois, o meu pai tirava respeitosamente a boina. E, às três da tarde, soavam dolorosamente as roucas sirenes das fábricas. Tudo parava! Terminavam as vozes na rua, estacionavam serenamente os carros. Silêncio. Até os pássaros recolhiam as melodias inocentes. Era um minuto longo. Um minuto sincero, enorme, que ainda hoje me espanta!

O rapaz procurava as melhores palavras para as ideias que aguardavam impacientes.

- Não percebo… disseste que hoje é um dia especial?!

 - Sim, fundamental. Guardo aquele silêncio inspirador, que ainda procuro alcançar…

- Estás a falar de Jesus?!

- Sim.

O pai inspirou longa e suavemente, levantou o rosto, fechou os olhos e sorriu. Regressava feliz daquelas memórias. Naquela Sexta-Feira, a humanidade tinha-se reencontrado. Naquela Sexta-Feira, renascera a fraternidade que nos justifica! Uma nova ordem que nos obriga a sair da nossa certeza, a repensar a nossa grandeza! O amor alcançara uma nova medida, tendo vencido a crueldade que o arrastara pelas pedras da Via Dolorosa.

Por fim, fixou o filho e sorriu, reparando que já passavam alguns minutos das três. Tinham feito silêncio naquela Sexta-Feira.




 

66. Não fujas, rapaz!

 

Olhou-os a todos como as pétalas que gentilmente abraçam o Sol. Só no silêncio acontece um abraço assim! 

- Hoje vamos ler? 

- Sim. 

A resposta satisfez a pergunta, mas vinha carregada de inquietação que logo transbordou: 

- Estás bem? 

Os olhos encontraram-se, no momento em que a pergunta descia da curva lá no alto, e a rapariga acenou afirmativamente, deixando fugir um ligeiríssimo sorriso. Sentia-se mais confortável: as interrogativas palavras eram como uma mantinha quente e macia onde nos encolhemos para ouvir a nossa história preferida. Sim, podia ser, a chuva e o frio sintonizam a escuta! 

Daí a pouco, a narrativa escolhida e partilhada brotou do fundo dos ecrãs, O caminho para a verdade, e o seu fresco aroma invadiu a memória daqueles adolescentes que se mediam com a grandeza daquelas palavras e com a estranheza dos atos contados. 

Paulatinamente, foram surgindo as palavras por onde emergiam os pensamentos até então agarrados à história do Matias e do Ricardo. O primeiro, enquanto caminhava, chutou uma pedra que quebrou o vidro de uma janela. Num ápice, fugiu, deixando o amigo nas mãos do dono da casa que, injustamente, o acusou. Mas, no final, venceu a consciência feliz de Matias que resgatou o amigo do castigo paternal. A partilha não tardou. 

- Podes ler a tua reflexão, por favor? - pediu o professor. 

Sim, podia. Levantou os olhos ainda uma vez antes de os agarrar às palavras escritas. Era como pedir licença para falar, abrir uma porta para deixar passar o pensamento que o atormentava: 

- … enfim, fiquei espantado por não terem fugido os dois. O Ricardo foi um bocadinho parvo, devia ter fugido também! Se fosse comigo, fugia de certeza! 

Bendito conto que os fazia falar assim, pensava o professor. Silêncio e escuridão - e nada mais! foram as palavras que lhe surgiram depois e vinham ameaçadoras da névoa que se apoderara da sala. O silêncio nascera no olhar dos companheiros de turma. Mas o professor, também ele, naquele momento, paladino do amor, continuou à procura, dentro daquele palácio encantado:

- Fugias?! 

- Fugias?! Fazias o mesmo connosco? - exaltou-se uma das colegas da turma. 

O rapaz circum-navegou em torno daquelas ilhas que o fixavam, formando um arquipélago escarpado onde não podia aportar.  

- Não, claro que não! - continuou, procurando uma enseada. 

O silêncio permanecia acusador. Então, tal como o Matias, o rapaz repensou a sua posição: 

- Pensando bem, talvez seja melhor assumirmos a responsabilidade das asneiras que fazemos! Não está certo que outros sejam castigados por nossa causa! 

O silêncio continuava, mas, naquele momento, espantado com a mudança. Afinal havia luz naquele palácio! 

O professor respirou fundo e revisitou as palavras do nosso sábio épico, alinhadas em redondilha - afinal, para alguns, anda o mundo concertado.


 

67. Pontos cordiais

 

O rapaz interrompeu a palavra que alinhava com muitas outras na esperança de acompanhar o pensamento que ainda organizava. Depois, levantou a voz e o olhar para, delicadamente, colocar a dúvida:

- Aqueles pontos… norte, sul… este, oeste… como os designamos? Pontos cordiais, certo?

Deixei que o silêncio voltasse. Apenas o meu sorriso maravilhado chegou como resposta. E, por momentos, fiquei abraçado àquelas palavras pelo brilho inesperado que emanavam. 

 

O que sabia aquele rapaz sobre pontos cordiais? 

A pergunta, teimosa, caminhou depois na minha direção 

e obrigou-me a buscas pouco usuais.

 

E, enquanto os meus olhos vagueavam perdidos pela sala, soltei as amarras.

 

Tarefa árdua, pois precisava de encontrar 

aquela bravura que não me deixa perder 

nas estradas mais tumultuosas, 

que não me abandonava desorientado, desnorteado. 

Aquela bravura que me leva para o sul, 

caminho sempre incerto da descoberta. 

Aquela bravura que me agarra às estrelas 

quando o Sol se esconde e me rouba o horizonte.

 

Serão cordiais os pontos cardeais?

Para quando o desejado abraço entre o Norte e o Sul?

Para quando o reencontro,

há muito avistado da gávea do sonho,

entre o Ocidente e o Oriente?

 

Serão cordiais os pontos cardeais?

Se todos partem do centro que os une

porque mantêm a frieza da distância que os afasta?

 

Entretanto, um sussurro fez-me reparar que um dos colegas lhe segredava a resposta. Então o rapaz, divertido com o trocadilho, de imediato, voltou ao trabalho. Eu mantive o meu sorriso agradecido como resposta.


 

68. No reino das esperas

 

O pai ouviu o pedido, enquanto colocava na mesa a última colher junto ao prato da Teresa. Irradiava pela sala um aroma sorridente, onde a esperança conquistava sempre um novo alento.

- O jantar está pronto! – ouviu novamente.

E as palavras voltaram a percorrer o espaço à procura dos ouvintes derramados pelo sofá.

Pouco depois, retirou da torradeira o pão estaladiço, concordando com Cesário, pois também achava aquele cheiro salutar e honesto.

- O jantar está pronto! – exigiu a mãe, como quem faz um ultimato.

Mas o silêncio continuou sossegado.

- Podes ir chamá-los, por favor?!

O pai abandonou então os alexandrinos realistas e procurou os filhos que permaneciam tranquilos, como se não houvesse mais ninguém à sua volta, como se o mundo terminasse no limite do sofá e a partir dali fosse o infinito, mares secretamente navegados!

- O jantar está pronto! – repetiu.

- Há sopa? – reagiu a mais nova.

Ao aceno afirmativo opôs-se o exército desalinhado com dramáticas caretas. Era como se os mandassem para uma trincheira de colher na mão prontos para o combate que não queriam ter!

- Podem vir, por favor?

- Diz? – pediu a mais velha como se tivesse acabado de chegar, afastando ligeiramente um dos fones.

- Vamos para a mesa!

- Já vou! – prometeu a Clara.

- Vou já! – concordou a Teresa.

- É para já – garantiu o Mateus.

- Inês, podes dar o exemplo? – tentou o pai, vendo que nenhum fazia justiça às palavras.

- Já lá vou! – respondeu numa variante que garantia alguma esperança.

O pai ficou a olhá-los, espantado com a transgressão: o advérbio, habituado a uma séria disciplina temporal, tinha sido semanticamente despido. Estava lá, encostado ao verbo, mas nenhum deles se levantou imediatamente, no mesmo instante em que o proferiu! 

Era ali o Reino das Esperas, onde as palavras depunham o seu sentido. O tempo não avançava nesse lugar, onde também não entrava o aroma do pão quentinho e estaladiço! Era o reino do menino Eparajá e das meninas Javou, Voujá e Jalavou que tinham a graça de nunca ir na hora certa. Iam sempre depois, um tempo que o regrado compasso do relógio desconhecia, um tempo abusador das paciências maternais e paternais.

Como passar o profundo fosso daquele castelo? Como abrir a sua robusta porta para libertar aqueles cativos? Como resgatá-los do Reino das Esperas?

- Oh! Mãe! 

- Não faças isso! 

- Só faltam dez minutos!

- Mãe, não desligues, por favor! – suplicaram em coro.

Tarde demais. A televisão tinha sido silenciada e o acesso à Internet era agora uma frágil e intermitente luz verde. O cerco ao castelo do Reina das Esperas tinha bloqueado os bens de primeira necessidade, obrigando os seus habitantes a uma rendição forçada.

-Está bem, nós vamos! – concordou o Mateus, que se levantou para seguir as irmãs.

O pai avaliava aquela admirável estratégia de guerra e o seu rápido resultado.

- Ajudas a Teresa, por favor!

Claro que sim! E preparou-se então para a batalha seguinte, a sopa estava servida!

- Teresa, posso contar-te uma história?

Os olhos brilhantes foram resposta suficiente.

E a sopa sabia a sonho, a paisagens inesperadas. Era uma vez no Reino das Esperas… Era uma vez o reino do menino Eparajá e das meninas Javou, Voujá e Jalavou… A mãe deixou escapar um sorriso discreto. Aquele cerco ao castelo dos amuos também lhe pareceu eficaz.




 

69. Pai um pouquinho beterraba

 

Tinha chegado o momento! O rádio despertador marcava sete horas e cinquenta minutos. Estava na hora! Levantou então os olhos e enfrentou determinado o quarto de vestir que ainda permanecia na penumbra. Ligou todas as luzes e as cores despertaram, surgindo da sombra, alinhadas, dobradas, cintilantes.

Os cabides faziam já o habitual número matinal: agarrados ao varão principal, suportavam tempo sem fim o peso das camisas e das calças, uma espécie de halterofilia ao contrário, onde os alteres se divertiam, tentando chegar ao desejado chão. Pretendiam os cabides impressionar as vizinhas estantes. Coitados! Os mais velhos bem sabiam que elas eram inatingíveis, por mais belos e musculados que fossem os mais novos. Inevitável coita de amor! 

As altivas estantes passavam o tempo a fitar as tentadoras gavetas. Era aí que permaneciam os segredos que elas tanto queriam desvendar. Por onde teriam andado aquelas festivas gravatas carinhosamente enroladas e colocadas no seu almofadado quadrado de onde só saíam uma ou duas vezes na vida? E o laço!? Esse brioso e alado vizinho que percorria as festas e festins lá no alto onde tudo podia ver e ouvir! E os cintos numa espiral sempre prontos para o caloroso e demorado abraço! Mais furo, menos furo, sempre uma preocupação! 

Mas havia uma gaveta que permanecia um pouco aberta, era a mais próxima do chão. Não corria muito bem, talvez por ter envelhecido mais depressa, as articulações já não eram tão ágeis, encravava, fechava aos soluços, e era várias vezes empurrada com os pés! As estantes chegam a ter pena dela. Além disso, guardava as peças que eternamente esperavam conserto, por uma linha que lhes cosesse os orifícios do ofício. Eram meias de todas as cores e de todos os tamanhos. Meias sem par, que já não queriam nem podiam ser ímpares, uma tristeza! Dali, não havendo conserto, saíam para terras distantes que nem as curiosas estantes conheciam.

Pegou então nas calças que permaneciam no primeiro separador do cabide e, com a mão disponível, alcançou a primeira camisa que da cruzeta mais alta se mostrou disponível. Incorporou-as e tudo lhe pareceu bem! Por fim, encontrou na estante a camisola que naquele dia fazia todo o sentido: na véspera, a seleção tinha abandonado gloriosamente, como sempre, o campeonato europeu, uma tristeza que era preciso anular, envergando o alegre verde daquela camisola! Fazia sentido! Tudo combinava! Até lhe veio ao pensamento uma daquelas formosíssimas palavras que constantemente importamos: tudo fazia pendant! E repetiu divertido a palavra que lhe rebentou nos lábios: pendant!

Desceu as escadas como quem se dirige para o palco onde o expectante público o aguardava impaciente. Já na mesa, escolheu o café e mostrou alguma preocupação com a hora avançada. Por momentos, não percebeu que o silêncio geral era naquele momento uma arma apontada. Observou mais atentamente os filhos, procurando encontrar a razão daquela súbita quietude. E viu que em todos eles havia uma gargalhada presa no olhar, prestes a rebentar. A Teresa foi a primeira a dar forma ao seu espanto:

- Pai, pareces uma beterraba!

- Também acho! – concordou a Clara divertida!

Perturbado pela surpresa da comparação, ainda procurou o apoio da bela mulher que ao seu lado já o percorria de alto a baixo. Logo percebeu a gravidade da situação, era mesmo uma beterraba! Afinal, nada fazia o tal pendant! Parecia um daqueles quadros irremediavelmente mal recuperados!

- Não tens emenda! A Teresa tem razão! Verde-escuro, verde-seco e cor de vinho! Francamente!

Ele ainda pensou em contrariar, afirmando que era bordeaux, mas julgou melhor subir as escadas e encontrar as peças e as cores mais acertadas, mais amigáveis. Suspirou, enquanto heterónimas e certas palavras lhe assaltaram o pensamento. Afinal, pensar é não compreender…. Por momentos, até pensou que estava doente dos olhos, afinal era uma beterraba! As cores que na beterraba eram gala, nele eram aberração! Enfim, o melhor é estarmos de acordo!


 

70. As escadas do sono

 

            Todas as noites, antes de se recolherem para dormir, os pais do Mateus passavam nos quartos para verificarem o sono dos filhos, desligarem as luzes e os rádios. Uma espécie de revista amorosa antes do descanso sereno.

- Ele teima em cobrir-se completamente! – sussurrou o pai.

- Já sabes que é por causa das melgas – justificou a mãe que há muito sabia que o Mateus se defendia assim dos importunos insetos.

- Mas não temos melgas cá em casa! – protestou.

A mãe respondeu-lhe com um sorriso discreto, fitando-o de forma divertida.

- Melgas há muitas…!

O pai não lhe deu tempo de terminar a famosa tirada.

 

No dia seguinte, durante o pequeno-almoço, o pai observou pausadamente a crescente agitação dos filhos. As disputas ardentes sobre a posse do comando e sobre o programa a ver daí a momentos. Não se entendiam!

- Mãe, posso ver tablet?! – reclamou a Clara, prevendo a ineficácia dos seus argumentos.

- Não. Têm de ver o mesmo filme! Os três! – determinou a mãe, olhando duramente o pai, incentivando-o a intervir também. Mas a Clara não lhe deu tempo, intervindo com agilidade:

- Já sei, pai! É importante vermos o mesmo filme para depois falarmos sobre ele…

- Sim, muito mais saudável do que estar cada um no seu tablet a ver anúncios de chupetas disfarçados de Uma aventura secreta em casa do Neto! – dramatizou o pai de forma hilariante.

- Chupetas, pai! – resmungaram a Clara e a Teresa. – Está bem, nós escolhemos um filme.

 

- E eu? É a minha vez de escolher um filme! – insurgiu-se o Mateus, procurando o lado mais grave da voz que teimava ainda em fugir para o lado mais agudo.

- Mateus, fica mais um pouco – pediu o pai.

O filho fixava o pão, encontrando nele um confidente. O único elemento à face da terra que compreendia naquele momento a injustiça que o atacava constantemente. Ninguém o compreendia! Ninguém o deixava falar! Nunca podia escolher os filmes! Nunca podia escolher a ementa! E agora tinha de ficar ali a ouvir mais um sermão!

- Mateus…

- Sim, pai! Já te disse que elas já escolheram, agora é a minha vez! Não acreditas em mim!

- Não quero falar sobre essa questão. Ouve. Por que razão cobres a cabeça quando te deitas para dormir?

O rapaz ficou baralhado com a inesperada pergunta. Mudou de posição na cadeira para acomodar as melhores ideias e para que estas encontrassem a forma das palavras.

- Sabes que não há melgas no teu quarto…? – antecipou-se o pai.

- Eu sei! É por causa das escadas de madeira…

- As escadas que levam ao sótão?! Mas conheces muito bem o que há no sótão: um quarto cheio de luz, várias estantes com livros, uma secretária, uma cama… e trabalhos que vocês foram fazendo ao longo dos anos… parece um álbum de recordações!

O rapaz fixou novamente o pão. Não o comia porque precisava ainda de um amigo capaz de ouvir, apenas ouvir. Depois disse, num tom de voz incrivelmente grave:

- Isso que dizes acontece apenas durante o dia! À noite é muito diferente…

O pai guardou aquelas palavras, palavras enormes. Um murro na certeza daquele adulto que ficou sem argumentos. À noite subiam e desciam por aquelas escadas todos os sonhos acordados, todos os sonhos adormecidos, todas as memórias, os futuros todos, os passados todos…

- E se nós voltarmos a colocar uma luz de presença junto às escadas?  – propôs a mãe.

O rapaz comeu finalmente o último pedaço de pão, tendo sentido que alguém o compreendia. O pai ficou espantado com a eficácia da solução: a luz prolongava o dia nas escadas e iludia a imaginação. Inspirou fundo e acompanhou os passos do filho que se dirigia para a sala. Ouviu depois a normal discussão sobre a posse do comando e a normal discussão sobre a escolha do filme. Olhou com encanto a mulher e ambos perceberam que era durante o dia que tinham de cuidar das escadas do sonho daquelas criaturas. Tudo o que à noite subia e descia pelas escadas do sótão era preparado durante o dia. E eram eles os principais encenadores. Todas as personagens que à noite ganhavam forma nas escadas do sótão tinham também a sua marca. Importava é que fossem figuras felizes e que não fizessem ruído ao passar.


 

71. O segredo das árvores

 

Da minha janela, observei-as demoradamente. 

Incomodava-me aquela inclinação ordenada, como se todas quisessem levantar raízes e procurar outras paragens. As copas semidespidas tinham oferecido ao vento do mar as folhas que seguiam pelo caminho do sonho, rompendo as fronteiras daquela praça cercada por edifícios quietos. Estes pertenciam à classe daqueles que hibernavam longamente para despertarem nos dias quentes e longos. Nesse tempo, subiam as pálpebras brancas e os retornados carros escondiam-se discretamente nas caves.

Observei-as demoradamente. 

Algumas tocavam-se suavemente, cruzando os ramos, acariciavam-se as folhas, contando segredos escondidos no rumor, no sussurro de cada movimento. Nunca conheci as raízes, apenas a sua estatura. As raízes seriam fundas se lá no fundo houvesse o que procurar. Outras permaneceriam à superfície, beijadas pelo orvalho, agarradas à terra que as adotara.

Eram três os canteiros, todos retângulos, dois deles siameses. As árvores eram seis, alinhadas em dois tercetos, encostados ao limite mais soalheiro. A erva que os atapetava estava seca, palha desolada. Aqui e ali, alguns tufos resistentes ainda verdes.

A manhã tinha despertado havia pouco. Ondas de orvalho dançavam divertidas ao ritmo da brisa fresca e o Sol aguardava uma abertura para abraçar as árvores.

Foram chegando, vários no tamanho, na cor, na raça, presos ao fio condutor ou livres da trela que ali os conduziu. Brincavam, sorridentes latidos, dentadas inocentes, esgaravatavam, perseguiam pequenas bolas irrequietas. Os cães.

- Olha, está a fazer o número um! – espantou-se a Clara.

- Aquele está a fazer o número dois! – apontou a Teresa.

E os donos transeuntes, agora estacionados à volta do retângulo maior, observavam atentamente as suas criaturas. Avaliavam gravemente cada movimento e partilhavam sabiamente sérias informações.

Observei-os demoradamente. 

Alguns eram ainda jovens, aos pares, agarrados, desgarrados. Numa das mãos a trela, na outra o telemóvel que registava os melhores momentos daquele retiro matinal. Outros, solitários, sossegavam os pensamentos, inspirando o fumo de um cigarro, enquanto davam suaves pontapés nas pedras da calçada, nunca perdendo de vista o seu protegido, por momentos, livre naquele retângulo seco.

Observei-os demoradamente. 

Alguns minutos depois regressaram ao prédio que os viu sair, aliviadas e satisfeitas todas as criaturas.

Mas as árvores mantiveram o sussurro. Nem o canto dos pássaros viajantes, portadores de histórias incontáveis, animavam a sua verticalidade. Continuavam à procura. Continuavam à espera.

- O que estás a ver, pai?

- Nada de especial…

- Olha, podíamos fazer um campo de futebol naquele espaço – sugeriu o Mateus, apontando o retângulo maior.

- Podes ir para lá jogar, se quiseres…

- Achas!? Já viste alguém da minha idade neste jardim?

Olhei-o demoradamente e fui percebendo o sussurro magoado e preocupado das árvores que ofereciam ao vento do mar as folhas que seguiam pelo caminho do sonho, rompendo as fronteiras daquela praça cercada por edifícios quietos e cada vez mais velhos.


 

72. A tarde clara e solidária!

 

O Sol tocava as folhas dos liquidâmbares ainda verdes que brilhavam agradecidas junto ao portão. Ao lado começava o estradão ladeado por muros seculares, feitos de pedra tosca agora aveludada pelo musgo. Aí se escondiam o som dos passos e as palavras ditas pelos passantes, os que iam cantantes e vigorosos, os que vinham cantantes e cansados. Alguns metros mais à frente, logo após uma curva acentuada, o caminho findava para dar lugar ao campo largo e comprido. 

Era aí que esperavam as canas de milho. A bandeira que hastearam durante meses tinha sido cortada e agora permaneciam alinhadas qual coro que aguarda o gesto melódico do maestro. Segredavam sobre as espigas que irrompiam triunfantes da palha que as envolvia, sobre os pássaros que as visitavam e a quem ofereciam alguns grãos em troca das histórias que traziam de muito longe. Sobre os gatos que esperavam horas junto das raízes, para, repentinamente, se lançaram num ziguezague impossível, alcançando pouco depois a presa que tinham estudado silenciosamente. Também se queixavam das inquietas toupeiras que lhes perturbavam as raízes, deixando-as indefesas perante as investidas dos ventos mais fortes.

Quando chegou à curva do estradão, já várias pessoas percorriam os carreiros de milho. Em cada espiga uma paragem e os mesmos movimentos repentinos e sincronizados. Juntou-se ao grupo depois de escolher um cesto para a recolha das espigas. Foi acolhido afavelmente pelo olhar aprovador e satisfeito que todos lhe foram oferecendo. Mas nunca as mãos pararam, nem quando as perguntas esperavam as desejadas respostas. Falava-se da terra, da terra que sustenta, da terra que envelhece, da terra que lamenta, da terra que vence, da terra que rejuvenesce… Mas nunca as mãos pararam e os cestos repletos avançavam para os sacos alinhados junto ao limite dos carreiros. Cada um no seu carreiro. Cada um à vez no seu carreiro sempre que alguém se atrasava.

Procurou o Mateus. Chamou-o. Reparou pouco depois que colhia espigas num lugar mais afastado.

- Tão longe, filho! – reagiu. – Não queres trabalhar junto de nós?!

- Deixa-o estar – pediu a mãe.

O Mateus dava os primeiros passos naquele baile manuscrito entre as canas de milho. Por isso, preferia os lugares mais recolhidos como qualquer debutante menos ousado.

- Mãe, estou cansado! – queixou-se depois de se ter aproximado. – Posso ir para casa?

- Não! Tu consegues! Só vamos para casa quando acabarmos!

- Mas eu estou cansado!

- Não podes desistir, apanhas as que puderes! Verás que no final ficarás muito mais feliz com a tua vitória! – exclamou o pai para o animar.

- Este é o milho que damos aos nossos animais! É com este milho que faço a broa de que tanto gostas! – afirmou convictamente o avô.

O rapaz voltou então ao carreiro e aguentou até ao fim.

O campo ficou com uma aparência despenteada, parecia o fim de uma festa, no cimo das canas, a palha desalinhada, mantendo ainda a forma de cada espiga arrancada. A poucos metros do campo longo e comprido, num espigueiro altaneiro, foram recolhidas as espigas. Agora, era a vez do vento e do Sol.

Entretanto, o Mateus já tinha percorrido o estradão ladeado pelos seculares muros de pedra a quem contou os segredos que ouvira ou imaginara entre os carreiros de milho. Ao passar por aí pouco depois, também o pai reparou que alguns pássaros aproveitavam ainda os últimos raios de Sol e cantavam alegremente. Talvez falassem dos filhos que cresciam, dos filhos que arriscavam a dureza dos primeiros voos. Dos filhos que depois de se lançarem não podiam deixar de bater as asas até regressarem ou até encontrarem um ramo seguro.

- Em que pensas, pai? – perguntou a Inês que vinha um pouco mais atrás.

- Nada de especial, estou feliz por todos termos colaborado! 

A tarde tinha sido clara e solidária.


 

73. Vírgula, mas chegas tarde!

 

- Pai, por favor! Eu preciso de tempo! Devagar se vai ao longe… não é o que costumas dizer?!

           

        - Vírgula, mas chegas tarde!

            Há muito que o pai conservava esta exclamação em ponto de disparo. Crescera com ela acomodada na zona mais acessível da memória, sempre pronta como qualquer carimbo quadrado e precipitado.

            - Vírgula, mas chegas tarde! – repetiu, perante o espanto do filho.

            O rapaz conviveu com as palavras alguns segundos, enquanto lançava no quadriculado mais uma das incógnitas reduzida a xis. 

            - Espero que não me voltes a contar a história da lebre e da tartaruga… - gracejou.

            - Nem todas as lebres adormecem na viagem! – reagiu o adulto prontamente.

            O rapaz introverteu-se e alinhou mais alguns números, perseguindo rigorosamente o resultado final, e não respondeu ao pai que, segundos depois, desmantelou a sapiente muralha e afastou-se. Pensou depois que nunca lhe tinham dito que participava numa corrida, muito menos que havia tempo limite para percorrer as palavras e os números arrumados em jeito de sabedoria encadernada.

            Na sala ao lado, o pai também não se sentiu descansado com as palavras que deixara nas mãos do filho. Pareciam-lhe, assim atiradas, conchas impuras um punhal, um incêndio… Sentia que o instantâneo também o dominara. Essa força indomável de uma linha de montagem imparável, implacável. Parou algum tempo junto às fotografias que presenteavam momentos felizes e regressou ao espaço do filho.

 

            - Então, pai?! Não ouviste nada do que te disse, certo?

            O Mateus sabia que não. O pai estava ainda preso ao lugar que os olhos já não alcançavam. Ou talvez não. Os olhos abertos podem ver por fora, mas também podem ver por dentro. Quando se fixam e se tornam ausentes, entram em modo memória, onde regressam às formas e às cores que o tempo quis conservar, raízes de um presente que não se veem, que o alimentam e lhe dão forma.

            - Estava a dizer-te que não consigo fazer estes exercícios todos… tu começaste uma fase, mas não acabaste… ficaste aí a pensar…

            O pai sorriu com a insistência do filho, principiante adolescente, que o fazia regressar da memória em que também ele fora tartaruga, atleta aprendiz do saber.

            - Estava aqui a pensar que com a tua idade ouvi muitas vezes dizer que devagar se vai ao longe, mas que podemos chegar tarde…

            O Mateus ouviu com curiosidade tal conclusão adversativa e esperou pelo necessário desenvolvimento.

            - Eu ouvi o teu protesto – continuou. – Percebi muito bem. Em tempos também o meu pai temia que eu chegasse tarde, se não corresse como a lebre. Contudo, um dia acabou por me dizer que, na história da lebre e da tartaruga, a prova não era individual, era antes uma corrida por estafetas. Cada atleta tinha de entregar o testemunho ao seguinte… na verdade, a corrida não terminou com a chegada da tartaruga à meta. Esta entregou e recebeu várias vezes o testemunho tal como a lebre. Importante foi não parar, importante foi a entrega, essa dádiva plena de luz! Todos fazemos o percurso.

            O Mateus guardou aquelas palavras na vertente mais acessível da memória, agora sempre prontas como um abraço reconfortante. Levava o testemunho e não seguia sozinho, por isso, não chegava tarde.

           


 

74. A profundidade das árvores

 

Por momentos, o silêncio ganhou espaço no carro. O pai fixava as paralelas brancas que acomodavam a viatura e lhe ditavam os limites. Tinha mergulhado numa espécie de futuro que por momentos nos visita sem nunca se deixar agarrar.  Imaginava já as agendadas tarefas que se acotovelavam para aparecer. O Mateus seguia ao lado, calado e concentrado no exterior recortado pela janela. 

- Pai, olha ali! – pediu o rapaz. 

Não precisava de apontar. O pai sabia muito bem o motivo do espanto.

- Muito corajoso, Mateus. Com esta chuva, logo pela manhã… registo com espanto o sacrifício daquele homem!

- Oh! – reagiu o Mateus, acompanhando a interjeição protestante com um acentuado encolher de ombros. Ainda se voltou para trás de forma a ver mais uns segundos aquele quando matinal.

O silêncio voltou. As árvores despediam-se das últimas folhas que apanhavam o sopro do vento agitado e, baloiçando, chegavam suavemente ao chão. E os ramos lá ficavam orgulhosamente erguidos. A perda não os inclinava. Aguardavam sabiamente pela energia que vinha de dentro. Em breve, brotariam novas dádivas inspiradas pelo Sol.

- Pai, olha!

Desta vez, tocou-lhe no braço para que visse com atenção. O rapaz apontava para o canteiro cuidado que verdejava à frente da porta principal de um hotel.

- Pai, olha! – insistiu.

- Vejo uma senhora que, pela forma como caminha apoiada à bengala, me parece bastante idosa …

- Pai!... – e novamente aquele clique aborrecido.

- Acho até perigoso, os passeios estão muito escorregadios – completou.

O rapaz calou-se e não mais desviou o olhar da janela.

O pai queria contar-lhe uma história, mas não era ainda o tempo. Queria que ele percebesse o mistério das árvores que sempre sabem onde agarrar as raízes. Que a altura sempre lhes exigiu profundidade! E era admirável a forma como procuravam o Sol! 

Como poderia dizer tais coisas ao filho? 

O rapaz não tinha observado o homem que passeava um cão, não dera atenção à velhinha que custosamente também acompanhava um cão no passeio matinal… Interessava saber onde se agarravam aquelas ainda frágeis raízes e para onde se orientavam os ramos que imparáveis despontavam. 

O carro seguia ainda entre as paralelas brancas, aqui e ali, tracejadas, para permitir a mudança de direção. Em breve, apareceria o edifício escolar. O pai continuava a pensar nos quadros propostos pelo filho e lembrou-se daquele jardim que visitara no Buçaco onde tinha visto uma minhoca que procurava atravessar o carreiro de brita e terra seca entre os buxos. Debalde. À sua volta, juntaram-se alguns transeuntes que lamentavam a qualidade do piso. Um deles pegou carinhosamente no invertebrado e colocou-o sobre a relva macia. Algum problema? Nenhum… Mas não guardaria este episódio, se não tivesse visto a poucos metros uma criança que esticava a mão a quem passava. Quando lhe perguntou se estava sozinha, porque andava a pedir, fugiu assustada… Também ela atravessava um caminho rugoso... Revisitou ainda as palavras daquele rapaz que, a meio de uma conversa, o tinha confrontado com uma certeza em forma de pergunta retórica: …e a minha vida vale mais do que a de um animal? Nesse momento, olhara-o fixamente e respondera-lhe que não tinha dúvidas, em caso de escolha obrigatória… 

Fixou novamente as árvores. Admirou mais uma vez a sua altura e a sua profundidade escondida.

- Pai, porque insistes em mostrar-me as pessoas quando eu te quero mostrar um animal? – perguntou o Mateus, ao abrir a porta do carro, pronto para sair.

- Tens o dia todo para pensar nisso. Mais logo voltamos a conversar. Fica bem!


 

75. Dores de crescimento

 

O rapaz estava ensimesmado no sofá, esquecido das pernas e dos braços que mantinha em posições acrobáticas. Conservava na cabeça o capuz para criar uma fronteira com o mundo que todos os dias descobria qual alpinista destemido. Aterrara havia pouco tempo, vindo do reino onde sempre vivera, um círculo perfeito, luminoso, uma brancura ingénua e feliz. Agora percorria as ruas de um outro cheio de cores e brilhos confusos, onde o branco parecia branco. Um labirinto onde, por vezes, já não era uma vez. Sem volver os olhos, perguntou:

- Pai, ouvi dizer que és um romântico, é verdade?

O adulto olhou-o fixamente por momentos, em silêncio. Percebeu que não ia encontrar os olhos do filho que acompanhava com algum interesse o decorrer de uma série policial. Às vezes, encontramos nos olhos o caminho da resposta que as palavras em ponto de interrogação não sabem antecipar. Arriscou então uma graça:

- Não me digas que estás apaixonado?

O rapaz reagiu com espanto à inesperada pergunta.

- Pai, não fujas à pergunta. Alguém me disse que és um romântico. Só tens de me dizer se é verdade?

Verdade? Antes da resposta irromper agarrada às palavras, o adjetivo obrigou-o a considerações que deixaram o rapaz impaciente.

- Sim ou não?! - forçou.

Silêncio. Podia googlar, mas a resposta seria despojada, desenraizada, sem passado, sem compasso.… Por isso, foi aguardando, ora fixando o pai, ora acompanhando o estado da narrativa policial.

- Significa estar apaixonado? Pelo menos era isso o que me dizias há pouco… - tentou.

O pai fixou-o novamente, deixando-o perceber a sua concordância. Mas o silêncio que de novo se seguiu obrigou-o a mais uma aborrecida espera. O que dizer sobre o amor àquele aprendiz? Essa inquietude extrovertida, em tudo sempre tão contrária a si?

- Então?!

- Essa palavra desmedida não cabe na nossa vida, filho! Não basta dizer sim ou não. Há um passado que importa revisitar… para entender a sua força, o seu poder arrebatador!

- Pai, por favor, não podes simplificar as coisas? – protestou.

Não podia... o romântico emergia, imagem há muito guardava, retirando decididamente o capacete que lhe reprimia os cabelos que naquele momento libertava, revelando a sua forma, cor e beleza. De imediato, reviu a liberdade e a tricolor agregando multidões e o povo e os povos. Num ápice, eis os românticos que levantaram os heróis medievos, recuperando as suas façanhas, génese de fronteiras e nações; eis os românticos que celebraram os homens que renasceram para as façanhas no mar e os homens que as cantaram em verso e no palco! Os românticos que perseguem um sonho, vivem intensamente as paixões que os definem e alcançam a beleza que começa para lá daquilo que nos enleia e essa coisa é que é linda. Os românticos que procuram reconstruir essa terra onde era uma vez!

 

- Pai, queres ver o filme?! - convidou, desviando.

- Mas ainda não respondeste à minha pergunta... - disse, sorrindo.

Era Natal, começava Sozinho em Casa que sempre arrancava gargalhadas contagiantes. Mais tarde voltariam às dores de crescimento.


 

76. Dispositivos no caminho

 

- Bom dia!

O rapaz entrou na sala com a lentidão de quem tem de apanhar o autocarro que nos leva de volta no fim das férias que nunca queremos terminar. Colocou a mochila em cima da mesa e sentou-se. O professor observou discretamente estes movimentos e reparou que os olhos dele ainda não tinham chegado. Percorriam ainda as felizes paisagens interiores que se deixavam vislumbrar na curva que no rosto o sorriso desenhava.

- Bom dia!

Desta vez, os olhos do moço procuraram lentamente a voz que o saudava, igualando a maçada de quem encontra um revisor, imóvel, ao alto, braço estendido. 

- Podes colocar o teu telemóvel no cesto, por favor?

Despertou.

- Sim, claro, desculpe!

O professor continuou serenamente a recolha, parando em cada lugar, aguardando o modo sem som, só depois avançando. Sentia a responsabilidade das vidas assim recolhidas, abafadas, estagnadas, algumas em modo de avião. Sentia ainda os tremores, as vibrações protestantes. 

- Obrigado!  - agradeceu, ao voltar para junto da secretária. - Peço agora a vossa atenção para o trabalho que vou apresentar. 

O rapaz continuava ausente.  Olhava fixamente o quadro branco e tamborilava suavemente na mesa. Uma felicidade que só ele ouvia e que lhe escapava pelos dedos inquietos.

- Também posso ouvir? - murmurou depois de se aproximar o mais possível do rapaz.

- Esqueci-me, peço desculpa, aqui tem – justificou, enquanto entregava os fones sem fios que mantinha discretamente nos ouvidos.

Os trabalhos avançaram. Era necessário recolher as palavras que se organizavam no texto proposto, reconstruir o seu sentido, percorrer a beleza da sua forma. Nada substitui esta viagem ao interior das palavras tecidas! Que paisagem conheces tu, se te limitas a ver o que outros viram por ti? Agarra cada página como um peregrino que percorre os caminhos até à luz! Não leias sobre o caminho, faz o caminho! Então será teu o perfume das palavras, o canto das aves que te guiam nas veredas, o sabor dos frutos que as árvores te oferecem, o calor de cada parágrafo, cada passo que te leva!

- Notificações?! – censurou.

Desta vez o rapaz sentiu-se seriamente despido, desprotegido. Retirou e guardou o relógio smart que deixou de lhe medir os batimentos e de atender aos seus insatisfeitos desejos. 

Avançaram os trabalhos.

- Professor, posso usar o meu caderno inteligente para registar as respostas? - atreveu-se o rapaz, enquanto retirava da mochila um tablet.

- …

Importava fazer o trabalho, que o peregrino fizesse o caminho. Cada um leva os sapatos que lhe servem, que o servem, mas urge fazer a travessia, passo a passo, sílaba a sílaba, página a página, até que, ao longe, se ergue a torre da conquista! A caminhada deixa no corpo as marcas do caminho, sinais que brilham nas outras cruzadas.

- Professor, eu precisava de pesquisar informação. Posso usar o meu telemóvel? - pediu outro rapaz sentado na última fila.

Não teve tempo.

- Posso emprestar-te o meu PC. Tenho-o aqui na mochila... - ofereceu-se o da frente.

Gargalhada geral.

Não deixes de fazer o caminho, peregrino. As palavras que te esperam desenham a senda que só tu podes percorrer. Não as adies assim encerradas e transferidas. Leva-as em cada dispositivo, mas atreve-te a conhecê-las, passo a passo, como quem mata a sede na fonte que o caminho lhe oferece.




 

77. Abóbada

 

Estavam todos na parada. Quase prontos, quase sempre prontos. A formatura ali exposta pouco ou nada dizia da sua descompostura interior, do desalinho mais ou menos visível. Impossível gostar deste texto! Quem se lembrou de nos pôr a ler uma coisa destas!? Não sei como consegue, repara naquele entusiasmo! 

Seguiam-se os últimos capítulos da obra que juntos percorreríamos como o mapa de um terreno que importava conhecer muito bem. E eu estava deveras entusiasmado. Mãos nas palavras! Sentido! Ler as palavras! Sentido! Depois era necessário o grito interior, individual e mudo, o pasmo de quem descobre paisagens inóspitas, inesperadas, desafiantes.

“Um rei cavaleiro”… “O voto fatal”… 

Mas a resistência permanecia visível na mão que apoiava o rosto, nos olhos introvertidos e tristes.  Algumas palavras pareciam rochedos intransponíveis! E eram tantos que a viagem se tornava aborrecida e demorada. O horizonte teimava em não aparecer. Nada pior do que a viagem que não permite o horizonte. Apetecia-me dizer-lhes ad augusta per angusta! Mas seria ainda pior.

Mestre Afonso mandou tirar os simples… a abóbada não caiu. 

Eis as pedras do nosso passado que nos obrigam a levantar a cabeça para as podermos ver, admiravelmente suspensas, cantaria lavrada, impressões digitais da nossa identidade, relatos de um passado que nos pertence, ousadia que importa abraçar e alcançar!

A narrativa chegara ao fim. Olhei-os novamente, enquanto as palavras continuavam o seu caminho, revisitando com Herculano cada forma daquela épica construção. E, nesse momento, percebi que cada um daqueles aprendizes era uma abóbada suspensa, aguardando ainda a pedra de fecho. Trabalho sensível em torno de cada nervura que os sustentava. Por enquanto, elevavam-se apoiados. E eu sentia-me um dos simples, acalentando cada sonho cinzelado. Sabia da importância de cada pedra escolhida, de cada leitura, de cada sorriso, de cada abraço, de cada incentivo, de cada equação… Mas importavam agora as pedras de fecho! Que valor suportaria cada pessoa que ali se levantava?

- Fazemos agora os exercícios? -perguntou um deles.

- Sim. 

Esta é a melhor tropa chinela! Sei que pela vida fora um grito sempre os reunirá, sempre os levantará, “A abóbada não caiu… a abóbada não cairá!”. Uma abóbada chinela devidamente fechada pela amizade.


 

78. Leonor, Leonoreta, 

já não vais descalça nem de lambreta!

 

As palavras vaguearam pela sala, borboletas sensíveis em busca das flores dispostas e entusiasmadas com o Sol. Tinha chegado o momento. Finalmente, Leonor passava descalça para a fonte. Sustentava na cabeça o pote, na mão direita levava o testo. Passava formosa, discretamente envergonhada, secretamente ousada. Passava, ia para a fonte. 

Observei-os demoradamente junto àquele caminho verdejante, onde as palavras sussurravam nas suas conchas puras e era preciso encostá-las ao ouvido para escutar o seu eco distante. Traziam ainda as conversas na fonte, as promessas de amor, as saudades do amigo ausente. 

E Leonor passava, ia buscar água. Mas ninguém parecia reparar nos pés descalços, endurecidos, seguros em cada passada.  Ninguém fitava o pote vazio, ninguém apontava o duro esforço - chegar à fonte, encher o vaso, levar água para casa!

E lá ia Leonor. Trazia a saia de cote, a saia de todos os dias, sempre branca, sempre pura. A outra, se a tivesse, aguardaria pelos dias de festa na ermida, no adro, no largo, debaixo das avelaneiras floridas. As tranças d’ouro dançavam, fugindo da touca que as agarrava. Ia linda, linda! Tão graciosa era a espantosa formosura!

Olhei-os novamente. Também formosos, inseguros todos, não iam descalços, não levavam o pote, nem levavam o testo. Que graça lhes daria graça à formosura? Em que fonte matariam a sede? Que segredos lhes confiaria Amor no canto sereno daquelas águas? 

Leonor? Leonoreta?

Descalça? De lambreta?

Leonor, Leonoreta, 

já não vais descalça nem de lambreta!

As palavras vaguearam pela sala, borboletas sensíveis em busca das flores dispostas e entusiasmadas com o Sol.




 

79. Música para os nossos ouvidos!

 

- Há um concerto no Centro Cultural no próximo sábado. Podemos fazer a reserva dos bilhetes neste site. 

O silêncio do ouvinte provocou outra tentativa. 

- Música de câmara por solistas da Casa da Música… flauta, clarinete, trompa, fagote… Meninas, também querem ir?

- Se vocês forem, com quem é que nós ficamos? É à noite? – inquietou-se a Clara.

- Vamos todos - arriscou a mãe sem hesitar.

O pai ia reagir, mas não teve tempo. A mãe entregou-lhe o telemóvel para fazer a reserva - há sorrisos irremediáveis.  Iam ao concerto! A Teresa e a Clara abriram os olhos de espanto. Alguém queria protestar? 

Era a última noite de abril. Chegava depois de um dia quente, brilhante. O jardim, exuberante, deslumbrava os sentidos! A comunhão das cores, as formas limpas e perfeitas, os perfumes intensos e puros, lugar onde os sons desalinhados encontravam o compasso certo, a sinfonia sempre desarmante, debutante.

O auditório mostrou-se acolhedor. E o silêncio era confortável, uma clareira onde as melodias esperadas teriam feliz livre-trânsito. A Clara procurou o melhor lugar ao lado dos avós. A Teresa encostou a cabeça ao ombro da mãe. Tudo seguro. 

Apagaram-se as luzes. A sala era agora a câmara onde todos, felizmente, podiam entrar.

Nem uma palavra, silêncio, música! E o palco conquistou o espaço e a poesia aconteceu, agarrada aos sons que os instrumentos sabiamente articulavam. 

A Teresa escutava maravilhada. Fazia aquela expressão com os olhos quando, muito abertos, ousam querer ouvir mais do que os ouvidos. E tiveram livre-trânsito aquelas melodias. Vinham de longe, diálogos que no palco se cruzavam para depois percorrer toda a câmara. Quatro vozes que contavam histórias, todas tecidas pelo sopro e pelos dedos, fios que ondeavam e se enlaçavam para dar corpo à maravilhosa peça que em todos se completava. E a Clara acompanhava, envolta numa expressão séria, talvez intrigada com a vertiginosa agilidade dos músicos.

- Gostaste, pai? – perguntou a Clara já de regresso a casa.

Sim! Sabia que a música, tal como a poesia, não se agarra apenas às biografias nem se reduz ao olhar dos outros. Era também um percurso pessoal, uma descoberta. E estava certo de que através dela chegava mais perto da beleza, do absoluto que sempre buscava. Naquela noite, a humanidade tinha mostrado mais um pedacinho da sua luz, da sua grandeza. 

- Foi música para os nossos ouvidos!


 

80. Uma formiga nunca vem só

 

O Mateus desceu as escadas para anunciar com moderada preocupação:

- Andam formigas lá em cima!

Deixou a informação e dirigiu-se para a cozinha, sem dar tempo às perguntas. Ao responder-lhes ficaria implicado na solução, por isso, decidiu abandonar a sala.

 

O pai levantou-se então e dirigiu-se ao local para observar a gravidade da situação.

Rapidamente encontrou e reconheceu o pelotão organizado e determinado que atravessava o corredor junto ao quarto do filho. Ao comando seguia a formiga Musculosa:

 

É sempre com atenção

Que saímos à procura

Da nossa alimentação,

Sempre de forma segura.

 

No carreiro, nos mantemos,

Temos sempre onde ir;

É segredo que nós temos,

Ninguém pode descobrir.

 

Cada verso era um grito de união marcado pelo ritmo acertado da marcha. E o pai já os conhecia de outras visitas que a Musculosa tinha conduzido ao interior da casa. Curioso, seguiu a fila para descobrir o objetivo daquela incursão. Um pouco mais à frente, a Musculosa deu ordem para parar junto a uma folha caída, amarrotada, esquecida ao lado da secretária.

- Cercar!

E todas se alinharam à volta do objeto branco e liso, enquanto duas operárias o analisavam com as inquietas antenas. Ao sinal afirmativo, a Musculosa avançou com a ordem esperada:

- Levantar! Rodar! Marchar!

E de novo o ritmo cantado uniu as formigas em direção ao formigueiro.

 

É sempre com atenção

Que saímos à procura

Da nossa alimentação,

Sempre de forma segura.

 

No carreiro, nos mantemos,

Temos sempre onde ir;

É segredo que nós temos,

Ninguém pode descobrir.

 

O pai não conseguia encontrar o motivo daquela escolha. Por momentos, divertiu-se com a ideia de ter um pacífico exército ao serviço da limpeza geral. Depois ficou novamente intrigado e observou a folha que as formigas orgulhosamente transportavam. Haveria ali vestígios de açúcar, uma doçura invisível aos olhos incapazes? Reparou melhor. Apenas algumas palavras bruscamente interrompidas pelas dobras descuidadas, serrana bela… na esperança de um só dia… para tão longo amor… E sorriu, deliciado com a ideia que naquele momento lhe ocorreu. 

Antecipando o enorme problema que a Musculosa não conseguiria resolver, sem partir em pedaços aquele tesouro branco, abriu a porta que dava acesso ao exterior da casa e acompanhou de perto o seu regresso ao formigueiro. A Musculosa estranhou aquela facilidade, mas não perdeu tempo, sempre era melhor assim. Seria um enorme quebra-cabeças voltar a unir corretamente todos os pedaços daquela folha preciosa.

O pai observou-as ainda durante algum tempo, tentado também a marchar ao compasso das palavras.

- Então, pai? Já as encontraste?

- Sim. Penso que está resolvido – respondeu. - Vi ali no chão, junto à tua secretária, uma folha amarrotada…

O Mateus estranhou aquela afirmação, mas acabou por confirmar:

- Sim, ontem deitei ao lixo uma folha com poemas…

- Era só para confirmar… sorte a das formigas…

O Mateus não percebeu por que razão as formigas tiveram sorte. 

Novamente, o pai sorriu, imaginando que as cigarras teriam em breve companhia, palavras e música unidas num só momento! Lembrou-se de mais palavras visíveis nas ondas da folha, assi são os olhos do meu coração.  Naquela noite, a formiga-rainha seria agraciada com as mais nobres palavras!

- Havia, com certeza, alguma coisa doce naquela folha!

- Acho que não, pai, não costumo comer no quarto.

Era preciso percorrer a folha, sondando cada milímetro, cada sílaba, cada verso, para encontrar o mais ínfimo grão de açúcar, o contentamento que nos anima e mantém no carreiro.

Ao longe ainda se ouviam as formigas, quase, quase, a entrar no formigueiro. A Musculosa ainda olhou para trás, parecia sorrir e agradecer aquele achado.

É sempre com atenção

Que saímos à procura

Da nossa alimentação,

Sempre de forma segura.

 

No carreiro, nos mantemos,

Temos sempre onde ir;

É segredo que nós temos,

Ninguém pode descobrir.


 

81. A formiga quase retida

 

A Musculosa orientava as buscas naquela manhã brilhante e fresca. Seguia as indicações partilhadas pelas batedoras e avançava com determinação.

 

Um  dois um dois 

Nós marchamos todas juntas

Um  dois um dois 

À procura de sustento

Um  dois um dois 

Ninguém fica para trás 

Um  dois um dois 

Ninguém fica sem alento

Um  dois um dois 

 

- Alto! 

A ordem da Musculosa percorreu o pelotão que prontamente obedeceu.

 

Um  dois um dois 

O perfume que me encanta

Um  dois um dois 

Vem por certo desta flor

Um  dois um dois 

Vou subir por este caule

Um  dois

 

- Alto! – gritou novamente a Musculosa, não conseguindo parar a formiga aprendiz que naquele momento já se desviara do carreiro. O pelotão atónito segui-a com o olhar.

 

Um  dois um dois 

Ai que folha tão macia

Um  dois um dois 

Ai que cor tão refrescante 

Um  dois um dois 

- Formiga aprendiz, desce imediatamente! Temos de marchar todas juntas. Aí não encontras alimento.

 

Um  dois um dois 

Finalmente cá no alto

Um  dois um dois 

O perfume aveludado

Um  dois um dois 

É no chão que caminhamos 

Um  dois um dois 

Mas no alto é que alcançamos

Um  dois um dois 

 

A Musculosa estava já no limite da paciência. 

- Formiga aprendiz, volta para o teu lugar. Se não desceres, ficas aí até ao nosso regresso, retida e só. Se não aprenderes a marchar, ficarás retida no formigueiro e nunca serás a obreira que sempre sonhaste.

A formiga aprendiz sentia o calor do Sol, enquanto percorria as pétalas inebriantes. Do lugar onde estava o horizonte era inefável!

A Musculosa não esperou mais. Deu ordem de marcha, não resistindo a comentar com as aprendizes mais próximas:

- O que prenderá aquela formiga no mais alto daquela flor?

Nenhuma lhe respondeu. Todas queriam marchar. Todas queriam encontrar a sua migalha.

Mas a Musculosa não se sentia segura. A companheira retida nas pétalas de uma flor não podia ficar para trás.

- Alto! – ordenou novamente, voltando ao compasso marcial.

Um  dois um dois 

Nós marchamos todas juntas

Um  dois um dois 

À procura de sustento

Um  dois um dois 

Ninguém fica para trás 

Um  dois um dois 

Ninguém fica sem alento

Um  dois um dois 

 

As aprendizes ficaram ainda mais desorientadas, quando perceberam que a Musculosa se dirigia a um dos caules mais próximos, ordenando que todas fizessem o mesmo. 

 

Um  dois um dois 

O mais alto destas flores

Um  dois um dois 

Todas vamos conquistar

Um  dois um dois 

Alterar a nossa marcha

Um  dois um dois 

Também nos faz avançar

Um  dois um dois 

 

Ao sinal da Musculosa, todas iniciaram a subida. Deixaram o chão, o carreiro que sempre percorreram, agarradas às rugas de cada pedra, ao vocabulário necessário em cada rota, certificadas pelo esforço dedicado a cada caminho sempre horizontal, confiantes no horizonte apertado e sempre perto.

Subiram.

Subiram ainda mais.

Dançaram ao ritmo da brisa fresca.

Inspiraram o perfume segredado em cada pétala.

Tocaram as cores e as formas que ao longe lhes pareciam pouco nítidas.

Naquela altura, o sonho tinha mais espaço, mais distância, mais esperança.

- Daqui vemos mais longe! – entusiasmou-se a Musculosa.

- Reparem – apontou uma das aprendizes. 

Eram apetitosas maçãs que dali facilmente se avistavam.

 - Daqui vemos mais longe! - gritaram todas.

 

Um  dois um dois 

Nós marchamos todas juntas

Um  dois um dois 

À procura de sustento

Um  dois um dois 

Ninguém fica para trás 

Um  dois um dois 

Ninguém fica sem alento

 


 

82. Antonomásia!



Antonomásia, não faças isso!

A Sinédoque estava escandalizada com o comportamento da irmã mais nova. Chamou a Metonímia que estava escondida no fundo da página onde os dedos se juntam para virá-la:

- Vem comigo, a Antonomásia está descontrolada, tem o campo semântico muito próximo do mais baixo nível, pertinho do mau gosto.

 

O Mateus continuava a fixar a página, uma imagem parada que escondia o rebuliço que começava para lá do seu olhar.

 

Encontraram-na evidente na segunda linha.

- Para – pediu novamente a Sinédoque. Sabes que o rapaz fica angustiado e anda sempre por aí cabisbaixo.

- Não percebo a vossa preocupação. Ele é pequenote! E eu apenas disse que o pequenote chegou a casa... Ah!... Percebi! Preferias que o tratasse de forma grandiosa e distinta, grandiloquente: o sábio grego, o pequeno sábio, o sábio pequenote chegou a casa! - brincou a Antonomásia, dramatizando.

 

- Mãe, sabes quem é o sábio grego, certo? - perguntou o Mateus, abandonando por momentos a prosa agarrada à folha que ele afagava entre o indicador e o polegar.

Não esperou pela resposta. Afinal não podia perder a disputa que opunha as três irmãs. E tão parecidas eram de figura que o rapaz mal as distinguia.

 

-  Os pais é que se veem gregos para te tornar distinta! - interveio prontamente a Metonímia.

- Muito importantes as meninas! A vossa eloquência é incomparável: ainda ontem vos vi agarradas às palavras mais sublimes de todas. - As mais velhas mantiveram a postura séria e elevada, como se nada tivessem entendido. A mais nova continuou. - Tu, por exemplo, ontem disseste que o rebanho tinha trinta cabeças... Um horror, coitadas das ovelhas! E tu, na semana passada, afirmaste que o Eufemismo estava a precisar de beber um copo com os amigos!

A Sinédoque e a Metonímia entreolharam-se espantadas.

 

- Mãe, sabes o que é uma antonomásia? Uma sinédoque? E uma metonímia?... A mim parecem-me nomes de medicamentos. Duas antonomásias por dia nem sabe o bem que lhe fazia... depois das refeições, claro – brincou o Mateus.

- Não sei bem... figuras de estilo… recursos expressivos. Será melhor consultares uma gramática ou um dicionário.

Acenando afirmativamente, o Mateus agradeceu o conselho e voltou a fitar a página.

 

- Sabes muito bem que essas expressões foram proferidas numa conversa informal com outras figuras. Não baixamos a esse nível quando nos passeamos pelas páginas ímpares das nossas melhores obras. E o Eufemismo anda cansado de suavizar as coisas. Apresenta perturbações preocupantes e, de um momento para o outro, pode tornar-se cruel, como o tio…

- O Disfemismo? – antecipou-se a Metonímia.

- Sim - continuou a Sinédoque. – Por isso é que eu disse que ele precisava de beber um copo, de descontrair, de falar com os recursos amigos. 

Mas a Antonomásia não se dava por vencida.

- Não vejo grande diferença entre as vossas palavras e as que eu selecionei aqui nesta página. Não estou a fazer má figura!

- Não vês!? Nós não deixamos as nossas linhas sem um motivo sério! Repara bem, o petiz tem um nome próprio e é esse que deves usar! Se pretendes identificá-lo através de uma característica, procura uma que o promova, que o deixe feliz… O diminutivo que usas é um recurso pouco fiável. Às vezes, é doce, carinhoso, mas, repentinamente, torna-se cruel e arrasador. E o adjetivo disfarçado de nome que empregas no diminutivo é malicioso. Como já disse, o rapaz não gosta que o tratem assim, por isso anda atribulado. Vês agora como és uma figura que faz uma péssima figura?!

- Pequenote! – rematou a Metonímia que encontrou no rosto da Antonomásia uma ligeira expressão de quem não estava a entender.

- Percebi! Reagiu a mais nova. Vou emendar, fiquem descansadas. Não passa da próxima revisão textual. Mas vou estar atenta porque também vos apanharei em falta com facilidade. Sei que gostam de passear pelos níveis mais correntes.

- Mas não costumamos ofender… - cortou a Sinédoque.

A Antonomásia fechou as janelas e encerrou-se no interior da linha à espera da próxima revisão.

 

O Mateus virou a página e continuou a ler. Tinha prometido ler pelo menos dois capítulos. 

 






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