36. Cinquenta e um centímetros
- Pai, faz-me uma pergunta sobre
mim.
- Não percebo.
- Sobre alguma coisa que não saibas.
- Não é fácil fazer perguntas sobre
algo que desconheço.
- Há muitas coisas sobre mim que tu
não sabes.
- Por exemplo…
- Pai, assim é fácil!
O Mateus queria que o pai, qual
homem do leme, desvendasse os seus segredos. Que enigmas guardaria um rapaz de
dez anos?!
Caminhavam os dois na marginal.
Terra e mar. Dois mundos lado a lado. O Mateus admirava a indecisão do mar, o
pai a insistência – as duas possíveis, faces da mesma moeda.
O que sabe a terra sobre o mar? O
que sabe o mar sobre a terra? A praia, pedaço de terra onde se encontram, um
indeciso, outro insistente, guarda os segredos de ambos. Há muito que a brisa
do mar procura desvendá-los.
Caminhavam lado a lado, dois mundos
unidos na praia, plena de passado onde presente regressa, por vezes, saudoso;
ávida de futuro que o presente antecipa em cada sonho inseguro e atrevido.
- Filho, tu és como este mar, apenas
conheço aquilo que me dás em cada onda que me toca.
- Depois dizes que eu é que falo
português do Brasil! Também não entendo o que dizes.
- Quis dizer que não conheço os teus
segredos. Sei apenas aquilo que me queres contar. É como a areia da praia, só
conhece o sabor da água que a toca. Depois há o mar alto, o mar largo.
A brisa marítima tocava-os
suavemente e sussurrava histórias que se alongavam até ao horizonte.
- E não estás preocupado?
- Porquê?
- Por não conheceres o meu alto-mar.
Não, não estava. O alto-mar é um
lugar sem caminho, onde se chega de olhos fechados. A terra, ansiosa, invasora,
nem sempre sabe ficar, quer o mar igual à terra.
- Por exemplo, podes perguntar-me
com quantos centímetros nasci.
- Pensei que querias falar de
sonhos, de segredos…
- Vês, não sabes! Já esqueceste.
O sorriso do petiz encontrou caminho
no rosto do pai que, naquele momento, não duvidava que o filho o conhecia até
ao mar alto, onde ousou quebrar os seus vedados términos.
- Cinquenta e um centímetros!
Era esta a medida das perguntas. A
medida da praia onde ambos se abraçaram.
37. O que é o futuro?
O rapaz
esperava ao fundo do corredor, dava passos sem destino para enganar a espera
que sempre o incomodava.
Aproximei-me
e reparei que fixava o chão perdido na sua geometria monótona, gasta e
quadrada.
- Já lhe
enviei o texto! – disparou.
- Deixa-me
confirmar.
Sim, era
verdade. Observei-lhe o rosto e vi que um sorriso triunfava naquele momento.
Afastou-se depois ligeiramente, ensaiando um bailado indeciso, passos que o
levavam e traziam, impaciente, esperando a minha reação.
- Não vai
ler agora, pois não? – sugeriu incerto.
O corpo
crescera muito e precisava ainda de acertar umas contas com as ideias. Esperou
ligeiramente curvado para me ouvir melhor. Naquele momento, o corredor acolhia
já mais passos que nos cercavam curiosos, um cerco insistente.
- Gosto do
título. Certamente abrirá as portas para uma bela história – adiantei.
De imediato,
o rapaz foi arrastado para o intervalo, para o exterior, desviando-se das
perguntas com gestos e sorrisos desligados. Também ele continuava agarrado ao
texto que deixara nas minhas mãos.
O que é o
futuro?
Era o
título. Parecia uma pergunta desnecessária, mas agarrou-me, desafiadora.
Qualquer adulto certificado evita estas perguntas, certo de que já encontrou as
respostas ou de que não as quer encontrar ou de que não há respostas.
O que é o
futuro?
De soslaio,
reparei que, ao fundo das escadas, o rapaz procurou ainda os meus olhos.
Tentava confirmar o estado em que a pergunta me deixara. Queria uma resposta e
sabia que tinha dado o primeiro passo.
Surgiu-me a
esperança.
Seria ela
capaz de uma resposta completa, acabada?
Tinha
dúvidas.
A esperança
tem, por vezes, efeitos secundários,
quando chega
aos ouvidos das vidas incertas,
que a
recebem com um sorriso doloroso,
desconfiado.
Mas não
encontrava melhor.
Só a
esperança parecia grávida de futuro.
E… que
futuro pode ser presente?
Todos nascem
para crescer.
- Mas
esperar é estar agarrado ao presente! Eu, quando espero, aguardo – dirá mais
tarde o rapaz.
Direi que
não,
que a
esperança é um futuro que não nos procura,
que é o
caminho que abrimos e percorremos.
A espera de
quem caminha.
O intervalo
findara. Voltavam arrebanhados.
- Já leu? –
perguntaram.
Aumentava a
minha responsabilidade. O futuro que os percorria também era meu. A esperança
de quem caminha não se quer solitária.
E as
derrotas cabem na esperança?
Na esperança
só as conquistas.
E derrotas.
Não, na
esperança só os sonhos. As derrotas são presente e são passado. Só as
conquistas são presente, passado e futuro.
O que é o
futuro?
Sonhos.
Conquistas.
Vi-os entrar
na sala de aula.
Fiquei no
corredor e preparei-me para ler o texto.
38. Um dia, subi a uma oliveira
Regresso à
infância pelo caminho que só as palavras percorrem. São elas o novelo que
desenrolo para não me perder. Avanço de olhos fechados. Abri-los é quase tão
perigoso como olhar para trás, quem vacila perde a memória prometida.
Suave, surge
ao fundo, depois da curva.
Tinha seis
anos. Estava lá o Hélder, o Luís e o Paulo.
Atrás da
casa dos meus pais, uma oliveira, forte e verde. O tronco guardava orgulhoso as
cicatrizes que o tempo ali gravara. O musgo, veludo verde o macio, abraçava-o.
Os ramos disputavam o Sol, para ele se levantavam firmes e decididos.
- Vamos ver
quem trepa mais alto?!
O desafio
estava lançado. Subimos. Mas nem os gritos de vitória ouvi - um som abafado e
um grito sufocado pela dor geraram um silêncio inesperado.
- Ele caiu!
Ele caiu! – gritou o Hélder, gerando alarme.
-Estás bem?
– perguntou o Luís, descendo rapidamente.
O braço, o
braço, não sentia o braço!
A minha mãe
chegou pouco depois, qual sentinela discreta que reage prontamente ao mínimo
sinal de perigo. Olhou-me, sacudiu a terra das minhas calças e nada perguntou,
bastavam-lhe as lágrimas que desenhavam no meu rosto o mapa da dor.
- Luís, vai
a casa e pede à tua mãe para chamar um carro de praça.
- Onde
vamos? – perguntei, entre soluços.
- Ao
hospital.
- O que me
vão fazer?
Não me deu
resposta. Era mais importante ir do que ficar. Caminhei, então, ao lado da
minha mãe até à estrada mais próxima, ouvindo em cada passo o cetim da blusa,
respirando o calor da mão que afagava o meu rosto, recolhendo as minhas
lágrimas.
Silêncio e
espera pelo carro verde e preto.
- Alguém te
empurrou? – acabou por perguntar.
Acenei
negativamente.
Daí a pouco,
o senhor José abriu a porta para entrarmos no seu táxi.
- Ó rapaz,
quantos anos tens?
A minha mãe
respondeu.
- E já sabes
escrever o teu nome?
- Porque
pergunta? – reagiu a minha mãe.
- Era só
para saber se era canhoto. Daqui a dias, começa a escola e ele vai aprender a
escrever. E, se tiver o braço esquerdo partido, aprende com a direita.
Aconcheguei-me
para suportar aquelas palavras frias.
Sim, era
canhoto e tinha razão o senhor José, o gesso acabou por me fazer destro.
Nos meses
seguintes, várias vezes passei pela oliveira para fixar o ramo por onde tinha
subido. Havia de lá voltar para subir e vencer.
E voltei,
subi e venci.
O fio
tremeu, mantive por isso os olhos fechados e voltei à curva. Não resisti ao
perfume daquela mão carinhosa, à segurança dos passos decididos, ao olhar que
me acarinhava e às palavras que me davam colo. Acomodei-os e trouxe-os comigo!
São
pedacinhos que saboreio de olhos fechados.
Fica o
presente mais doce.
Vou
enrolando o novelo, volto ao labirinto.
39. Escuta!
O pai entrou
na sala e encontrou-os sofá. À frente deles, o televisor mostrava, quase mudo, abandonado,
imagens animadas, coloridas e divertidas: uma menina fazia as maiores
travessuras para desespero do urso castanho e simpático. Mas nenhum deles
reparava naquelas aventuras, agarrado cada um ao seu monitor. Riu-se o pai,
sentando-se num pedacinho do sofá ainda livre, mas riu-se sozinho. Ainda olhou
os filhos, esperando companhia, certo de que rir acompanhado redobra a alegria.
Desligou o televisor e por ali ficou à espera de que as baterias mostrassem
sinais de fraqueza.
Reparou
depois que nenhum dos filmes chegava ao fim, histórias incompletas,
interrompidas e truncadas. Pobres narrativas assim tratadas na ponta dos dedos
inquietos e nunca satisfeitos!
- O que
estás a ver?
Silêncio
preso aos monitores.
- Pai,
traz-me uma maçã.
Silêncio. Esperava
o pai que o filho levantasse os olhos.
- Pai, podes
trazer-me uma maçã?
Silêncio.
- Pai?! –
protestou.
- Diz?
- Não
ouviste?
- Não
consegui ouvir tudo.
- Por favor
– pediu, levantando, finalmente, os olhos.
O pai foi
buscar a maçã, o filho voltou ao monitor.
Caminhava e
pensava.
Em cada
passo uma dúvida.
Até quando
aguentaria fechado o diálogo preso em cada criança,
assim
cercado de histórias fugidias e incompletas?
Que crianças
estão habilitadas para o silêncio?
À hora de
jantar, encontraram-se todos à mesa. Havia tempo, havia espaço. Estavam agora
longe das mãos os monitores carcereiros do olhar.
- Sabias que
os deputados discutiram hoje o programa do governo. Concordas com as propostas
para a …
- Pai, a
Clarinha não para de me imitar!
- Mãe, eu
não fiz nada!
- Não quero
sopa!
- Pai, já
recebi o teste de matemática.
- Eu também
já recebi os meus testes.
- Eu não
gosto de sopa!
- Para de me
imitar!
- Para de
dizer isso, não te estou a imitar!
- A sopa tem
legumes, não gosto!
- Vês, está
a imitar-me!
- Eu não
gosto!
- Pai, o que
é um deputado?
- Mãe,
amanhã, tenho natação?
- Só há
sopa?
- As
sapatilhas deixam entrar água!
- Hoje o
professor disse que nós temos dificuldade em estar calados!
- O Mateus
ainda não fez os trabalhos!
- Mãe, a
Teresa adormeceu no carro, sabias?
- Não dormi
nada!
- Mãe, estás
a ouvir-me? Estou a falar contigo!
- Pai, não
olhes assim para a mãe!
- Clara, é
melhor ficares calada!
- Cala-te
tu, Mateus!
- Eu não
quero a sopa!
- Mãe, a
Inês já telefonou?
- Pai, não dizes
nada?
O pai fixou
por momentos cada um deles. Uma clareira silenciosa surgia agora depois de
atravessarem aquela floresta de perguntas e protestos. Era urgente ouvi-los,
mais urgente ainda era abrir espaço para a escuta.
- Primeiro,
preciso de acabar a pergunta que todos interromperam – começou por dizer o pai.
E abriu o
caminho necessário, demorando o olhar em cada um, dando forma às palavras que
seguiam sob a forma de dúvida e voltavam satisfeitas com a resposta.
- Podes
ouvir-me, agora?
Claro! O diálogo
era agora feito de silêncio e de escuta.
Silêncio e
escuta, é urgente permanecer.
40. O que queres ser quando fores crescido?
Ouvi dizer
há dias, uma vez mais, que, no futuro, no teu futuro, irás exercer uma
profissão que ainda não existe. Reparei no semblante carregado de quem ao meu
lado se sentava, nos acenos afirmativos e nos lábios cerrados.
Por
momentos, senti que tudo aquilo que te ensinámos, que tudo aquilo que por ti
escolhemos, poderia ser um logro; admiti ainda que percorrias uma escola
obsoleta, cercada de altos muros, incapaz de ver para além deles.
Por
momentos, percebi a monstruosidade cometida em cada pergunta que te obrigava a
pensar no teu futuro: o que queres ser quando…?
Por
momentos… apenas por momentos.
Afinal, quem
me garantiu aos dez anos a profissão que hoje exerço? Dirão que não é nova.
Não, não é. Mas o que é hoje afasta-se vertiginosamente do que era. Além disso,
descobri que um dos meus amigos de infância é hoje operador de drones. É que,
quando éramos pequenos, a única aeronave não tripulada que conhecíamos era o
avião de papel ou a avioneta! Mia Couto diz ser a neta do avião… o livro está
cá em casa.
Percebes o
que te digo?
Também
descobri que um amigo da faculdade é hoje analista de segurança informática. Vê
bem, um rapaz que passou anos a estudar a literatura e a língua portuguesas. E
o engenheiro de energia eólica? A única coisa que deve ter conhecido quando era
pequeno foi o moinho do avô onde o milho se transformava em farinha ou, mais
tarde, os quixotescos moinhos de vento…
Percebes o
que te digo?
Ouvi dizer
ainda que, no futuro, serão valorizados os candidatos com melhores skills ao
nível da relação interpessoal. Sempre assim foi! A teu trunfo será o saber.
Mesmo que te digam que o que aprendes hoje não será verdade amanhã! Estou certo
de que hoje caranguejo, amanhã carangueijo! Ontem mater, hoje madre. Quem sabe
hoje percebe melhor o que terá de saber amanhã!
Percebes o
que te digo?
E as skills?
Serás
competente! Não é muito difícil, apesar do estrangeirismo. Bastará saber entrar
na sala, fazer silêncio, escutar e trabalhar com rigor.
E o trabalho
colaborativo?
Também:
escutar, partilhar, concordar, discordar, fazer.
E a escola
do século XIX, pai?
Foi do
século XIX e é de quem quer fazer história.
Mas
sentamo-nos da mesma forma na sala.
Não, nunca
na mesma cadeira, nunca na mesma mesa, nunca no mesmo quadro, nunca as mesmas
janelas, nunca com o mesmo professor, nunca com o mesmo livro, nunca com o
mesmo caderno, nunca duas vezes no mesmo rio
Percebes o
que te digo?
Se te
quiserem tirar o verso difícil, acenando-te com uma visita à casa do poeta,
resiste. Agarra primeiro cada palavra, descobre-lhe o sentido e a forma, como
se cada uma delas fosse um degrau. Vai depois descobrir a casa e verás que cada
pedra valerá mais do que a sua dureza.
Se te
quiserem tirar o passado, mostrando-te um futuro por causa dele incerto,
resiste. O passado é aquele aviso à navegação, brilhando intermitente na costa.
Todos os erros teimam em voltar e desembarcam facilmente nas costas onde os
faróis há muito foram abandonados, costas rasas, sem construção alguma.
Percebes o
que te digo?
Aquilo que
te ensinamos, tudo aquilo que por ti escolhemos, não é um logro; percorres uma
escola atenta, sábia e prudente e, por vezes, cercada de altos muros, para que
não a destruam.
Afinal, o
que queres ser quando fores crescido?
41. O burro que não queria cenouras e a árvore de
Natal
- Pai, tenho uma
pergunta para te fazer.
-
Sim.
-
Porque é que dão cenouras aos burros?
-
Não percebo.
Queria
o pai saber a origem daquela pergunta. É que as perguntas isoladas correm o
risco de ficar insatisfeitas. As perguntas trazem o caminho da resposta
escondido atrás da inclinação final. É preciso desvendá-lo.
-
Vi uma fotografia num livro.
-
E então?
-
O burro estava preso a uma nora…
-
Sim, um mecanismo para tirar água de um poço…
-
E a minha pergunta é: porque lhe dão cenouras? Tu acreditas nisso?
O
rapaz achava estranho dar cenouras ao animal.
Cercado
assim por aquela estranheza espontânea, suavemente inocente, o pai viu-se
obrigado a uma resposta e tratou de encontrar o melhor caminho. Estaria o
problema nas infindáveis voltas que o burro dava? Na fugidia cenoura? Seria o
burro animal cego que não via nem uma coisa nem outra?
-
Eu penso que ele não gosta nada daquelas voltas que dá… - adiantou-se o rapaz.
Sim,
tinha razão. E o problema nem seriam as voltas. Estar preso, não poder caminhar
pelo campo florido que a água do poço alimentava era bem mais grave! Ainda se
lembrou de Sísifo, mas deixava para tempo mais oportuno.
-
Não percebo o teu espanto quanto às cenouras. Pelo que sei, o animal gosta de
vegetais.
-
Eu vi uma cenoura presa numa vara à frente do burro… aquilo serve para quê?
Quando é que lha vão dar?
Ainda
se lembrou o pai de Tântalo, mas…
- Eu acho
que o animal não quer a cenoura. Não é por causa dela que caminha.
- Não
percebo.
- O burro
avança no caminho porque quer conhecer as montanhas e os rios, avança porque
quer ouvir o canto das aves que o cumprimentam quando passa, avança porque quer
sentir o perfume das flores, saborear as ervas tenras e suculentas, sentir a
brisa que lhe afaga o pelo e segreda histórias que recolhe por onde passa,
trazendo-as guardadas para sempre.
O petiz
ficou por momentos preso às palavras do pai.
- As coisas
que o homem da cenoura desconhece!
- Talvez,
tão preocupado com a cenoura e com o seu conveniente afastamento, não vê para
além das pedras do caminho.
- E a
teimosia do burro?
- Talvez não
seja burrice. Acredito que quando para o faz por uma boa causa.
- Talvez uma
flor bela e perfumada!
- Sim. Só
que o homem da cenoura não percebe nada disso.
Sim, o homem
da cenoura nunca percebeu nada daquilo.
- Pai, tenho
um desafio para te fazer.
- Diz.
- Queria que
escrevesses uma história sobre a árvore de Natal.
-Estás a
desafiar-me com uma cenoura – protestou, rindo, o pai.
Sim, mas
desta cenoura separava-o a distância que a imaginação podia anular. Era agora
necessário merecê-la e levantá-la depois como um prémio conquistado.
- Veremos se
consegues fazê-la até ao Natal.
42. Pai, a minha história de Natal?
O Mateus
estava deitado no sofá. Tinha os olhos brilhantes, dores de cabeça e um dente
que se despedia dos outros, suspenso na frágil gengiva, que o rapaz
constantemente verificava com a língua.
- Pai, podes
ver se tenho febre?
- Deixa ver…
vou buscar o termómetro.
Daí a pouco,
o aparelho sugeriu algum cuidado.
- Espera,
vou falar com a mãe. Acho que precisas de tomar um remédio para baixar a febre.
- Remédio?!
-
Medicamento.
- Não quero
nada disso!
O pai não
respondeu ao protesto. Voltou daí a pouco com um frasco conhecido e uma colher
apontada à boca do rapaz.
- Água,
quero água – suplicou, na tentativa de contrariar o sabor que lhe invadia a
boca.
Passada a
tormenta, voltou a deitar-se. Fechou os olhos, mas deixou escapar um ligeiro
sorriso que o pai interpretou imediatamente.
- Acho que
já estás a ficar melhor!
- Pai, já
escreveste a história sobre a árvore de Natal? Tu prometeste!
Uma história
sobre a árvore de Natal… Não, ainda não. As palavras fugiam das ideias, ou as
ideias das palavras. Sentia-se um leito seco, sem imaginação. Mas, de repente,
foi ganhando forma.
Verde.
Sempre
verde.
Ascendente.
Dançava ao
sabor do vento,
agarrando-se
à terra,
sempre que
ele, agitado, desafiava o seu equilíbrio.
Raízes
fundas para crescer,
alcançar as
alturas, crescendo na terra sem se ver.
Um dia,
tocou as estrelas e uma delas falou-lhe do Menino que vira nascer.
Contou-lhe
que, nessa noite, brilhara descontroladamente feliz.
Tanto que os
sábios, os conhecedores do brilho certo, resolveram segui-la.
Queriam
encontrar a razão daquela luz.
Contou-lhe
depois como permanecera sobre o presépio, ensinando o caminho
aos que procuravam
o Menino.
Aprendera
com eles
o silêncio,
a
simplicidade
e a
confiança.
- Podemos
ficar contigo? – pediu outra das estrelas ao pinheiro que permanecia ainda
surpreendido com a história que acabara de ouvir.
- Para quê,
se do alto tudo alcançam? – contrariou.
- Queremos
estar mais perto dos homens, para ouvir o que dizem do Menino.
O pinheiro
acolheu então as estrelas nos ramos, tornando-se o mais brilhante na noite
escura.
O Mateus
ficou algum tempo em silêncio.
- Em que
pensas? – perguntou o pai.
- O que
dizem os homens sobre o Menino? - perguntou, fixando os olhos do pai.
O pai
acariciou-lhe o rosto, procurando discretamente sinais de febre. Não os
sentindo, saiu satisfeito da sala.
O rapaz
ficou no sofá e, durante algum tempo, observou as pequenas luzes na árvore de
Natal. Quando voltou, o pai reparou no sorriso do filho, percebendo-lhe o
sentido: «As coisas que o meu pai inventa!»
- Queres ver
um filme comigo? – sugeriu.
- Boa ideia,
chama os teus irmãos. Eu procuro a mãe.
O filme
começou.
Em cada
olhar um brilho intenso e feliz.
Terá vindo
das estrelas?
43. Sonho: tempo e silêncio
- Pai, podes ajudar-me? Preciso de
continuar uma história sobre o Pai Natal.
O pai pediu então para ler o texto
que atormentava a imaginação da menina. Sentiu imediatamente um delicioso aroma
a canela que preparava suavemente o caminho das palavras. Leu-as e ficou a
saber que o Pai Natal tinha um filho e que este se preparava para uma noite de
trabalho. Pelos vistos, o rapaz estava nervoso - nem o GPS que a mãe lhe
oferecera o deixava mais tranquilo.
- Como é que eu começo? – pediu a
Clara.
- Consegues ver com a imaginação?
Experimenta, fixa um objeto. Alguns segundos depois abrir-se-á uma porta por
onde só o teu pensamento poderá entrar. O lápis, atento, irá desenhando as
palavras que recolherão tudo o que irás ver. Quando regressares, terás nesta
folha a mais linda história de todas.
A Clara ouviu atentamente o
conselho, mesmo sabendo que as soluções do pai nem sempre funcionavam com ela.
Ficar sossegada, olhar um objeto até deixar de o ver, para entrar no reino da
imaginação!? Impossível!! Era preferível trepar a uma árvore - uma alegria para
todos os sentidos!
- E o título?
Ainda não era tempo. O título podia
ser a fundação ou o telhado. O pai gostava que fosse telhado, a melhor
cobertura para as palavras que se levantam, uma a uma, como quem levanta uma
parede, onde há espaço para as portas e para as janelas.
- Casas, estás a falar de
casas?! O que é que um título tem a ver com um telhado?
- Tal como o título, o telhado é uma
das partes mais visíveis da casa.
- E não! O telhado ninguém o vê!
- Depende. Quando sobes à montanha,
ou viajas de avião, é o telhado que as casas mostram. Aquilo que preparamos
melhor nem sempre é aquilo que os outros conseguem ver. Tudo depende da altura.
O pai notou no rosto da filha algum
desencanto. Resolveu então contar-lhe, em segredo, que já tinha ouvido falar no
filho do Pai Natal.
Na primeira noite de trabalho, saiu
de casa confiante.
- Vai, filho! As crianças esperam
pelos presentes… O teu pai nunca saiu tão tarde. Não te enganes!
- Mãe, eu levo GPS e sigo na minha
moto voadora.
- As renas são mais silenciosas.
- Eu sei, mas são muito lentas.
Estarei de volta antes do amanhecer.
Arrancou, deixando nos olhos da mãe
um sorriso feliz. Tocou depois no monitor para receber as primeiras indicações:
«Vire à direita e depois siga suavemente até ao telhado mais afastado. Pelo
caminho, verificou se os sonhos estavam já devidamente colocados junto a cada
chaminé. Sonhos ou desejos, aí os deixava cada criança ao adormecer, cercados
com o mais puro brilho do olhar.
Quando chegou ao ponto mais distante
do povoado, preparou-se para regressar, deixando em cada sonho aberto o
presente tão desejado.
- Apontar… preparar… deixar!
Apontar… preparar… deixar! Bom Natal, meninos! – dizia, enquanto distribuía os
mais bonitos embrulhos que delicadamente caíam nos telhados das casas.
Daí a pouco voltou a casa.
- Filho?! Não é possível!
- Entreguei todos os brinquedos
conforme me indicaram. Fui discreto e rápido. Melhor é impossível!
- Mas trazes no saco ainda muitos
presentes…
- Também achei estranho, talvez o
pai se tenha enganado nas contas. Em todos telhados deixei um presente.
- Em todos? – perguntou o Pai Natal
com algum esforço. A febre e a tosse obrigavam-no e permanecer em casa.
- Quer dizer, em muitas delas não
havia sonhos brilhantes junto à chaminé, por isso, avancei para a seguinte. Achei
que aí não havia crianças…
Ficaram os pais do rapaz bastante
preocupados. Em tantos anos nunca tal erro tinha acontecido!
Resolveram sair de novo. A mãe
acompanhou o filho. Desta vez, foram no trenó puxado pelas renas.
- Repara. Este telhado não tem
sonhos brilhantes – disse a mãe, apontando. Aproxima-te. Vês estas marcas? Os
sonhos já cá estiveram. Por algum motivo, já não estão cá.
- Talvez não tenham tempo os meninos
desta casa.
- Sim, não tiveram tempo para
sonhar.
- O que fazemos então?
- Vamos deixar-lhes uma linda flor.
Terão de cuidar dela. O tempo que levará a crescer será o tempo que terão para
sonhar. O sonho precisa do tempo e do silêncio que cada flor tem para ensinar.
Passaram depois pelas outras casas
onde o telhado permanecia escuro, apagado. Aí também deixaram o tempo e o
silêncio escondidos numa flor.
Por fim, regressaram a casa,
satisfeitos e confiantes.
A Clara olhava fixamente a folha
branca. O pai retirou-se silenciosamente. Ia já no corredor quando a filha
gritou:
- Já sei! Já sei! A história vai
chamar-se “O Pai Natal partiu uma telha”.
O pai sorriu. Ia começar pelo
telhado, mas tudo bem. Certamente as palavras já conheciam o caminho. Em pouco
tempo, a história ganharia forma.
44. Confiança
Acabada a
reunião dirigiram-se para o carro. Traziam ainda a melodia agarrada à memória.
Às vezes, certos sons passeiam-se nos nossos pensamentos como uma música de
fundo que tinha ficado parada durante algum tempo.
Daí a pouco,
o Mateus olhava pela janela, sustentando o queixo e o pensamento com a mão. Os
olhos já tinham abandonado o caminho de regresso a casa, para não interromperem
as perguntas que se formavam e preparavam para chegar à costa como a onda que
deseja abraçar a areia onde carinhosamente se desenrola.
- Tu tens
confiança, mãe?
- Claro –
respondeu prontamente.
- Tens
confiança em quem?
- Em ti, nos
teus irmãos, no pai, em mim. Acredito nas tuas qualidades, nos teus sonhos.
- Então
confiança é o mesmo que esperança?
- Parecem-me
irmãs – interveio o pai.
O Mateus fez
uma careta e encolheu os ombros. Lá estava o pai com jogos de palavras!
- Então quem
são os pais? – desfiou, sorrindo, a Clara.
- A
confiança e esperança estão em ti, nascem e permanecem enquanto a tua vontade
quiser! – respondeu a mãe.
Por momentos,
as ondas afastaram-se um pouco. A areia esperava pacientemente pelo regresso da
maré plena. O silêncio percorreu o caminho que faltava até casa. Já no
alpendre, a mãe tentou explicar melhor:
- Podes
esperar que alguma coisa venha a realizar-se no futuro. Por exemplo, esperas
vir a ser um veterinário. Para o conseguires, terás de confiar nas tuas
qualidades, em nós que sempre te apoiamos e em todos os outros que contribuem
para a tua formação.
- A
esperança poderá ser aquela meta que queres atingir, tudo aquilo que pensas vir
a conseguir no futuro, tudo aquilo que esperas – corroborou o pai. – A
confiança acontece no caminho que percorres.
Saíram do
carro. O Mateus não quis entrar logo em casa, ficou a jogar à bola na calçada.
O banco de pedra junto à parede do anexo era a baliza ideal para os golos que
festejava com euforia, através de um bailado que aprendera com os amigos da
escola. Entretanto, o pai passou para recuperar um saco que ficara na mala do
carro.
- Com tantas
notícias más, achas que vale a pena continuar a ter esperança? Não sei se
podemos confiar nas pessoas.
Aquela tinha
sido uma onda gigante que varrera com violência o areal. O pai sentou-se na
mala para melhor organizar a resposta.
- Sabes, a
confiança não se esgota em nós e nem nas pessoas que nos rodeiam.
- Queres
dizer que concordas com o que disse o senhor padre na reunião.
- Claro. As
palavras de Cristo são para mim motivo de confiança e de esperança. Às vezes,
não chega acreditar nas pessoas. Às vezes, as pessoas já não têm esperança, já
não querem ter esperança ou não sabem…
O Mateus
voltou a chutar na tentativa de fazer mais um golo e festejar à frente do pai.
- Filho –
continuou, as pessoas são como os jogadores de futebol. Se não tiverem um bom
treinador que os oriente, que os anime nos momentos de desânimo, correm sem
sentido. Não basta o capitão dentro do campo. Também ele aguarda pela voz do
treinador. Em campo, os jogadores não se bastam a eles próprios. Antes, durante
e depois do jogo, o treinador é fundamental.
O Mateus ficou
alguns segundos suspenso com a bola na mão. Ouvia o pai como os jogadores
atentos ao capitão que transmite a esperança do treinador que os observa para
lá das quatro linhas.
De novo a
melodia, enquanto o Mateus rematava certeiro e cantarolava “sem medo avançarei”.
45. De quem é a tua vida, se a minha também é tua?
A Clara
estava sentada na carpete. Alinhava à sua volta vários livros que a Teresa daí
a pouco iria comprar; era uma loja virtual, virtual mesmo!
O pai
acompanhava aquelas manobras de diversão, enquanto ouvia as intervenções
políticas em destaque nos noticiários.
- O que é a
eutanásia? - disparou a Clara enquanto equilibrava o último livro que dispunha
para venda.
O pai ficou
alguns segundos escondido atrás do olhar aparentemente ausente. Tentava uma
distração atenta à notícia do momento.
- Pai, não
me ouviste? Eutanásia o que é? - reforçou a menina impaciente.
Desta vez o
pai fixou-a e quis responder-lhe. Mas uma nuvem fixou-se entre os dois,
aparecera sob a forma de uma lágrima tímida.
- Que foi
pai?
Nada, não
era nada.
Lembrou-se
de falar-lhe do sentido etimológico. Caminho doloroso! Relembrar o passado da
palavra não a libertaria das cores frias e silenciosas. Sustentar que é bom o
que nos separa, que é bom o que nos afasta e faz sofrer seria lançar um manto
negro sobre o brilho da esperança que a frágil idade da menina levantava bem
alto!
Lembrou-se
ainda de perguntar-lhe se a vida que espreitava pelos seus olhos grandes e
inquietos começava e acabava dentro de si, se não havia por ali pedacinhos de
quem lhe dera tempo, de quem lhe contara histórias até adormecer, de quem se
levantara cedo, dia após dia, para que nada faltasse na sua lancheira.
Dir-lhe-ia
depois que a vida dela vinha de raízes profundas, antigas, que vento algum
podia arrancar. Raízes que se agarravam a outras raízes. Que a vida que
palpitava no seu corpo se entranhava noutras vidas como a da criança ainda no
ventre da mãe. Filha, de quem é a tua vida, se a minha também é tua?
- Queres
comprar este, pai? Muito apetitoso, com cheiro a chocolate! - propôs a Clara,
aproximando o livro do nariz do pai que lhe deu, nesse momento, um abraço
demorado. Tinha ali uma porta aberta para a fuga. É que os pequenos descobrem
facilmente quando os adultos não sabem a resposta ou não a querem dar. Mas o
vazio que deixamos outros ocuparão. Arriscou:
- Lembras-te
do gato que a mamã encontrou um dia na rua? Chamou-lhe Sortudo! - A Clara
acenou afirmativamente. - A certa altura, foi ficando muito velhinho e doente.
Miava com os outros gatos que também viviam no jardim e que nunca o deixavam
só. Todos os dias o visitavam, trazendo o melhor da sua caça e por ali ficavam,
ouvindo as suas histórias, acariciando-lhe o pelo. Aos poucos o gatinho foi
ficando cada vez mais fraco. Apenas os olhos eram capazes de sorrir e de pedir
aconchego. Então, à volta dele, passaram a deitar-se sempre dois gatos:
respiravam em conjunto, partilhando, naquele abraço, a vida que fica e a que
vai. Um dia, deixaram de sentir os movimentos do Sortudo, a barriguinha já não
subia nem descia e tinha os olhos fechados, serenos e vencedores. Durante muito
tempo, os dois gatos falaram dele aos amigos que viviam no jardim. E, assim,
viveu por muito tempo mais nas conversas dos gatos deitados ao sol, nas pedras quentes
e macias.
- Eu sabia
que o Sortudo já tinha morrido, pai. Isso aconteceu há muito tempo! – reagiu a
Clara.
- Sim, eu
sei...
A Clara
voltou à loja virtual, abriu outro livro com cheiro e chamou a Teresa.
O pai sabia
agora que, afinal, as crianças tinham vocação para adulto, seres para a vida.
Alguns crescidos esquecem-se disso, tornando-se tristes, soturnos. Sortudos à
espera de um ombro amigo com quem sintonizem a sua respiração e a quem possam
contar a história das suas rugas, vezes sem conta, até que as raízes se
entrelacem e a sua vida permaneça mesmo depois de terminar.
O pai
sorriu, desligou a televisão e continuou à procura de respostas, de quem é a
tua vida, se a minha também é tua?
46. Quando os muros nos libertam
O pai
permanecia na cadeira que balançava lentamente. Naquele dia, não embalava,
levava e trazia pensamentos, insistentes, demasiado circundantes. O rádio
tentava conquistar o espaço, espalhando pela sala melodias suaves até irromper
o sinal horário. Nesse momento, o pai levantou-se, aproximou-se do rádio e
baixou discretamente o volume, fixando, por momentos, as filhas que ali perto
brincavam. Rapidamente, desligou todos os sentidos, apenas ouvia, estagnado,
ausente, preso às palavras que passavam como chamas empurradas pelo vento.
Quando
voltou da terra queimada, encontrou os olhos da Clara que o fitavam
intensamente, como se acabassem de descobrir no rosto do pai a verdade
escondida. Momento eternamente retido, como cicatriz depois da ferida!
- Queres
brincar connosco? - propôs a menina, perante o embaraço do pai.
Era melhor.
- Dás o
leitinho ao bebé, papá! - avançou a Teresa.
Sentou-se o
pai num banquinho cor de rosa, tornando verdade o sonho das crianças que se
derramava nas palavras e nos gestos que inundavam a sala.
- Pai, pai,
já está! O bebé não quer mais! Agora vais mudar a fraldinha – orientou a
Teresa.
Nesse
momento, o Mateus aproximou-se da porta. Trazia no rosto o melhor desalento que
conseguira ensaiar minutos antes. O pai não resistiria!
- Quando é
que terminas a casa na árvore?
- Primeiro
tenho de adormecer o bebé! - segredou o pai.
A Teresa e a
Clara ficaram deslumbradas com a resposta do pai. Espanto brilhante no olhar, o
pai estava a brincar a sério!
- E depois
vens? - insistiu o Mateus.
O pai acenou
afirmativamente, logo esbugalhando os olhos, fixando algo por trás do filho.
-Que é?!
- Não faças
barulho. Vira-te!
O rapaz
obedeceu e ficou pasmado. À sua frente descia suavemente uma lagarta verde
presa a um fio transparente. Regressava de um dos ramos da ginkgo biloba que já
libertava as folhas em busca de Sol. Aterrou no buxo onde pela cor se
confundiu. De lá sairá da cor de uma borboleta que voará para além da sebe que
reforça o muro!
- Também te
quero mostrar uma coisa que descobri – desafiou o Mateus.
O Pai
acompanhou-o até ao alpendre onde o petiz apontou três ninhos discretamente
construídos. Ainda tiveram tempo de ver um pássaro que saiu alarmado de um
deles. Ouviram depois o chilreio que se elevou nas árvores ali perto. Uma
sinfonia alegre, possível porque a estrada escura que passava encostada aos
muros da casa permanecia calada há vários dias. Parece que os homens tinham
resolvido fazer silêncio para escutar o concerto da Natureza.
- Amanhã
vamos almoçar a casa dos avós?
- Não,
filho! Ainda não é possível!
- Quando é
que vamos poder sair? Não quero estar muito tempo atrás dos nossos muros!
- Acho que
hoje à tarde consigo acabar a casa na árvore, se me ajudarem, claro!
Ali perto,
as glicínias formavam uma ramada de folhas verdes de onde pendiam cachos azuis
sorridentes, que se deixavam tocar pelas insistentes abelhas. Um zunido tornado
doce pelo aroma das flores brancas e macias do jasmim que se agarrava à
varanda.
Caminharam
então até à vetusta oliveira que ocupava um dos canteiros do jardim. Presa aos
ramos robustos eleva-se a base da casa que ganhava forma à medida dos sonhos e
dos materiais que iam aparecendo. Uma construção tosca, mas onde cabia a
esperança de subir mais alto para ver além dos muros.
- Anda,
sobe!
Subiu e
sentiu que o espaço diminui à medida que crescemos - porém o Mateus encontrava
aí uma ampla plataforma para observar as estrelas. A casa tinha já duas paredes
feitas de retalhos de madeira e um esboço daquilo a que o rapaz gostava de
chamar abóbada.
O pai
acomodou-se por fim. Aos poucos, apoderou-se dele uma angústia cujo grito
abafado queria derramar-se pelos olhos. Tentou disfarçar. Reparou nas árvores
ainda sem folhas, eram liquidâmbares podados fechados sobre si próprios.
Aguardavam o melhor momento para romper, para libertar os ramos e as folhas.
Era preciso saber esperar! Observou depois o horizonte para lá dos muros. Era
preciso saber esperar!
- Acho que
não vou pôr aqui nenhuma iluminação, Mateus?
- Porquê?!
Sem luz era
mais fácil ver as estrelas. Além de ver para além dos muros, aquela casa
permitia encontrar o brilho das estrelas, aquele fulgor que atenua as noites que
parecem não ter fim.
Quando
voltou à sala, a Teresa e a Clara entreolharam-se, desfazendo-se numa
gargalhada.
- Pai, estás
cheio de folhas no cabelo! Estiveste na casa da oliveira? - perguntou a Teresa.
- Nem
penses! - afirmou a Clara. - Não vais ouvir de novo as notícias! Vais brincar
connosco!
Sem perder
tempo, a Teresa colocou-lhe nas mãos uma caixa de legos.
Depressa
voaram para além dos muros!
47. A enxada e a caneta
- Desde quando há feriados ao
sábado?
O pai ouviu o protesto do filho, mas
não desviou o olhar das últimas camélias que se despediam, libertando-se
demoradamente dos ramos.
Enquanto o
jardim permanecia introvertido, qual madrugada aguardando, as camélias tinham
despontado, numa explosão de cor e forma! Tinham desafiado as negras nuvens e o
vento gélido! Agora que a terra acordava e se mostrava extrovertida, libertando
cores, formas, sons e aromas, espetáculo envolvente, resolvem as camélias
retirar-se. Não podemos florir todos ao mesmo tempo!
Lembrou-se
por instantes da história da mãe que tinha sete irmãos, quatro rapazes, quatro
raparigas! Os rapazes foram à escola, as raparigas não. Malhas que o Estado
tece. Aquela mulher foi camélia no inverno longo e cinzento, abraço perfumado e
colorido, melodia em cada madrugada assustada. Dizia todas as palavras que
nunca a deixaram desenhar!
Recordou-se
ainda do pai e das armas que este lhe dedicou, uma caneta esferográfica e uma
enxada velha. Esta cansada de percorrer e de rasgar a terra. Aquela pouco
rompeu a brancura das folhas, porque era preciso silenciar a vontade de pensar
e de dizer.
Duas armas
que abrem sulcos para aí semear a vida. A terra acolhia as sementes para as
abraçar e multiplicar, abrindo sorrisos satisfeitos. A brancura da folha
acolhia as palavras que escondia, temendo a leitura cinzenta e acusadora.
Em cada
sulco um verso, lado a lado as sementes dispostas, palavras alinhadas,
aninhadas, suportando um metro oprimido, segredado, assustado, suspirado.
Sabia que,
no tempo em que nasceu, as armas já podiam romper sossegadamente pelos campos.
As palavras tinham já despido as impermeáveis metáforas para se tornarem inteiras
e limpas. Mas era preciso permanecer, urgentemente!
Deixou as
camélias e resolveu contar estas memórias ao filho, porque o medo não escolhe o
dia da semana.
48. As mães não sabem subtrair
O jardim
elevava-se. Parece não saber fazer outra coisa! Recebia aquela dádiva como quem
sente uma brisa de olhos fechados A chuva tocava levemente as folhas,
sussurrando-lhe sílabas que as tornava mais verdes e agradecidas.
Ele
depositou o pensamento naquela cena, procurando apenas ver. Por momentos, não
queria entender, apenas olhar tal como a chuva apenas cai. Segundos que fogem
do tempo, que o relógio não alcança, lugares vazios, praças abandonadas.
- Em que
pensas?
Os ombros
foram os primeiros a responder, precipitados. O rosto permaneceu imóvel, as
mãos perdidas num ritmo qualquer contra o vidro.
O calor do
rosto que se aconchegava no ombro tornou o pedaço de jardim ainda mais
surpreendente - as cores permanecem escondidas nos nossos olhos até que um
abraço as liberte.
- Ainda não
me respondeste!
Um pássaro
regressava ao ninho que habilmente construíra entre as travas do alpendre.
- Este ano
temos mais dois ninhos!...
Ela sorriu!
E apertou ainda mais o abraço.
- Domingo é
o dia da mãe… Não sei o que possa oferecer-te. Não quero que seja mais um peixe
fora d’água…
Riram. Era
constante aquela recordação do primeiro filme que viram juntos. Horrível! E de
quem tinha sido a escolha? Riram.
- Podes escrever…
- Não tenho
ideias.
- Olha para
mim!
Aceitou.
Reparou que os olhos têm uma linguagem única que torna as palavras redundantes.
Em cada brilho, em cada movimento, em cada lágrima, uma história. Preciso era
tempo para ver, ver meigamente como quem segura uma página que liberta, palavra
por palavra, as linhas que compõem o nosso ser.
- De que te
ris agora?
- Lembras-te
daquela carteira azul que me ofereceste certo Natal?
- Mais um
peixe fora d’água!
Era melhor
escrever.
Procurou os
olhos.
Quantas
vezes os escutamos?
Por eles
começamos a amar, um olhar basta!
Depois
perdemo-los da vista,
ficando,
perigosamente, afastados do coração.
As mães
sabem ver muito bem!
O botão fora
da casa,
a cor que
não se dá bem com a outra,
o buraquinho
por onde espreita o dedinho quando tiramos o sapato
e as
palavras que os olhos desmentem.
As mães não
sabem subtrair:
em cada
gesto a multiplicação,
mesmo quando
dividem.
Só as mães
sabem quando a divisão nunca é menos!
Só elas
sabem dividir assim,
a ter mais
quando importa repartir.
E
multiplicam os abraços,
os
beijos,
os sorrisos.
As contas de
menos nunca são exatas,
numa deriva
constante e teimosa para a soma!
- Já sabes?
- O quê? –
brincou.
Ela manteve
o abraço e repararam que a chuva tinha abrandado. A terra, vaso maternal,
estava saciada e o jardim respondia ao apelo.
- Acho que
já tenho um bom título… não, não é esse.
Manteve-se o
abraço.
Preciso era
tempo para ver.
49. Há dias fui à praça
A noite
aproximava-se não porque a sombra quisesse, mas porque o Sol se mantinha fiel a
si próprio e a terra continuava a rodar, ficando, por vezes, às escuras. Nada
de novo.
Mas era
preciso levantar dinheiro no multibanco mais próximo. Dois minutos de carro, um
cartão, dois sacos de plástico, um para proteger a mão que sabia o código,
outro para guardar o dinheiro. Reviu mais uma vez todos os movimentos e
saiu.
A estrada
principal apareceu imediatamente no fim da travessa, silenciosa, adormecida.
Percorrê-la naquele momento era como uma fuga sem culpa. Olhou várias vezes
pelo retrovisor. Nada. Seguiu em frente inseguro, tal como a Leonor. Mas só
isso, até porque ela queria muito ir à fonte e ele, se pudesse, não saía de
casa.
A praça
esperava-o, vazia. Ninguém. Nem um carro. Nada. Silêncio apenas contrariado
pelo voo de um pássaro espantado com o viajante inesperado.
Olhou à
volta. Reparou no cuidado triângulo central e nos bancos abandonados. O
cruzeiro continuava ao centro, apontando a igreja que ele resolveu procurar por
entre os centenários plátanos. Descobriu então São Miguel que fitava a praça
como quem a quer proteger, espezinhando um inimigo invisível que parecia atacar
os incautos.
Dirigiu-se
depois à máquina encostada aos avisos da junta alinhados no expositor.
Estranhou as lojas renovadas que pareciam ter todas o mesmo número que se
destacava nos avisos colados nas portas. Dezanove. Todas fechadas, todas à
espera, todas dezanove.
Preparava-se
para introduzir o cartão quando ouviu vozes. Olhou novamente a praça. Ninguém.
As janelas das casas mais próximas permaneciam fechadas…
Mas os sons
tornaram-se mais nítidos e ele caminhou na sua direção.
- Meu caro
Sebastião, tem toda a razão. Este silêncio, este abandono é extremamente
necessário. Recorda-se por certo do que enfrentámos em 1918.
- Foram anos
duros, amigo Crispim. Para não falar da terrível doença que durante décadas
fragilizou a nossa população. Tenho ainda presentes as palavras do Cesário que
com dureza sábia perpetuou a perda de um dos seus… Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
- Sim… ainda
hoje lembro com orgulho os meus colegas que nas primeiras décadas do século
passado combateram com determinação essa enfermidade. Mas o que me deixa mais
preocupado são as nossas crianças! Veja aquela escola, sem elas perde todo o sentido!
- Sei muito
bem o quanto se empenhou na sua construção. Um edifício distinto! E à Beira
foram mesmo chegando notícias acerca dos prémios que foi oferecendo aos
estudantes mais esforçados.
- Mas o meu
amigo Sebastião não me ficou atrás. É sabido o quanto se dedicou ao
desenvolvimento do ensino por terras de Moçambique!
Curioso! Um
em frente ao outro, na terra que os viu nascer, numa conversa silenciosa que os
anos não poderão calar! Ciência e fé… e esta, nada que é tudo, a entrar na
realidade e a fecundá-la.
Voltou ao
multibanco e depois levou o dinheiro para casa, certo de que a praça já não lhe
parecia tão vazia. Certo de que o passado também assegura o futuro e de que o
saber persegue a esperança que sempre lhe abre o caminho.
Entretanto,
a praça aguarda. Em breve, chegarão outros passos, outras vozes, vencedoras.
50. Temos mesmo de ler isso?!
- Temos
mesmo de ler isso?!
Do espanto
do ouvinte o rapaz traduziu a resposta que julgou inconveniente.
- Mas para
que serve se não vou fazer exame?
Em tempos,
afastados tempos no tempo, houve quem riscasse no chão as linhas que o
desalento tecia perante o cruel e iminente apedrejamento. Também agora, sentado
na cadeira, agarrando aquelas palavras que a distância tornava ainda mais
duras, o ouvinte desenhava pequenos círculos no ambiente de trabalho, cercas
onde parecia estar encurralado. Ganhava tempo, procurava as palavras que melhor
contrariassem aquela ingratidão.
Levantou-se
e voltou segundos depois, trazendo numa das mãos um pedaço de madeira, o que
restava de um tronco cortado à medida.
- Para que
serve isto? – perguntou, levantando o toro para que todos pudessem ver do outro
lado.
Silêncio!
Alguns ligaram as câmaras, saindo da escuridão, como se para ver fosse
necessário ser visto.
- Para que
serve isto? – insistiu.
O rapaz que
tinha apontado as palavras como quem as quisesse julgar em praça pública
arriscou como se fosse óbvia e pueril a resposta:
- Para me
sentar.
Parecia-lhe
aceitável! Ali podia alguém descansar depois de uma longa caminhada.
- Para
segurar uma porta – riu-se ainda outro à distância.
- Para
queimar – acrescentou outro.
- Para
queimar ou para ser queimado? – reagiu o ouvinte que, perante o desentendimento
acerca do sujeito ativo e do sujeito passivo, explicou – ser queimado para dar
calor, luz e afastar os animais na noite escura… ou para queimar o que queremos
anular nas chamas ou até purificar.
Um deles
levantou a mão, queira falar, mas hesitava.
- No ano
passado, – acabou por dizer – vimos os moldes que serviam para fazer belas
peças de vidro…
- E?! –
disparou outro.
- Era de
madeira o molde, lembras-te?
O ouvinte
ficou entusiasmado, cada palavra era o molde da mais bela ideia! E continuavam
ainda os círculos no ambiente de trabalho, agora mais largos, ganhara algum espaço.
- E beleza,
haverá beleza neste pedaço de madeira?
Silêncio. Parece
que depende sempre de quem a procura.
- Sim, se
fizer com ele um instrumento musical… - interveio mais uma vez o rapaz sempre
hesitante. Por vezes, a nossa certeza não é a dos outros.
- Ou uma
bela estátua – concordou o ouvinte mais velho – capaz de narrar uma vida, de
restaurar a coragem do mais desanimado dos homens, de destronar o mais
arrogante dos governadores!
Notava-se um
certo desconforto nos olhares que chegavam da distância. Afinal, quando é que o
homem iria responder à pergunta inicial e deixava de fazer círculos.
- Ainda não
respondeu à minha pergunta! – reagiu o rapaz incomodado, qual miúdo com uma
pedra na mão e que precisava de um motivo para o arremesso tão desejado.
- Já alguém
leu este livro até ao fim? Tu já leste este livro até ao fim?
Aos poucos,
as câmaras esconderam os rostos e as pedras foram caindo das mãos derrotadas.
Só o rapaz
das palavras hesitantes se manteve às claras.
- Eu já li.
Claro que
sim.
Ele sabia
que as palavras também nos sustentam e que um estômago satisfeito não nos
satisfaz. Aí começa a nossa humanidade.
51. Inesquecível esta tropa chinela.
Percorri o corredor certo de que os
olhares atentos não me deixariam escapar.
Passei o
primeiro banco. Pacífico. Não quis olhar para o fundo do túnel à procura da
famosa luz porque ainda era cedo e, além disso, ao fundo do corredor, que
naquele momento me parecia um túnel, esperava-me meio batalhão de olhar
engatilhado. Ainda observei o banco de soslado – que me perdoe o autor das brincriações
– mas nada, nem um movimento na minha direção. As cinco meninas continuavam
sentadas, encostadas, e murmurando segredos quase de estado: tinha acabado de
passar um rapaz, por assim dizer, um pouco mais velho, talvez bom aluno… Mas
com certeza falavam das orações subordinadas, coisa bem menos complexa. Fiquei
descansado.
Mais dois
passos e encarei com outra menina que aguardava paciente quem ainda não tinha
chegado. Seria feliz esse que ela esperava tal o sorriso simpático com que me
saudou. Além disso, registei que tive direito a troca de olhar, pepita nada
fácil de encontrar, que confirmou a simpatia do sorriso.
Preparava-me
para chegar à esquina das tormentas. Era ali que os rapazes se concentravam,
por isso, previa correntes contrárias, ventos fortes, rochedos que barrariam o
meu caminho. O primeiro apanhou-me logo ao dobrar a coluna:
- Bom dia!
Gosto, gosto muito! A cor verde é sublime! Fica-lhe muito bem! Foi ideia sua ou
foi aconselhado?!
Toquei no
ombro do rapaz e agradeci o que não deixava de ser um elogio, certo de que só
assim convertia aquele indómito vento, qual Gama, enfrentando o horrendo Cabo
que afinal apenas precisava de contar a sua história de amor. Atrás dele
juntaram-se outros rapazes que também aprovavam a cor das minhas calças. Eram
agora seis! Observei-os mais de perto por breves segundos que permitiram sondar
a temperatura daquelas almas que ao primeiro olhar logo acalmavam a tormenta.
Mal sabiam que o verde das calças era o verde militar, o verde daquela tropa
que se preparava para marchar por veredas bem mais desafiantes.
- Deixem o
stor passar! – ouvi um deles dizer, enquanto abria os braços para forçar o
caminho.
- O teu
irmão já chegou? – perguntei a um deles.
Respondeu-me,
desviando apenas o olhar para um dos bancos mais afastado.
- Hoje
trazem mais borrachas para partir aos pedacinhos? - questionei,
surpreendendo, outros dois. Naquele momento sorri de forma discreta, senti-me
como o Anjo por eles já conhecido: não se embarca brincadeira/nesta sala
divinal.
Dirigi-me
depois ao banco mais afastado. No percurso, reparei que no rés-do-chão um outro
petiz me acenava vivamente, enquanto esperava pela professora de apoio. Percebi
que estava bem e continuei. Alguns passos à frente, encontrei mais seis rapazes
ligados às máquinas. Sentados lado a lado, inclinados e apoiando os braços nas
pernas, seguiam atentamente as imagens e soltavam risadas que procuravam
disfarçar o mais possível. Cómico de situação e de caráter, com certeza! Coisas
triviais, mas com imensa piada. A comédia sempre se alimentou de coisas banais!
Para os factos ímpares, supremos, guardamos a epopeia ou tragédia, que não tem
de ser uma tragédia!
Ainda ouvi
uma voz conhecida:
- Stor,
preciso de falar consigo!
Claro.
Falaríamos daí a pouco, com calma, tempo e espaço.
Avancei.
- Bom dia!
Preciso que venhas para a sala de aula. Vens comigo?
Primeiro
olhou-me intensamente, demoradamente, depois procurou as palavras que melhor
expressassem a sua discordância com o mundo. Disparou todas as razões e só
depois resolveu pegar na mochila. Foi sinal bastante para reacender a
esperança. Ainda ouvi:
- Também
gosto muito da cor das suas calças!
Era uma
clareira por onde se via um imenso céu azul. O humor é um bom sinal.
A tropa
deixou por fim a parada e entrou na sala. Depois da chamada, verificou-se que
faltavam dois. Mas logo a sombra de um assomou à porta. Entrou, cumprimentou,
elegante no trato e no jeito de andar, dirigindo-se para o lugar. Pelo caminho,
acarinhou longamente com o olhar uma das meninas da turma. O amor é amigo da
esperança!
Ainda
faltava um que chegou pouco depois, rompendo pela sala como se a rapidez o
tornasse invisível.
- Bom dia!
Estavam
todos! Olhei o fundo da sala e reparei mais uma vez no insuflável e vazio
esqueleto pendurado na parede que, naquele dia, ostentava mais uma inscrição:
«tropa chinela». Sorri por saber que aquela gente se inspirava numa figura que
possivelmente conhecia algumas das suas histórias. Era uma espécie de bandeira
que os unia e inspirava.
- Tropa
chinela!
- Sim!
- Sentido!
Em frente, trabalhar! – arrisquei.
- Qual
sentido? O das palavras? – ouvi um deles perguntar lá do fundo.
Inesquecível
esta tropa chinela.
52. No tempo em que passam os caracóis
A Teresa entrou
na cozinha repentinamente, deixando escancarada a porta que dava para o
alpendre. Mesmo antes de falar, apontava já a razão do alvoroço que os olhos
arregaladamente sublinhavam.
- Mãe, está
um caracol no vaso!
Imediatamente
lhe agarrou a mão, conduzindo-a ao local indicado.
- É só uma
concha, vês!? – mostrou a mãe, enquanto retirava de entre as folhas da orquídea
aquela espécie de carapaça que mais parecia uma casa abandonada.
- Oh! O que
aconteceu? Onde está o Caracol?
A Teresa
atreveu-se a pegar também na concha que virava e revirava em busca dos
tentáculos que já não procuravam o Sol.
Entretanto
já o Mateus e a Clara se tinham aproximado e assistiam divertidos ao desalento
da mais pequena.
- Teresa, há
pouco, eu vi um caracol passar por aqui – intrometeu-se o Mateus. Acho que
deixou a concha na oficina e volta mais logo.
- Não viste
nada, ninguém vê os caracóis a passar! Muito menos sem a concha! – protestou a
Clara.
- É verdade!
E o Mateus
foi desembrulhando as ideias que chegavam da imaginação prontas para a
brincadeira:
- Reparem.
Veem este buraquinho aqui? É preciso consertá-lo. É como ter uma telha partida,
o caracol não pode viver com segurança nesta concha. Por isso a deixou ali no
vaso.
As irmãs
pareciam convencidas. Pareciam.
- Mas tu disseste
que viste passar um caracol! Não acredito! Como sabes que era o dono desta
concha? Por acaso viajava sem concha? – protestou a Clara.
- Para onde
foi o caracol, Mateus? – perguntou a Teresa.
Perante a
breve hesitação do irmão, a Clara foi conclusiva:
- Ninguém
tem tempo para ver passar um caracol, Teresa. O Mateus está a mentir! Não viu
caracol nenhum.
Mais ao
fundo, sentado à mesa que sabia aproveitar a sombra que o ácer mais próximo lhe
oferecia, estava o pai. As palavras da Clara tinham-lhe assaltado o ouvido e
por ali ficaram como o eco que se prolonga entre as montanhas: ninguém tem
tempo para ver passar um caracol! Será ele assim tão demorado ou será da
urgência em que vivemos?
O pai por
momentos pensou que seria uma estupidez ficar parado, vendo passar um caracol.
Por momentos, pois logo de seguida invadiu-o a ideia de que o problema não era
esse.
Talvez ver
passar um caracol seja o mesmo que ver as pétalas que se abrem quando o Sol as
acaricia. Ou ouvir a nascente que percorre o incipiente leito tocando as
pedras, como os dedos que percorrem as cordas afinadas. Ou seguir o rasto das
letras alinhadas que página a página dão corpo a uma história a que o tempo
nunca deu tempo. Coisas da imaginação! Demoram como demora o caracol. Mas a
verdade é que não sabem que demoram. Só os apressados sabem que demoram, sempre
com urgência de estar onde não estão. É preciso restaurar esta demora, agraciar
esta lentidão!
- Pai!
A Teresa
trazia na mão a concha abandonada pelo caracol. Queria saber se o Mateus tinha
razão. Se aquela conha estava no vaso para ser restaurada.
- Sim,
filha. O Mateus tem razão. Vês aqui este buraquinho? É preciso consertá-lo para
que o caracol não tenha frio no inverno.
- Sim –
concordou a Teresa – e não entrem formigas.
- Achas,
Teresa! – Discordou a Clara. – Às tantas vão as formigas fazer cócegas ao
caracol!
O pai olhou
alguns segundos o filho pedindo-lhe apoio.
- Teresa –
avançou o Mateus -, o caracol que eu vi levava uma concha emprestada, mais logo
volta para levar a dele. Vamos colocá-la de novo no vaso.
A Clara
segui-os desconfiada.
O Pai
permaneceu sentado à mesa, certo de que aquelas demoras eram as que menos
atrasavam. Ainda reparou no sorriso divertido da Inês que tinha
assistido àquele diálogo. Não tinha emenda!
53. Conversa afiada
Entrou na
caixa, conduzido pela mão que levantou suavemente a cobertura, e aconchegou-se
no espaço livre ao lado dos colegas de ofício.
- Encosta-te
a mim, deves estar um pouco tonto de tanto balançar naquela folha.
- Desfaço-me
para dar cor àquelas formas!
- Eu cá
prefiro os traços contínuos. Detesto que me façam andar para trás e para a
frente, nunca sei para onde vou!
Assim
falavam o verde escuro e o verde claro, lado a lado na mesma casa. Aí
descansavam, após intermináveis viagens por desertos brancos onde sempre
deixavam um rasto de beleza.
- Olha,
agora vai o amarelo! Coitado! Vai diretamente para a composição! Nem sequer
passa pela aguça! – espantou-se o verde claro.
- Assim
rombudo enche mais depressa a forma do Sol – explicou o verde escuro.
- Eu prefiro
trabalhar bem afiadinho, o meu risco é mais delicado.
- Mas sabes
que perdes um pouco de ti sempre que te aparam?!
- E para que
quero eu permanecer inteiro?! Os inteiros nunca serviram para nada! Nunca
desenharam um sorriso, nunca sentiram o calor de um abraço, nunca acompanharam
uma lágrima, nunca cheiraram uma flor, nunca guardaram um segredo, nunca
preencheram um coração!...
- Pronto,
pronto, pronto! - convenceu-se o verde escuro, procurando acalmar o amigo verde
claro.
E ficaram
calados, enquanto observavam o colega amarelo que percorria o círculo e
acompanhava os raios quentinhos até ao telhado da casa. Repararam depois no
suspiro de alívio que deixou escapar ao voltar a casa, colocado ao lado dos companheiros.
- Para a
próxima não escapa! Tenho de passar pela aguça, já não tenho bico, calaram-me o
bico! – confessou divertido e orgulhoso. E logo adormeceu.
- O vermelho
disse-me há dias que todos somos importantes. Que não há cores melhores do que
outras… – arriscou o verde escuro. Perante o silêncio do companheiro, insistiu
– Nós, por exemplo, estamos em todos os desenhos. Não há um sem um pedaço de
natureza! Dizem até que o verde dá cor à esperança!
- Parece-me
bem: a natureza, quando promete abundância, veste-se de verde!
- E então?!
O verde
claro resistiu com segurança aos argumentos do verde escuro. Chamou ainda o
vermelho e o amarelo para se certificar de que naquela casa, onde todos tinham
lugar, não havia importâncias destacadas.
- É um facto
– reagiu o vermelho – até porque facilmente nos podemos unir para dar origem a
uma cor nova e surpreendente.
- Reparem no
lugar onde encostam o vosso bico – pediu o amarelo.
Olharam com
cuidado. No topo da caixa havia marcas de todas as cores: o lugar onde cada um
agora descansava havia sido assinalado pela presença dos outros. Em cada lugar,
um pedaço das outras cores!
O espanto
foi suficiente para que o verde claro encerrasse a discussão, fazendo um sinal
discreto ao vermelho que não entendeu.
- Diz?
O verde
claro explicou:
- Agora és
tu. Acho que vai pintar o telhado.
Todos
sorriram.
Sabiam de
cor a forma daquelas casas felizes onde o Sol tinha sempre lugar.
Na casa
deles também.
54. Abraço!
- Pai, o que
vês para além deste dia?
- Vejo o que
fiz e prevejo o que não fiz.
- Hum, só
isso?
- Sim, tenho
memórias e projetos. O que faço hoje, ocupando o tempo que vai deixando de ser
futuro, torna-se passado, vestígio longo e permanente.
- Então vês
apenas aquilo que os teus olhos alcançam?
- Não,
filho. Através dos teus, alcanço outro horizonte que começa para lá do meu.
- Certo. E o
que vês quando me abraças?
- Nada,
gosto de fechar os olhos quando abraço.
- É melhor o
abraço?
- Sim, por
momentos, recusamos o tempo e, quando abrimos os olhos, regressamos mais fortes
para o enfrentar.
- Dás-me um
abraço?
-
Claro.
A cadeira
baloiçava levemente.
O silêncio
acariciava a brisa que tocava levemente as folhas das japoneiras.
- Pai, o
almoço está pronto.
Surpreendido,
olhou o filho, levantou-se e seguiu-o. Ainda pensou em falar-lhe sobre aquelas
coisas, mas o melhor era começar pelo abraço.
Fixou o
melhor momento: ao deitar, quando a noite nos segreda as memórias que
discretamente mistura com os sonhos.
55. Uma tenda no jardim
A noite tinha
chegado e havia espalhado pelo lugar a sua mantinha leve e brilhante. A lua
parecia um candeeiro atento que resgatava do escuro as mais belas flores do
jardim. O silêncio era agora o tempo dos animais: os cães uivavam notícias ao
desafio, as cigarras afinavam o interminável cânone e os gatos ronronavam
histórias de caça.
- A minha
lanterna, mãe?
A Clara
avistou-a rapidamente, antes mesmo da resposta pedida, e divertiu-se a fazer
círculos brilhantes no teto da sala.
- Clara,
essa lanterna é minha! – queixou-se imediatamente o Mateus.
- Não é
nada! A tua é a redonda! – contrariou.
Daí a pouco,
a Teresa seguiu os irmãos, que já tinham saído para o alpendre. Um pouco atrás,
testando a lanterna do telemóvel, avançou também a Inês.
- Pai, ainda
demoras? – protestou o Mateus que queria chegar depressa ao jardim da casa
vizinha.
Saíram.
O orvalho
afagava as ervinhas do caminho. Cada gotinha deslizava pelas pétalas e pelas
folhas, saciando a sede que o Sol tinha causado.
- Caminhem
pelas marcas dos pneus, para não molharem os pés – aconselhou a mãe.
Avançavam
como exploradores pela floresta desconhecida. Debaixo do braço, levava cada um
a sua almofada. Os mais pequenos abraçavam ainda um pequeno peluche - aquele
amigo destemido nas aventuras mais exigentes! As lanternas abriam oásis
claros no chão e por lá avançavam curiosos e a cada passo espantados com as
dádivas da noite e da luz.
- O que é
aquilo?! – assustou-se a Clara que comandava na frente aqueles argonautas da
noite.
Pararam
todos junto ao dedo esticado. As lanternas bailavam inquietas, varrendo o chão
em todas as direções.
- Não vejo
nada – reagiu o Mateus.
Era preciso
ver melhor, esperar alguns segundos para que os olhos ávidos de aventura
acalmassem e reconhecessem calmamente as formas que naquele momento ocupavam o
caminho. Um exército de capacetes redondos e castanhos fazia a longa travessia
do caminho.
Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar
Encolheeeeeeeeeeeeeeeer
Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar
Encolheeeeeeeeeer
Recolher
Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar
Encolheeeeeeeeeeeeeeeer
Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar
Encolheeeeeeeeeer
Recolher
Manter
O primeiro
dos caracóis tinha sentido vibrações estranhas no caminho e de imediato ordenou
que todos se refugiassem na concha.
- Olha,
Mateus, são caracóis! – apontou a Teresa.
- Tantos! –
assustou-se a Clara.
- Estão a
mudar de casa, – arriscou o Mateus – vão passar a viver no meio destes
agapantos. Não os pisem!
Por momentos
ficaram em silêncio.
Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar
Encolheeeeeeeeeeeeeeeer
Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar
Encolheeeeeeeeeer
Sentir
Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar
Encolheeeeeeeeeeeeeeeer
Esticaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar
Encolheeeeeeeeeer
O pai
avançou a coluna dos caracóis e todos o seguiram em direção ao portão bordeaux.
Entraram e pareceu-lhes que a noite se tinha tornado mais escura.
- É apenas
uma nuvem que passa e esconde a lua – descansou-os a mãe. – Daqui a pouco volta
a brilhar.
Pelo sim,
pelo não continuaram encostados, muito chegadinhos, até encontrarem a tenda que
nessa tarde os pais tinham montado no jardim.
- Esta é a
melhor noite da minha vida! – sussurrou a Clara.
- Tenho
medo! – disse a Teresa, enquanto agarrava a mão do pai.
As árvores e
os arbustos esticavam as sombras conforme a brisa lhes segredava.
- A tenda
está ao fundo do jardim. Venham por aqui – orientou a Inês.
- Porque é
que o avô não deixou as luzes ligadas? – lamentou-se o Mateus.
- Porque tu
disseste hoje à tarde que era mais interessante sem luzes, lembras-te?! –
espantou-se a irmã mais velha.
Passaram ao
lado do pequeno lago onde as rãs coaxavam para estranhar aqueles visitantes
noturnos. Algumas mergulhavam como se fossem vigias incumbidas de avisar as
outras, que permaneciam no interior do lago, aninhadas nas folhas calmas dos
nenúfares.
- Ouviram?!
– reagiu o Mateus.
- Devem ser
as rãs a mergulhar no lago. Tem cuidado com essa raiz – avisou a mãe.
Abriram a
tenda esticada entre japoneiras e áceres frondosos que deixavam no chão um
tapete macio.
- Este
quarto é nosso! – dividiu a Clara, agarrando a Teresa e a Inês – O quarto das
raparigas!
- Então e
eu?! – protestou o Mateus.
- Tu ficas
com os pais – afirmaram as três em uníssono.
Unidos os
sacos-cama, enfiaram-se as raparigas no super-saco-cama e o Mateus recolheu-se
discretamente satisfeito pela proteção que o espaço lhe garantia.
- Meninas,
desliguem as lanternas! – pediu a mãe. – Agora é para dormir.
De imediato,
ouviu-se um protesto vigoroso, mas sem sucesso.
Daí a pouco,
o silêncio já combinava com o sono a melhor estratégia para aquela noite na
tenda. Era preciso saber quem adormecia primeiro e quem seria o último.
- Que
barulho foi este? – perguntou a Teresa, que falava já entre pausas adormecidas.
- Dorme,
Teresa, não foi nada – segredou-lhe a Inês.
Os sonhos
foram acordando e a tenda foi adormecendo em silêncio.
Cá fora a
Lucky ainda se lamentava por ter tropeçado num dos fios da tenda.
Assegurando-se de que já ninguém falava no seu interior, distribuiu todos os
gatos pelos lugares escolhidos ao redor daquela estranha casa e advertiu-os
para que, ao mínimo sinal de perigo, miassem o código de alerta.
Aquela noite
era mágica. Todos os animais do jardim baixaram a voz e evitaram movimentos
desnecessários para não perturbarem aqueles inesperados inquilinos.
Aquela casa
era desmedida, do tamanho da imaginação, do tamanho dos sonhos, esse mundo onde
cada um recolhe os tesouros que tornam a vida mais suave e encantadora.
56. Cantiga chinela
(Tropa Chinela, pelotão dedicado e aprendiz)
A poesia
invadia a sala. Cada palavra chegava carregada de tempo e de espanto. Trazia rugas
nas voltas desenhadas e a história dos séculos no ventre de cada vogal.
- Digades,
filha, mia filha velida,
por que
tardastes na fontana fria?
Chegavam as
palavras fundadoras. Chegavam e não se reconheciam na descendência
reencontrada. Sentiam no corpo a perda de cada sílaba, a rebeldia dos sons
desaparecidos, a coragem dos sons alterados.
Repararam no
sorriso benevolente das meninas sentadas, longe das mães e das perguntas
prudentes que sempre souberam fazer. Perceberam que elas, as meninas, já não
apanhavam flores para pôr no cabelo a caminho da fonte. E sentiram-se fechadas
na sala, longe dos verdes campos da cor do limão, das fontes frescas, limiar de
vida. Percebiam-se despidas das melodias que outrora abraçavam as sílabas e dos
movimentos intencionais dos amigos que desafiavam as meninas para a dança. E as
fontes guardavam os segredos de cada encontro.
Os
amores hei.
Nesse
momento, também eu quis saber o que faziam ali aquelas palavras desamparadas e
quem as escutava nas suas conchas puras. Notei que alguns rapazes riscavam a
página, num vaivém incessante, qual sismógrafo, detetor de terramotos
interiores. Que segredos se escondiam nas linhas daquele lápis? E que perguntas
terão ainda as mães por fazer?
- Tardei,
mia madre, na fontana fria,
cervos do
monte a áugua volv[i]am.
Sorri,
porque um dos rapazes lá do fundo tinha percebido nestas palavras a
intemporalidade da resposta. O sorriso discreto e o ligeiro aceno bastaram.
Examinei, depois, secretamente, cada olhar e fui descobrindo as fontes onde se
perdem, onde se atrasam.
Os
amores hei.
As palavras
fundadoras avolumavam saber e espanto em cada brilho sentido. Com elas descobri
que as fontes estavam agora ao alcance dos dedos, em cada imagem publicada, em
cada comentário desejado, virtuais. As fontes estavam agora ao fundo de cada
corredor, onde o reencontro acontecia à hora certa. Bastava um olhar agarrado e
longo, um gesto incipiente, uma promessa contida - uma dança cujo ritmo só o
coração sabia marcar: cantiga de amigo.
- Mentir,
mia filha, mentir por amigo,
nunca vi
cervo que volvesse o rio.
As mães,
sempre madres! Ancoradas, à espera, no parque. Um olhar sagaz bastava para
desembrulhar o segredo. Percebi nestas palavras uma denúncia secretamente
satisfeita. Um abraço que prendia e apontava o caminho da evasão. Agarrava
porque investigavam as mães quem revolvia as águas do coração. Libertava porque
a água sempre procura uma fonte para ser nascente, arroio, rio, em busca de mar
– cantiga de amigo.
Os
amores hei.
57. Em terra de reis
- Pai! – a Clara reagia com surpresa
sorridente. Admitia que ele estava certamente a brincar. – Não é assim,
enganaste-te!
O pai continuou concentrado na
conversa que mantinha com o Mateus.
- E sabes explicar o provérbio?
- Claro… - afirmou o Mateus, incapaz
de esconder uma certa hesitação agarrada aos gestos, pendurada no olhar
descendente.
A explicação foi surgindo do escuro
como a lua em quarto crescente.
- Pai, não é assim! – insistia a
Clara que, percebendo o desencontro do pai, continuou – o provérbio não é
assim!
- Assim?! – estranhou o pai.
- Tu trocaste tudo!
Não tinha reparado nas gargalhadas e
nos olhares húmidos, brilhantes, que o rodeavam. E a sua seriedade tornava o
momento ainda mais hilariante.
- Em terra de cegos, quem tem um
olho é rei – disseram em coro.
- Foi o que eu disse! – defendeu-se.
- Não! Tu disseste: em terra de
reis, quem tem um olho é cego!
O pai sentiu-se na berlinda e sem
poder desmentir o trocadilho. Mas, paulatinamente, os comentários divertidos
foram perdendo a forma, abrindo o espaço necessário para que aquele ledo engano
tomasse conta do seu pensamento. Por momentos, lembrou-se do dia em que a mãe
lhe dera um casaco de duas faces, não tinha avesso. Podia usá-lo das duas
formas: às vezes, mostrava o verde seco, outras, o castanho claro. Sempre
macio, sempre quente.
Mas aquele provérbio não virava e
revirava da mesma forma. Às direitas, parecia inofensivo. Mas deixava algumas
dúvidas – gostava o pai de encontrar essa terra de cegos, essa terra onde todos
permaneciam distraídos, indiferentes, escondidos atrás dos seus limites.
Melhor, quereria muito conhecer esse rei que se atrevera a saltar a cerca,
apesar das limitações que o agarravam e afastavam o horizonte. Às avessas,
tornava-se assustador! Lembrava-lhe as árvores cortadas para não fazerem sombra
aos reis arbustos dessa terra onde quem via não podia ver. Felizmente o luar
também é para todos.
- Em que pensas, pai? – interrompeu
o Mateus.
- No provérbio, filho!
- Ainda?!
- Sim… A tua explicação é ótima!
Aproveita todas oportunidades, é por aí o sentido…
- Sim! E as minhas capacidades nunca
são uma limitação! Já sei.
O pai sorriu, acenou satisfeito,
reparando que a mãe não continha o riso.
- O Mateus só queria saber se sabias
traduzir o provérbio para francês... Mas, enfim, primeiro temos de entender-nos
em português!
Sem dúvida! E riram ambos com aquela
divertida embrulhada.
58. Conto contigo!
Foram
chegando de mansinho, discretamente. Os primeiros encostaram o nariz ao vidro
da janela e ali ficaram apertadinhos pelos que foram chegando depois.
Espreitaram, curiosos, para ver as meninas que se preparavam para uma serena
noite de sono.
A Teresa fez
uma conchinha, fechou os olhos, segurou o rosto com as duas mãos, sorriu e
adormeceu devagarinho.
A Clara não.
A Clara resistia, mantinha os olhos bem abertos, via para além do tecto as
aventuras e os sonhos que já não cabiam na sua imaginação e brotavam nos
movimentos que fazia com os braços e nas melodias aveludadas, quase inaudíveis,
que segredava ao unicórnio que abraçava carinhosamente.
Eles
continuavam à espera no parapeito da janela. Ainda não era o momento ideal.
Sabiam que só podiam entrar em caso de emergência e estavam treinados para os
longos saltos que encantavam os meninos e as meninas. As ovelhinhas e os
carneirinhos mostravam o nariz rosa e os olhos simpáticos que sobressaiam da
sua lã macia e branquinha.
Pouco
depois, a Clara recolheu os braços sob a colcha leve e quentinha.
-
Preparem-se! - ordenou o mais velho. - Já falta pouco. Quero movimentos
decididos! Os primeiros um salto só, longo! Nada de ficar a bisbilhotar lá
dentro. Entrar, saltar e sair. Voltam depois para o fundo da fila. Esta menina
dá sempre muito trabalho. Vamos ter de entrar e sair várias vezes.
- Quando é
que podemos dar cambalhotas? - perguntou uma das ovelhinhas mais novas.
O olhar
severo do chefe foi suficiente para travar aquele atrevimento.
- Agora! -
ordenou, ao reparar que a Clara tinha fechado os olhos.
O primeiro
carneirinho, experiente e concentrado, saltou por cima da cama da menina que
abriu repentinamente os olhos e bateu palmas.
- Boa! Agora
mais um!
O chefe
ficou desorientado. Não estava a dar resultado. Não era suposto que a Clara abrisse
os olhos naquele momento. Contar carneirinhos só de olhos fechados! Não estavam
preparados para aquela situação.
Esperaram
por uma nova oportunidade.
A menina
continuava à espera dos carneirinhos. Queria contá-los, um por um. Mas nenhum entrava
com receio de ser observado. Para os ver, bastava sonhar, bastava fechar os
olhos. A Clara sabia disso, por isso, por marotice, voltou a fechá-los.
- Preparar
salto! Entra! - ordenou o chefe ao segundo.
O Salto
longo e elegante do carneirinho foi novamente surpreendido pela Clara que se
divertia com aqueles amigos branquinhos que lhe espantavam o sono.
- Dois!
Ainda melhor! Como consegues saltar tão alto?! Mais um!
O mais velho
dos carneirinhos começou a ficar nervoso. Precisava de uma solução, mas
qual?
- Posso
tentar? - propôs uma ovelhinha que esperava no fundo da fila.
O chefe
chamou-a para ouvir melhor o seu plano.
- Tens a
certeza?! Quando regressares já não estaremos aqui! Temos mais meninos à
espera.
- Fico até à
próxima noite. Quando regressarem, volto para o grupo.
A ovelhinha
entrou no quarto, lentamente, suavemente, rodopiou, devagar, devagarinho... e
parou mesmo por cima do nariz da Clara.
- Três! Que
giro!... - comentou. Mas reparou que não se ia embora. - Então, vais ficar aí
parada?!
A ovelhinha
voltou a saltar e a rodopiar, lentamente, serenamente, devagar, devagarinho e
voltou a parar.
- Não tens
mais companheiros? Onde está o quarto?
A ovelhinha
desta vez não saltou, rodopiou três vezes, lentamente, serenamente, devagar,
devagarinho, fechou os olhinhos e … adormeceu.
A Clara não
queria acreditar. Abraçou-a carinhosamente e cedeu-lhe um pedacinho da sua
colcha e embalou-a lentamente, serenamente, devagar, devagarinho, fechou os
olhinhos e … adormeceu.
59. O Pai Natal e as renas um pouquinho aborrecidas
- Pai, vem
cá, por favor.
O Mateus
agarrou o braço do pai e conduziu-o até à janela.
- Repara! -
desafiou, enquanto apontava uma constelação brilhante no firmamento.
- Não me
parecem estrelas! – afirmou o pai. – Vês aquele brilho avermelhado?
Assemelha-se às luzes de um carro ou de um avião...
O Mateus
fixou alguns segundos a claridade estranha concentrada no céu.
- Até parece
um engarrafamento!
E ficaram
ambos presos àquela imagem, enquanto a noite fria crescia, espalhando o luar
que a tornava suave e transparente.
De repente,
o Mateus notou que o rádio fazia movimentos estranhos em cima da mesinha de
cabeceira. O fio que lhe servia de antena não parava quieto. Os números
vermelhos apareciam e desapareciam desesperadamente. Aproximou-se e sossegou-o,
tocando num dos botões disponíveis. Nesse instante, ouviu um sussurro:
- Só as
crianças poderão ouvir esta notícia. Repito, só as crianças poderão ouvir esta
notícia de última hora.
O Mateus
sentou-se então na beira da cama para acomodar o seu espanto.
– As
crianças são capazes de sonhar dias felizes, de lutar por eles – continuou a
voz inesperada. – As crianças sabem esperar, só elas sabem, verdadeiramente,
fazer de conta! Por isso, esta notícia é para elas.
O Mateus
reparou que o pai continuava espantado com o espetáculo de cores que invadia o
céu naquela noite.
- Soubemos
há pouco que o Pai Natal teve um problema: a rena mais velha, aquela que melhor
conhece os caminhos, ficou encandeada pelas luzes de um avião e, por isso, não
quer continuar a viagem. Para piorar a situação, outra delas quer abandonar o
trenó voador. Queixa-se de vertigens, que não consegue adaptar-se às alturas e
que prefere correr em terreno seguro. Também a mais nova de todas protesta
porque os chifres sintonizam as comunicações dos satélites e que, por isso, tem
andado muito confusa.
O Mateus
escutou atentamente a notícia e percebeu que o Pai Natal estava a ficar
desesperado:
- Josefina,
eu já disse que os teus óculos escuros estão quase a chegar. Sabes que, neste
momento, as entregas estão um pouco atrasadas. Por favor, faz um esforço!
-
Continuamos a acompanhar esta situação que se torna cada vez mais
delicada.
- Serafina,
as renas nunca tiveram medo de alturas! Por terra, nunca chegaremos a tempo!
-
Infelizmente, não vai ter sucesso: a rena continua a tremer, apavorada com as
vertigens.
- Albertina,
por favor, tu nunca me falaste dos satélites! Coisa estranha! Agora ouves
vozes!? Vá. Tens é de continuar a orientar-te pelas estrelas, são mais seguras
do que aquelas latas avariadas!
- O Pai
Natal está muito atrapalhado! É como ter três pneus furados! Uma desgraça! Uma
terrível desgraça! A manter-se esta situação, terá de encontrar
rapidamente uma alternativa.
O Mateus
levantou os olhos e reparou que o pai tinha abandonado o quarto. Procurou no
céu as luzes e reparou que lá continuavam formando círculos cintilantes.
Repentinamente, viu que três delas se dirigiam para terra como estrelas
cadentes. Depois, voltou a prestar atenção às palavras do rádio.
- Viva! O
Pai Natal parece ter encontrado uma solução para ultrapassar a resistência das
renas. Depois de um simpático diálogo, concordaram com a mudança de planos.
Josefina, Serafina e Albertina deixaram já os arriscados voos e desceram em
direção à terra. Vão ficar longe dos aviões, dos satélites e das alturas. Estas
foram as palavras finais do Pai Natal:
- Josefina,
vais com elas ao encontro do meu filho. Ele conhece todas as crianças que este
ano não vão passar o Natal em casa. Já que não querem acompanhar-me, vão
ajudá-lo. Podem esperar horas, dias, semanas… A vossa missão só termina quando
todas as crianças regressarem a casa. Pelo ar, só trabalhamos esta noite, por
terra, trabalhamos os dias que for preciso!
- O Pai
Natal segue agora mais devagar, mas a tempo de responder a todos os desejos. O
trenó deixou de fazer círculos e dirige-se às casas brilhantes. Sabemos também
que as três renas já aterraram e vão esperar que todas as crianças voltem a
casa. Sabem que o Natal não acontece sem o brilho do sorriso, sem uma lágrima
feliz, sem o abraço demorado e aveludado.
O Mateus
afastou-se do rádio e abeirou-se novamente da janela. As luzes eram agora quase
invisíveis e ele ficou muito feliz.
- Olha, já
não há luzes no céu – disse o pai que, entretanto, voltara ao quarto. –
Provavelmente, eram aviões à espera de autorização para aterrar.
O Mateus
sorriu, enquanto fazia uma pequena carícia ao rádio e lhe segredava:
- As coisas
que os adultos já não sabem!
Ficou feliz
por saber que nenhuma criança fica sem Natal,
que o Natal
não acontece sem o brilho do sorriso,
sem uma
lágrima feliz,
sem o abraço
demorado e aveludado.
As crianças
são capazes de sonhar dias felizes,
de lutar por
eles.
As crianças
sabem esperar,
só elas
sabem, verdadeiramente, fazer de conta!
60. Feliz ano novo!
- Pai,
quando vamos a casa da avó?
A pergunta trazia um vazio agarrado,
vinha vestida de saudade. Era um protesto sublinhado pelos olhos que o fixavam
intensamente.
- Já falta pouco!
- Quando chegarmos, posso dar-lhe um
abracinho?
O pai refugiou-se nos olhos da mãe
que ao lado também ouviu a pergunta da Teresa. Uma lágrima atreveu-se antes das
palavras.
- Que tens, pai?
Nada.
Não tinha
nada.
Desde quando
uma criança pede autorização para abraçar!?
Desde quando
um abraço carece de permissão?
Que afluente
duvida na hora em que se lança ao rio ou ao mar onde se confunde?
Que flor
tocada pelo Sol resiste à luz que a incendeia de cor e lhe muda a forma?
- Não tarda, poderás dar o abraço
que há muito guardas no teu coração.
- Eu sei, pai, é por causa do covid…
Não faz mal! - resignou-se a encantadora menina.
Palavras simpáticas, inteligentes.
Mas não traduziam a dor que lhe cercava o sorriso.
Os abraços
inacabados pesam nos braços,
enquanto
esperam pelos ombros reconfortantes.
Os abraços
imperfeitos aguardam o aroma,
a melodia da
respiração liberta de compassos.
- Venham cá!
– propôs o pai de braços abertos. – Eu e a mãe queremos desejar-vos um feliz
ano novo!
- Que nunca
nos faltem os abraços! – gritou o Mateus, no momento em que a Clara, a Teresa e
a Inês também desaguavam naquele abraço desmedido.
- E agora
todos para casa dos avós!
- Viva! -
festejou a Teresa.
61. História fora da janela
A Teresa aproximou-se, os olhos eram do tamanho de uma rede gigante. Era
impossível fugir-lhe. Trazia na mão uma pequena janela que o Sol nunca tocara.
Por ali, nunca a brisa suave e perfumada fizera caminho, nunca o canto dos
pássaros atravessara aquele vidro sensível. O Pai ainda recuou três passos na
esperança de não ser apanhado, mas logo sentiu dois toques no braço seguidos do
insistente vocativo:
-
Pai, pai!
Os óculos na
pontinha do nariz libertavam carinhosamente os olhos irresistíveis.
– Pai,
escreve aqui um papagaio, dois ratos, uma tartaruga.
Perante a
incompreensão do adulto, continuou:
- Aquela
história que eu vi no outro dia: um papagaio, dois ratos, uma tartaruga…
O pai
registou na barra de pesquisa as palavras mágicas. Cada uma era agora uma cana
de pesca naquele retângulo que parecia um barco na superfície do mar profundo.
Rapidamente, emergiram centenas de vídeos alinhados. Mas nenhum coincidia com a
memória feliz da menina.
- Não foi
esse que eu vi… nem esse…
Depois,
recolheu a esperança, fechou as cortinas daquela janela ambulante e retirou-se
desanimada. O pai segui-a com o olhar, questionando os motivos daquela
tristeza.
Onde se
escondia a tartaruga? Que céus atravessava o papagaio? Em que plano magicavam
os ratinhos?
Percebeu que
as palavras, na janela que a menina agarrava, atraíam como ímanes pedaços de
histórias até aí espalhadas por uma paisagem escondida. Mas nenhuma delas
satisfazia o desejo da pequena.
Agora
tentava ele. Era outro o mar onde mergulhava cada uma das palavras. Esperou.
Esperou mais um pouco. Era o reino da imaginação. Daí não emergiam senão
histórias desconhecidas. No reino mais próximo, o da memória, eram acolhidas as
histórias chegadas de fora, aí ficavam aconchegadas até que alguém as tocasse
com saudade. Mas, no reino da imaginação, cada palavra vivia na sua
desconhecida casinha de onde apenas saía para se juntar com as outras na praça
principal do reino. Como eram muito desorganizadas, nunca se juntavam da mesma
forma. Havia as apressadas, as atrasadas. As envergonhadas, as ousadas. Umas
chegavam agarradas aos séculos de vida, outras recém-nascidas, espantadas com o
mar de companheiras que a imaginação conseguia reunir naquela praça das
histórias.
O pai
esperava então que as palavras mergulhadas voltassem à superfície.
Repentinamente,
reparou que a tartaruga permanecia aconchegada dentro do meio pipo debaixo da
desfolhada tília. Hibernava junto às camélias que simpaticamente floriam no
inverno: era um simpático sorriso que rebentava, enfrentando o frio e as gotas
de chuva que tantas vezes vestiam a forma das lágrimas.
Os ratinhos
esperavam mesmo por baixo do meio pipo. Dali não saíam havia vários dias. Detestavam
a chuva que lhes ensopava o pelo e limitava a visão.
Foram eles
os primeiros a ouvir os ruídos que vinham do alpendre. Um ruído seco e
compassado que vinha das traves de madeira.
TOC TOC TOC
TOC TOC
TOC
TOC TOC TOC
TOC TOC
TOC
Então eles
chiaram e arranharam o fundo do meio pipo. A tartaruga entendeu a mensagem e
lentamente esticou o pescoço para observar a resposta.
- Temos um
problema – informou pouco depois.
- Conta-nos.
Corremos perigo?
- Parece-me
um papagaio, não precisam de ter medo.
- O que faz
ele no nosso alpendre? – protestaram os ratinhos.
- Não sei!
- O que
quererá dizer-nos com aqueles toques na madeira?
Fizeram
silêncio para voltar a ouvir aquela frase que ainda não fazia sentido.
TOC TOC TOC
TOC TOC
TOC
TOC TOC TOC
TOC TOC
TOC
- Amiga
tartaruga, observa melhor, sempre tens a carapaça...
- Mas que
mal pode fazer-nos um papagaio? Saiam daí, subam por uma das colunas de granito
e vão lá ver o que se passa.
Os ratinhos
aceitaram a missão e discretamente alcançaram as travessas do alpendre. O
papagaio não deu pela sua presença e continuou a bater com o bico na madeira.
TOC TOC TOC
TOC TOC
TOC
TOC TOC TOC
TOC TOC
TOC
- Para com
isso! Já acordaste a nossa amiga tartaruga! – protestou um dos ratinhos. – Se
continuares, corres o risco de atrair os gatos que andam sempre por perto.
- Amigos,
como é bom encontrar-vos!
- Nunca te
vimos por aqui!
- Eu sei.
Cheguei há pouco. Fugi da gaiola onde sempre vivi e voei, voei, voei sem parar
até chegar a esta casa…
- Mas porque
fazes esse barulho? Por nós bastava palrares.
- Não posso.
Alguém pode ouvir e apanhar-me…
- Pois então
é melhor não abrires o bico… De que precisas? Tens fome?
- Sim. Mas
neste momento preciso de ajuda para soltar estas cordas. Fugi com elas
agarradas às patas.
Os ratinhos
verificaram que as cordas estavam enfiadas num estreito orifício entre duas
traves. Dali não conseguia o colorido amigo sair sem ajuda.
- Nós vamos
roer a corda e em breve estarás livre para seguires viagem.
Rapidamente
os ratinhos cortaram as amarras para felicidade do papagaio.
- Obrigado!
Agora já posso ir! Nunca vos esquecerei. Vou tentar abrigar-me naquelas árvores
lá ao fundo. Se precisarem, serei o primeiro a chegar.
- Calma,
amigo. Ainda não mataste a fome! Desce connosco. A nossa amiga tartaruga guarda
pedaços de fruta que te vão dar força para continuares a tua viagem.
Pouco
depois, o papagaio abriu as asas e partiu palrando um feliz agradecimento:
- Obrigado!
Até breve!
O pai ficou
por momentos surpreendido com aquela história que lhe chegava inspirada nas
palavras que a Teresa lhe tinha deixado. Não resistiu:
- Teresa,
vem cá. Encontrei a história que procuravas.
A menina
reacendeu a esperança.
62. Joaninha, voa, voa
- Pai, hoje, vais escrever uma
história sobre o Pandinha, a Joaninha, o Unicórnio e o Passarinho!
- Vou?!
O convite da
menina trazia escondida a certeza da resposta e, por isso, não esperou o tempo
suficiente para que o pai encontrasse um obstáculo qualquer. Um daqueles
aborrecidos que sempre impedem o sonho e que nos amarram ao presente
descolorido.
Ficaram
aquelas criaturas, carinhosamente embrulhadas no nome dado, à espera de uma
oportunidade. A menina apresentara-as daquela maneira, recortadas, pedaços da
história onde as tinha encontrado, abandonadas junto à vontade do pai.
O Pandinha,
a Joaninha, o Unicórnio, o Passarinho!
Quem as
escuta? Quem
as recolhe,
assim,
cruéis,
desfeitas,
nas suas
conchas puras?
Que acaso as
uniu, assim, vestidas de pequenez aveludada?
O Pandinha
esperava pacientemente pela folha escondida no rebento que despontava no
poderoso tronco. Um pouco mais acima, uma Joaninha pousou e aí ficou. Nem as
antenas se moviam.
- Posso
ajudar? – perguntou lentamente o Pandinha.
Silêncio.
Aproximou-se
dela e suavemente orientou duas folhas onde permaneciam algumas gotas de
orvalho. Então, o líquido precioso percorreu a carapaça vermelha, levando
consigo o veneno azulado que a tinha atingido nos campos próximos dali.
- Obrigado!
– murmurou.
O Pandinha
sorriu honestamente e derramou sobre as Joaninha mais uma gotinha.
- Tens de
procurar outra terra. Tenho um amigo capaz de te ajudar.
E,
tranquilamente, aguardaram a chegada do Passarinho que só regressaria ao final
do dia para descansar no ninho que tinha construído nos ramos mais altos
daquela árvore.
- Todos os
dias, o passarinho percorre terras que os nossos olhos nunca alcançaram. Ficam
para além daqueles montes. Lá encontrarás um lugar onde as tuas asas serão
livres!
- Estarão
nesse lugar as minhas companheiras?
- Talvez…
Porque não foste com elas?
A Joaninha
não respondeu. Mas o Pandinha logo percebeu que ela tinha sido a última a
fugir. Nenhuma companheira tinha ficado para trás, presa nas folhas inundadas
pelo líquido perigoso.
- Chegou o
teu amigo! – reagiu a Joaninha.
- Não o
vejo.
- Está no
ninho – afirmou a Joaninha que tinha sentido a ligeira vibração provocada pelo
passarinho.
Daí a pouco
estavam juntos.
- Sim, vi as
tuas companheiras esta manhã. Voam brilhantes de folha em folha. Se quiseres,
posso levar-te até lá, ao nascer do dia.
E ficaram os
três serenamente em descanso. O Pandinha amigavelmente abraçado ao robusto
tronco. A Joaninha delicadamente adormecida numa suculenta folha. O Passarinho
cuidadosamente aconchegado no altaneiro ninho.
A Teresa
fixou alguns segundos o desenho que tinha deixado nas mãos do pai. Por fim,
reagiu:
-
Esqueceste-te do Unicórnio!
Estava
cercado por aquele desabafo triste.
- Ainda não
o encontrei… queres ajudar-me?
A menina
sorriu e libertou o pai, dando-lhe um abraço delicado.
E foram
ambos à procura.
63. Era uma vez uma rainha
Era uma vez
uma rainha bela e brilhante.
Caminhava
serenamente,
fixando o
olhar no infinito,
desenhando
um sorriso meigo e confiante.
Não levava
manto nem coroa,
apenas uma
flor
que, pétala
a pétala,
aveludava o
caminho de quem a seguia,
oferecendo a
cor arrebatadora,
a forma
admirável,
o perfume
inquietante.
Era uma vez
uma rainha bela e brilhante.
Falava
decidida palavras despidas,
não as
conhecia figuradas, mascaradas, disjuntivas…
Descia do trono
da simpatia,
abraçando a
diferença,
com sábia e
prudente ingenuidade.
E da vontade
inquebrável,
Das lágrimas
felizes nasceram novos rebentos
daquela flor
aveludada,
fascinados pelo Sol que os
acarinhava.
Era uma vez
uma rainha bela e brilhante.
No seu colo
era o reino.
Nas mãos as
portas de entrada,
Nos olhos as
torres de vigia
Onde o sonho
conquistava o horizonte.
14.02.2021
64. Sentidos adiados
A Pipoca
acordou quando o Sol lhe acariciou a carapaça. Era a primeira vez depois de um longo
e atribulado inverno. Vira-se ao espelho do gelo que cobria a superfície da
água. Sentira o embalo do vento que tornava as águas inquietas. Aguentara-se
com firmeza enquanto a chuva incessante provocava enchentes demoradas,
revolvendo-lhe a casa até às pedras onde se agarrava.
Mas o Sol
trazia agora a bandeira da paz e a natureza abria novamente as janelas,
soltando sorrisos coloridos, melodias ingénuas, incentivos aos filhotes que se
atreviam ao primeiro voo. As folhas rebentavam nos ramos procurando a forma no
espaço.
- Félix! Que
bom rever-te! – saudou a Pipoca, quando levantou o pescoço para procurar os
vizinhos.
A caturra
manteve-se quieta.
- Félix! –
insistiu.
- Não vale a
pena! Está assim há muitos dias! Não quer falar com ninguém! – explicou o gato
Sonecas que passava naquele momento. – Vês aquela parede fina e transparente?
Foi colocada à volta da casa deles no início do inverno. Desde essa altura que
não os oiço cantar. Raramente saem do ninho…
- Terá sido
para os proteger do frio e do vento.
- Pensei o
mesmo. Só não percebi aquela tristeza calada e, por isso, procurei o velho
Vagaroso.
- O
Vagaroso! Já não o vejo há tanto tempo! Onde vive agora? O regador desapareceu
deste alpendre no final do verão…
- No tronco
daquela oliveira, numa cova protegida.
- Ainda bem.
E que te disse ele?
- Contou-me
que se deslocou até à casa da Félix, onde permaneceu alguns dias. Falou com
ela, com o Johnny e com a Gema. Mas nem a caturra nem os agapórnis souberam
justificar a sua tristeza.
O Sonecas
contou ainda que o velho Vagaroso não desistira. Observara-os durante algum
tempo e ficara alarmado, porque, mesmo nos dias em que as nuvens permitiam que
o Sol as atravessasse, eles permaneciam em silêncio, vagarosos, quietos. Mesmo
quando o mandarim que vivia a poucos metros soltava melodias de esperança.
Mesmo quando as melhores sementes chegavam pela porta da frente. Era como se os
sentidos estivessem encerrados por tempo indefinido! Quem lhes tinha roubado a
cor?! Quem lhes tinha capturado a voz?!
- Temos de
ajudá-los! – reagiu, por fim, a Pipoca. – O Vagaroso descobriu alguma solução?
- Sim, mas
teremos de ter muito cuidado.
Claro! Muito
cuidado! A Pipoca tinha ficado a saber que o motivo daquela tristeza escura
vinha daquela cobertura transparente. O que protegia os amigos do frio
encerrava-os numa prisão que só abria por dentro. E mais ninguém conhecia o
caminho da chave singular que descerrava a porta da alegria.
- Não
entendo por que razão aquele manto transparente os entristece!
O Sonecas
explicou-lhe então que, aos poucos, a Félix e os amigos deixaram de ver e de
ouvir claramente os vizinhos amigos que viviam nas árvores e nos arbustos. A
forma e a voz de cada um chegava filtrada por aquela barreira deturpadora. Além
disso, há muito que não se derramavam por ali os aromas encantadores,
vibrantes, libertados pelas asas livres, que cortavam os céus em acrobacias
felizes! Há muito que não partilhavam, pelo amoroso bico, as mais delicadas e
saborosas sementes com as fascinantes nómadas, essas aves que lhes ofereciam depois
as melhores histórias dos lugares que descobriam em cada primavera.
- Agora
percebo! – concordou a Pipoca.
- Quando for
tempo, falaremos com a formiga Teimosa. Ela trará as amigas e, em conjunto com
as minhas garras, cortaremos aquele manto. Tudo terá de ser feito com muito
cuidado. Não sabemos como irão reagir! Será uma avalanche brilhante e verde! A
cor, a melodia, o perfume, o calor, o sabor, todos confundidos! A sinfonia dos
sentidos!
- Olha! Não
é o velho vagaroso?
- Sim, está
a fazer-nos sinais. Vamos.
Em pouco
tempo foram as amigas aves desconfinadas e a brisa fresca incendiou-lhes as
asas e o canto brotou como um ramo tocado pelo Sol. Reaprendiam a voz de
cada sentido!
65. O silêncio que nos fala
- Pai, por
que razão levantas o rosto, fechas os olhos e sorris, enquanto procuras as
memórias da minha infância?
O rapaz
esquecera-se da inspiração longa e suave que, qual brisa suave, primeiro chega
ao lugar onde brotam as mais belas flores. O sorriso antecipava a forma singela,
a cor sincera e o perfume honesto de cada uma. Os olhos assim cerrados, como
farol nas costas bravias que observa quando há luz e é visto quando a noite
esconde o caminho, orientavam a viagem até essa enseada segura onde as memórias
aguardavam sossegadas. O rosto assim levantado parecia uma bandeira que se
erguia plena de gratidão e de satisfação!
Pai e filho
estavam agora atracados na mesma angra, unidos no que ficou desse tempo que os
amarrou para sempre ao mesmo cais. Sim, poderão partir, percorrer distâncias
diferentes, porque é maravilhoso ter onde chegar ou não saber onde se vai
chegar, mas é eternamente radical saber onde voltar, ter onde voltar.
- Lembras-te
ou não? - insistia o rapaz, aprendiz de adolescente, tentando domar a
voz que teimava em começar grave e acabar estranhamente aguda. Às vezes, sempre
grave, às vezes, sempre aguda, às vezes não sabia bem.
- Sim!
- É uma das
minhas memórias mais antigas... acho que tinha cerca de três anos! Tu pegaste
em mim, colocaste-me nesse cesto e passeaste comigo pela casa!
O pai
acenava concordante. Estavam os dois sentados lado a lado, unidos no mesmo
momento, tocados pelo Sol sereno que parecia satisfeito.
- Tens
também alguma memória da tua infância… que me queiras contar?
Tinha
várias. Aguardavam alinhadas, lombadas desejosas de proximidade, ávidas de
espaço que lhes acolhesse as histórias encerradas.
- Hoje é um
dia especial… quando tinha a tua idade… enquanto vivi em casa dos teus avós…
lembro-me bem!
- Conta!
O pai
regressou a essas tardes de Sexta-Feira e percebeu que ainda mantinham a cor
pesada, silenciosa, imponente. Havia nuvens que teimavam em juntar-se, ficando
cada vez mais escuras. O Sol aguardava. Eram quase três horas da tarde.
- A essa
hora, o meu pai aproximava-se, vindo do campo, onde acarinhava as flores que
anunciavam os frutos, e esperava junto à entrada da nossa casa. A minha mãe
vinha de dentro e ficava ao seu lado, os dois encerrados em profundo silêncio.
Depois, o meu pai tirava respeitosamente a boina. E, às três da tarde, soavam
dolorosamente as roucas sirenes das fábricas. Tudo parava! Terminavam as vozes
na rua, estacionavam serenamente os carros. Silêncio. Até os pássaros recolhiam
as melodias inocentes. Era um minuto longo. Um minuto sincero, enorme, que
ainda hoje me espanta!
O rapaz
procurava as melhores palavras para as ideias que aguardavam impacientes.
- Não
percebo… disseste que hoje é um dia especial?!
- Sim,
fundamental. Guardo aquele silêncio inspirador, que ainda procuro alcançar…
- Estás a
falar de Jesus?!
- Sim.
O pai
inspirou longa e suavemente, levantou o rosto, fechou os olhos e sorriu.
Regressava feliz daquelas memórias. Naquela Sexta-Feira, a humanidade
tinha-se reencontrado. Naquela Sexta-Feira, renascera a fraternidade que nos
justifica! Uma nova ordem que nos obriga a sair da nossa certeza, a repensar a
nossa grandeza! O amor alcançara uma nova medida, tendo vencido a crueldade que
o arrastara pelas pedras da Via Dolorosa.
Por fim,
fixou o filho e sorriu, reparando que já passavam alguns minutos das três. Tinham
feito silêncio naquela Sexta-Feira.
66. Não fujas, rapaz!
Olhou-os a
todos como as pétalas que gentilmente abraçam o Sol. Só no silêncio
acontece um abraço assim!
- Hoje vamos
ler?
- Sim.
A resposta
satisfez a pergunta, mas vinha carregada de inquietação que logo
transbordou:
- Estás
bem?
Os olhos
encontraram-se, no momento em que a pergunta descia da curva lá no alto, e
a rapariga acenou afirmativamente, deixando fugir um
ligeiríssimo sorriso. Sentia-se mais confortável: as interrogativas
palavras eram como uma mantinha quente e macia onde nos encolhemos para
ouvir a nossa história preferida. Sim, podia ser, a chuva e o
frio sintonizam a escuta!
Daí a pouco,
a narrativa escolhida e partilhada brotou do fundo dos ecrãs, O caminho para
a verdade, e o seu fresco aroma invadiu a memória daqueles adolescentes
que se mediam com a grandeza daquelas palavras e com a estranheza dos
atos contados.
Paulatinamente,
foram surgindo as palavras por onde emergiam os pensamentos até então agarrados
à história do Matias e do Ricardo. O primeiro, enquanto caminhava, chutou
uma pedra que quebrou o vidro de uma janela. Num ápice, fugiu,
deixando o amigo nas mãos do dono da casa que, injustamente, o
acusou. Mas, no final, venceu a consciência feliz de Matias
que resgatou o amigo do castigo paternal. A
partilha não tardou.
- Podes ler
a tua reflexão, por favor? - pediu o professor.
Sim, podia.
Levantou os olhos ainda uma vez antes de os agarrar às palavras escritas. Era
como pedir licença para falar, abrir uma porta para
deixar passar o pensamento que o atormentava:
- … enfim,
fiquei espantado por não terem fugido os dois. O Ricardo foi um bocadinho
parvo, devia ter fugido também! Se fosse comigo, fugia de
certeza!
Bendito
conto que os fazia falar assim, pensava o professor. Silêncio e
escuridão - e nada mais! foram as palavras
que lhe surgiram depois e vinham ameaçadoras da
névoa que se apoderara da sala. O silêncio nascera no olhar dos
companheiros de turma. Mas o professor, também ele, naquele
momento, paladino do amor, continuou à procura, dentro daquele
palácio encantado:
-
Fugias?!
-
Fugias?! Fazias o mesmo connosco? - exaltou-se uma das
colegas da turma.
O rapaz
circum-navegou em torno daquelas ilhas que o fixavam, formando um arquipélago escarpado onde
não podia aportar.
- Não, claro
que não! - continuou, procurando uma enseada.
O silêncio
permanecia acusador. Então, tal como o Matias, o rapaz
repensou a sua posição:
- Pensando
bem, talvez seja melhor assumirmos a responsabilidade das
asneiras que fazemos! Não está certo que outros sejam castigados por nossa
causa!
O silêncio
continuava, mas, naquele momento, espantado com a mudança. Afinal
havia luz naquele palácio!
O
professor respirou fundo e revisitou as palavras do nosso sábio
épico, alinhadas em redondilha - afinal, para alguns, anda o mundo
concertado.
67. Pontos cordiais
O rapaz
interrompeu a palavra que alinhava com muitas outras na esperança de acompanhar
o pensamento que ainda organizava. Depois, levantou a voz e o olhar para,
delicadamente, colocar a dúvida:
- Aqueles
pontos… norte, sul… este, oeste… como os designamos? Pontos cordiais, certo?
Deixei que o
silêncio voltasse. Apenas o meu sorriso maravilhado chegou como resposta. E,
por momentos, fiquei abraçado àquelas palavras pelo brilho inesperado que
emanavam.
O que sabia
aquele rapaz sobre pontos cordiais?
A pergunta,
teimosa, caminhou depois na minha direção
e obrigou-me
a buscas pouco usuais.
E, enquanto
os meus olhos vagueavam perdidos pela sala, soltei as amarras.
Tarefa
árdua, pois precisava de encontrar
aquela
bravura que não me deixa perder
nas estradas
mais tumultuosas,
que não me
abandonava desorientado, desnorteado.
Aquela
bravura que me leva para o sul,
caminho sempre
incerto da descoberta.
Aquela
bravura que me agarra às estrelas
quando o Sol
se esconde e me rouba o horizonte.
Serão
cordiais os pontos cardeais?
Para quando
o desejado abraço entre o Norte e o Sul?
Para quando
o reencontro,
há muito
avistado da gávea do sonho,
entre o
Ocidente e o Oriente?
Serão
cordiais os pontos cardeais?
Se todos
partem do centro que os une
porque
mantêm a frieza da distância que os afasta?
Entretanto,
um sussurro fez-me reparar que um dos colegas lhe segredava a resposta. Então o
rapaz, divertido com o trocadilho, de imediato, voltou ao trabalho. Eu mantive
o meu sorriso agradecido como resposta.
68. No reino das esperas
O pai ouviu
o pedido, enquanto colocava na mesa a última colher junto ao prato da Teresa. Irradiava
pela sala um aroma sorridente, onde a esperança conquistava sempre um novo
alento.
- O jantar
está pronto! – ouviu novamente.
E as
palavras voltaram a percorrer o espaço à procura dos ouvintes derramados pelo
sofá.
Pouco
depois, retirou da torradeira o pão estaladiço, concordando com Cesário, pois
também achava aquele cheiro salutar e honesto.
- O jantar
está pronto! – exigiu a mãe, como quem faz um ultimato.
Mas o
silêncio continuou sossegado.
- Podes ir
chamá-los, por favor?!
O pai
abandonou então os alexandrinos realistas e procurou os filhos que permaneciam
tranquilos, como se não houvesse mais ninguém à sua volta, como se o mundo
terminasse no limite do sofá e a partir dali fosse o infinito, mares
secretamente navegados!
- O jantar
está pronto! – repetiu.
- Há sopa? –
reagiu a mais nova.
Ao aceno
afirmativo opôs-se o exército desalinhado com dramáticas caretas. Era como se
os mandassem para uma trincheira de colher na mão prontos para o combate que
não queriam ter!
- Podem vir,
por favor?
- Diz? –
pediu a mais velha como se tivesse acabado de chegar, afastando ligeiramente um
dos fones.
- Vamos para
a mesa!
- Já vou! –
prometeu a Clara.
- Vou já! –
concordou a Teresa.
- É para já
– garantiu o Mateus.
- Inês,
podes dar o exemplo? – tentou o pai, vendo que nenhum fazia justiça às
palavras.
- Já lá vou!
– respondeu numa variante que garantia alguma esperança.
O pai ficou
a olhá-los, espantado com a transgressão: o advérbio, habituado a uma séria
disciplina temporal, tinha sido semanticamente despido. Estava lá, encostado ao
verbo, mas nenhum deles se levantou imediatamente, no mesmo instante em que o
proferiu!
Era ali o
Reino das Esperas, onde as palavras depunham o seu sentido. O tempo não
avançava nesse lugar, onde também não entrava o aroma do pão quentinho e
estaladiço! Era o reino do menino Eparajá e das meninas Javou, Voujá e Jalavou
que tinham a graça de nunca ir na hora certa. Iam sempre depois, um tempo que o
regrado compasso do relógio desconhecia, um tempo abusador das paciências
maternais e paternais.
Como passar
o profundo fosso daquele castelo? Como abrir a sua robusta porta para libertar
aqueles cativos? Como resgatá-los do Reino das Esperas?
- Oh!
Mãe!
- Não faças
isso!
- Só faltam
dez minutos!
- Mãe, não
desligues, por favor! – suplicaram em coro.
Tarde
demais. A televisão tinha sido silenciada e o acesso à Internet era agora uma
frágil e intermitente luz verde. O cerco ao castelo do Reina das Esperas tinha
bloqueado os bens de primeira necessidade, obrigando os seus habitantes a uma
rendição forçada.
-Está bem,
nós vamos! – concordou o Mateus, que se levantou para seguir as irmãs.
O pai
avaliava aquela admirável estratégia de guerra e o seu rápido resultado.
- Ajudas a
Teresa, por favor!
Claro que
sim! E preparou-se então para a batalha seguinte, a sopa estava servida!
- Teresa,
posso contar-te uma história?
Os olhos
brilhantes foram resposta suficiente.
E a sopa
sabia a sonho, a paisagens inesperadas. Era uma vez no Reino das Esperas… Era
uma vez o reino do menino Eparajá e das meninas Javou, Voujá e Jalavou… A mãe
deixou escapar um sorriso discreto. Aquele cerco ao castelo dos amuos também
lhe pareceu eficaz.
69. Pai um pouquinho beterraba
Tinha
chegado o momento! O rádio despertador marcava sete horas e cinquenta minutos.
Estava na hora! Levantou então os olhos e enfrentou determinado o quarto de
vestir que ainda permanecia na penumbra. Ligou todas as luzes e as cores
despertaram, surgindo da sombra, alinhadas, dobradas, cintilantes.
Os cabides
faziam já o habitual número matinal: agarrados ao varão principal, suportavam
tempo sem fim o peso das camisas e das calças, uma espécie de halterofilia ao
contrário, onde os alteres se divertiam, tentando chegar ao desejado chão.
Pretendiam os cabides impressionar as vizinhas estantes. Coitados! Os mais
velhos bem sabiam que elas eram inatingíveis, por mais belos e musculados que
fossem os mais novos. Inevitável coita de amor!
As altivas
estantes passavam o tempo a fitar as tentadoras gavetas. Era aí que permaneciam
os segredos que elas tanto queriam desvendar. Por onde teriam andado aquelas
festivas gravatas carinhosamente enroladas e colocadas no seu almofadado
quadrado de onde só saíam uma ou duas vezes na vida? E o laço!? Esse brioso e
alado vizinho que percorria as festas e festins lá no alto onde tudo podia ver
e ouvir! E os cintos numa espiral sempre prontos para o caloroso e demorado
abraço! Mais furo, menos furo, sempre uma preocupação!
Mas havia
uma gaveta que permanecia um pouco aberta, era a mais próxima do chão. Não
corria muito bem, talvez por ter envelhecido mais depressa, as articulações já
não eram tão ágeis, encravava, fechava aos soluços, e era várias vezes
empurrada com os pés! As estantes chegam a ter pena dela. Além disso, guardava
as peças que eternamente esperavam conserto, por uma linha que lhes cosesse os
orifícios do ofício. Eram meias de todas as cores e de todos os tamanhos. Meias
sem par, que já não queriam nem podiam ser ímpares, uma tristeza! Dali, não
havendo conserto, saíam para terras distantes que nem as curiosas estantes
conheciam.
Pegou então
nas calças que permaneciam no primeiro separador do cabide e, com a mão
disponível, alcançou a primeira camisa que da cruzeta mais alta se mostrou
disponível. Incorporou-as e tudo lhe pareceu bem! Por fim, encontrou na estante
a camisola que naquele dia fazia todo o sentido: na véspera, a seleção tinha
abandonado gloriosamente, como sempre, o campeonato europeu, uma tristeza que
era preciso anular, envergando o alegre verde daquela camisola! Fazia sentido!
Tudo combinava! Até lhe veio ao pensamento uma daquelas formosíssimas palavras
que constantemente importamos: tudo fazia pendant! E repetiu divertido a
palavra que lhe rebentou nos lábios: pendant!
Desceu as
escadas como quem se dirige para o palco onde o expectante público o aguardava
impaciente. Já na mesa, escolheu o café e mostrou alguma preocupação com a hora
avançada. Por momentos, não percebeu que o silêncio geral era naquele momento
uma arma apontada. Observou mais atentamente os filhos, procurando encontrar a
razão daquela súbita quietude. E viu que em todos eles havia uma gargalhada
presa no olhar, prestes a rebentar. A Teresa foi a primeira a dar forma ao seu
espanto:
- Pai,
pareces uma beterraba!
- Também
acho! – concordou a Clara divertida!
Perturbado
pela surpresa da comparação, ainda procurou o apoio da bela mulher que ao seu
lado já o percorria de alto a baixo. Logo percebeu a gravidade da situação, era
mesmo uma beterraba! Afinal, nada fazia o tal pendant! Parecia um daqueles
quadros irremediavelmente mal recuperados!
- Não tens emenda!
A Teresa tem razão! Verde-escuro, verde-seco e cor de vinho! Francamente!
Ele ainda
pensou em contrariar, afirmando que era bordeaux, mas julgou melhor subir as
escadas e encontrar as peças e as cores mais acertadas, mais amigáveis.
Suspirou, enquanto heterónimas e certas palavras lhe assaltaram o pensamento.
Afinal, pensar é não compreender…. Por momentos, até pensou que estava doente
dos olhos, afinal era uma beterraba! As cores que na beterraba eram gala, nele
eram aberração! Enfim, o melhor é estarmos de acordo!
70. As escadas do sono
Todas as noites, antes de se
recolherem para dormir, os pais do Mateus passavam nos quartos para verificarem
o sono dos filhos, desligarem as luzes e os rádios. Uma espécie de revista
amorosa antes do descanso sereno.
- Ele teima
em cobrir-se completamente! – sussurrou o pai.
- Já sabes
que é por causa das melgas – justificou a mãe que há muito sabia que o Mateus
se defendia assim dos importunos insetos.
- Mas não
temos melgas cá em casa! – protestou.
A mãe
respondeu-lhe com um sorriso discreto, fitando-o de forma divertida.
- Melgas há
muitas…!
O pai não
lhe deu tempo de terminar a famosa tirada.
No dia
seguinte, durante o pequeno-almoço, o pai observou pausadamente a crescente
agitação dos filhos. As disputas ardentes sobre a posse do comando e sobre o
programa a ver daí a momentos. Não se entendiam!
- Mãe, posso
ver tablet?! – reclamou a Clara, prevendo a ineficácia dos seus argumentos.
- Não. Têm
de ver o mesmo filme! Os três! – determinou a mãe, olhando duramente o pai,
incentivando-o a intervir também. Mas a Clara não lhe deu tempo, intervindo com
agilidade:
- Já sei,
pai! É importante vermos o mesmo filme para depois falarmos sobre ele…
- Sim, muito
mais saudável do que estar cada um no seu tablet a ver anúncios de chupetas
disfarçados de Uma aventura secreta em casa do Neto! – dramatizou o pai de
forma hilariante.
- Chupetas,
pai! – resmungaram a Clara e a Teresa. – Está bem, nós escolhemos um filme.
- E eu? É a
minha vez de escolher um filme! – insurgiu-se o Mateus, procurando o lado mais
grave da voz que teimava ainda em fugir para o lado mais agudo.
- Mateus,
fica mais um pouco – pediu o pai.
O filho
fixava o pão, encontrando nele um confidente. O único elemento à face da terra
que compreendia naquele momento a injustiça que o atacava constantemente.
Ninguém o compreendia! Ninguém o deixava falar! Nunca podia escolher os filmes!
Nunca podia escolher a ementa! E agora tinha de ficar ali a ouvir mais um
sermão!
- Mateus…
- Sim, pai!
Já te disse que elas já escolheram, agora é a minha vez! Não acreditas em mim!
- Não quero
falar sobre essa questão. Ouve. Por que razão cobres a cabeça quando te deitas
para dormir?
O rapaz
ficou baralhado com a inesperada pergunta. Mudou de posição na cadeira para
acomodar as melhores ideias e para que estas encontrassem a forma das palavras.
- Sabes que
não há melgas no teu quarto…? – antecipou-se o pai.
- Eu sei! É
por causa das escadas de madeira…
- As escadas
que levam ao sótão?! Mas conheces muito bem o que há no sótão: um quarto cheio
de luz, várias estantes com livros, uma secretária, uma cama… e trabalhos que
vocês foram fazendo ao longo dos anos… parece um álbum de recordações!
O rapaz
fixou novamente o pão. Não o comia porque precisava ainda de um amigo capaz de
ouvir, apenas ouvir. Depois disse, num tom de voz incrivelmente grave:
- Isso que
dizes acontece apenas durante o dia! À noite é muito diferente…
O pai
guardou aquelas palavras, palavras enormes. Um murro na certeza daquele adulto
que ficou sem argumentos. À noite subiam e desciam por aquelas escadas todos os
sonhos acordados, todos os sonhos adormecidos, todas as memórias, os futuros
todos, os passados todos…
- E se nós
voltarmos a colocar uma luz de presença junto às escadas? – propôs a mãe.
O rapaz
comeu finalmente o último pedaço de pão, tendo sentido que alguém o
compreendia. O pai ficou espantado com a eficácia da solução: a luz prolongava
o dia nas escadas e iludia a imaginação. Inspirou fundo e acompanhou os passos
do filho que se dirigia para a sala. Ouviu depois a normal discussão sobre a
posse do comando e a normal discussão sobre a escolha do filme. Olhou com
encanto a mulher e ambos perceberam que era durante o dia que tinham de cuidar
das escadas do sonho daquelas criaturas. Tudo o que à noite subia e descia
pelas escadas do sótão era preparado durante o dia. E eram eles os principais
encenadores. Todas as personagens que à noite ganhavam forma nas escadas do sótão
tinham também a sua marca. Importava é que fossem figuras felizes e que não
fizessem ruído ao passar.
71. O segredo das árvores
Da minha
janela, observei-as demoradamente.
Incomodava-me
aquela inclinação ordenada, como se todas quisessem levantar raízes e procurar
outras paragens. As copas semidespidas tinham oferecido ao vento do mar as
folhas que seguiam pelo caminho do sonho, rompendo as fronteiras daquela praça
cercada por edifícios quietos. Estes pertenciam à classe daqueles que hibernavam
longamente para despertarem nos dias quentes e longos. Nesse tempo, subiam as
pálpebras brancas e os retornados carros escondiam-se discretamente nas caves.
Observei-as
demoradamente.
Algumas
tocavam-se suavemente, cruzando os ramos, acariciavam-se as folhas, contando
segredos escondidos no rumor, no sussurro de cada movimento. Nunca conheci as
raízes, apenas a sua estatura. As raízes seriam fundas se lá no fundo houvesse
o que procurar. Outras permaneceriam à superfície, beijadas pelo orvalho, agarradas
à terra que as adotara.
Eram três os
canteiros, todos retângulos, dois deles siameses. As árvores eram seis,
alinhadas em dois tercetos, encostados ao limite mais soalheiro. A erva que os
atapetava estava seca, palha desolada. Aqui e ali, alguns tufos resistentes
ainda verdes.
A manhã
tinha despertado havia pouco. Ondas de orvalho dançavam divertidas ao ritmo da
brisa fresca e o Sol aguardava uma abertura para abraçar as árvores.
Foram
chegando, vários no tamanho, na cor, na raça, presos ao fio condutor ou livres
da trela que ali os conduziu. Brincavam, sorridentes latidos, dentadas
inocentes, esgaravatavam, perseguiam pequenas bolas irrequietas. Os cães.
- Olha, está
a fazer o número um! – espantou-se a Clara.
- Aquele
está a fazer o número dois! – apontou a Teresa.
E os donos
transeuntes, agora estacionados à volta do retângulo maior, observavam
atentamente as suas criaturas. Avaliavam gravemente cada movimento e
partilhavam sabiamente sérias informações.
Observei-os
demoradamente.
Alguns eram
ainda jovens, aos pares, agarrados, desgarrados. Numa das mãos a trela, na
outra o telemóvel que registava os melhores momentos daquele retiro matinal.
Outros, solitários, sossegavam os pensamentos, inspirando o fumo de um cigarro,
enquanto davam suaves pontapés nas pedras da calçada, nunca perdendo de vista o
seu protegido, por momentos, livre naquele retângulo seco.
Observei-os
demoradamente.
Alguns
minutos depois regressaram ao prédio que os viu sair, aliviadas e satisfeitas
todas as criaturas.
Mas as
árvores mantiveram o sussurro. Nem o canto dos pássaros viajantes, portadores
de histórias incontáveis, animavam a sua verticalidade. Continuavam à procura.
Continuavam à espera.
- O que
estás a ver, pai?
- Nada de
especial…
- Olha,
podíamos fazer um campo de futebol naquele espaço – sugeriu o Mateus, apontando
o retângulo maior.
- Podes ir
para lá jogar, se quiseres…
- Achas!? Já
viste alguém da minha idade neste jardim?
Olhei-o
demoradamente e fui percebendo o sussurro magoado e preocupado das árvores que
ofereciam ao vento do mar as folhas que seguiam pelo caminho do sonho, rompendo
as fronteiras daquela praça cercada por edifícios quietos e cada vez mais
velhos.
72. A tarde clara e solidária!
O Sol tocava
as folhas dos liquidâmbares ainda verdes que brilhavam agradecidas junto ao
portão. Ao lado começava o estradão ladeado por muros seculares, feitos de
pedra tosca agora aveludada pelo musgo. Aí se escondiam o som dos passos e as
palavras ditas pelos passantes, os que iam cantantes e vigorosos, os que vinham
cantantes e cansados. Alguns metros mais à frente, logo após uma curva
acentuada, o caminho findava para dar lugar ao campo largo e comprido.
Era aí que
esperavam as canas de milho. A bandeira que hastearam durante meses tinha sido
cortada e agora permaneciam alinhadas qual coro que aguarda o gesto melódico do
maestro. Segredavam sobre as espigas que irrompiam triunfantes da palha que as
envolvia, sobre os pássaros que as visitavam e a quem ofereciam alguns grãos em
troca das histórias que traziam de muito longe. Sobre os gatos que esperavam
horas junto das raízes, para, repentinamente, se lançaram num ziguezague
impossível, alcançando pouco depois a presa que tinham estudado
silenciosamente. Também se queixavam das inquietas toupeiras que lhes perturbavam
as raízes, deixando-as indefesas perante as investidas dos ventos mais fortes.
Quando
chegou à curva do estradão, já várias pessoas percorriam os carreiros de milho.
Em cada espiga uma paragem e os mesmos movimentos repentinos e sincronizados.
Juntou-se ao grupo depois de escolher um cesto para a recolha das espigas. Foi
acolhido afavelmente pelo olhar aprovador e satisfeito que todos lhe foram
oferecendo. Mas nunca as mãos pararam, nem quando as perguntas esperavam as
desejadas respostas. Falava-se da terra, da terra que sustenta, da terra que
envelhece, da terra que lamenta, da terra que vence, da terra que rejuvenesce…
Mas nunca as mãos pararam e os cestos repletos avançavam para os sacos
alinhados junto ao limite dos carreiros. Cada um no seu carreiro. Cada um à vez
no seu carreiro sempre que alguém se atrasava.
Procurou o
Mateus. Chamou-o. Reparou pouco depois que colhia espigas num lugar mais
afastado.
- Tão longe,
filho! – reagiu. – Não queres trabalhar junto de nós?!
- Deixa-o
estar – pediu a mãe.
O Mateus
dava os primeiros passos naquele baile manuscrito entre as canas de milho. Por
isso, preferia os lugares mais recolhidos como qualquer debutante menos ousado.
- Mãe, estou
cansado! – queixou-se depois de se ter aproximado. – Posso ir para casa?
- Não! Tu
consegues! Só vamos para casa quando acabarmos!
- Mas eu
estou cansado!
- Não podes
desistir, apanhas as que puderes! Verás que no final ficarás muito mais feliz
com a tua vitória! – exclamou o pai para o animar.
- Este é o
milho que damos aos nossos animais! É com este milho que faço a broa de que
tanto gostas! – afirmou convictamente o avô.
O rapaz
voltou então ao carreiro e aguentou até ao fim.
O campo
ficou com uma aparência despenteada, parecia o fim de uma festa, no cimo das
canas, a palha desalinhada, mantendo ainda a forma de cada espiga arrancada. A
poucos metros do campo longo e comprido, num espigueiro altaneiro, foram
recolhidas as espigas. Agora, era a vez do vento e do Sol.
Entretanto,
o Mateus já tinha percorrido o estradão ladeado pelos seculares muros de pedra
a quem contou os segredos que ouvira ou imaginara entre os carreiros de milho.
Ao passar por aí pouco depois, também o pai reparou que alguns pássaros
aproveitavam ainda os últimos raios de Sol e cantavam alegremente. Talvez
falassem dos filhos que cresciam, dos filhos que arriscavam a dureza dos
primeiros voos. Dos filhos que depois de se lançarem não podiam deixar de bater
as asas até regressarem ou até encontrarem um ramo seguro.
- Em que
pensas, pai? – perguntou a Inês que vinha um pouco mais atrás.
- Nada de
especial, estou feliz por todos termos colaborado!
A tarde
tinha sido clara e solidária.
73. Vírgula, mas chegas tarde!
- Pai, por
favor! Eu preciso de tempo! Devagar se vai ao longe… não é o que costumas dizer?!
- Vírgula, mas chegas tarde!
Há muito que o pai conservava esta
exclamação em ponto de disparo. Crescera com ela acomodada na zona mais
acessível da memória, sempre pronta como qualquer carimbo quadrado e
precipitado.
- Vírgula, mas chegas tarde! –
repetiu, perante o espanto do filho.
O rapaz conviveu com as palavras
alguns segundos, enquanto lançava no quadriculado mais uma das incógnitas
reduzida a xis.
- Espero que não me voltes a contar
a história da lebre e da tartaruga… - gracejou.
- Nem todas as lebres adormecem na
viagem! – reagiu o adulto prontamente.
O rapaz introverteu-se e alinhou
mais alguns números, perseguindo rigorosamente o resultado final, e não
respondeu ao pai que, segundos depois, desmantelou a sapiente muralha e
afastou-se. Pensou depois que nunca lhe tinham dito que participava numa
corrida, muito menos que havia tempo limite para percorrer as palavras e os
números arrumados em jeito de sabedoria encadernada.
Na sala ao lado, o pai também não se
sentiu descansado com as palavras que deixara nas mãos do filho. Pareciam-lhe,
assim atiradas, conchas impuras um punhal, um incêndio… Sentia
que o instantâneo também o dominara. Essa força indomável de uma linha de
montagem imparável, implacável. Parou algum tempo junto às fotografias que
presenteavam momentos felizes e regressou ao espaço do filho.
- Então, pai?! Não ouviste nada do
que te disse, certo?
O Mateus sabia que não. O pai estava
ainda preso ao lugar que os olhos já não alcançavam. Ou talvez não. Os olhos
abertos podem ver por fora, mas também podem ver por dentro. Quando se fixam e
se tornam ausentes, entram em modo memória, onde regressam às formas e às cores
que o tempo quis conservar, raízes de um presente que não se veem, que o
alimentam e lhe dão forma.
- Estava a dizer-te que não consigo
fazer estes exercícios todos… tu começaste uma fase, mas não acabaste… ficaste
aí a pensar…
O pai sorriu com a insistência do
filho, principiante adolescente, que o fazia regressar da memória em que também
ele fora tartaruga, atleta aprendiz do saber.
- Estava aqui a pensar que com a tua
idade ouvi muitas vezes dizer que devagar se vai ao longe, mas que podemos
chegar tarde…
O Mateus ouviu com curiosidade tal
conclusão adversativa e esperou pelo necessário desenvolvimento.
- Eu ouvi o teu protesto –
continuou. – Percebi muito bem. Em tempos também o meu pai temia que eu
chegasse tarde, se não corresse como a lebre. Contudo, um dia acabou por me
dizer que, na história da lebre e da tartaruga, a prova não era individual, era
antes uma corrida por estafetas. Cada atleta tinha de entregar o testemunho ao
seguinte… na verdade, a corrida não terminou com a chegada da tartaruga à meta.
Esta entregou e recebeu várias vezes o testemunho tal como a lebre. Importante
foi não parar, importante foi a entrega, essa dádiva plena de luz! Todos
fazemos o percurso.
O Mateus guardou aquelas palavras na
vertente mais acessível da memória, agora sempre prontas como um abraço
reconfortante. Levava o testemunho e não seguia sozinho, por isso, não chegava
tarde.
74. A profundidade das árvores
Por
momentos, o silêncio ganhou espaço no carro. O pai fixava as paralelas brancas
que acomodavam a viatura e lhe ditavam os limites. Tinha mergulhado numa
espécie de futuro que por momentos nos visita sem nunca se deixar
agarrar. Imaginava já as agendadas tarefas que se acotovelavam para
aparecer. O Mateus seguia ao lado, calado e concentrado no exterior recortado
pela janela.
- Pai, olha
ali! – pediu o rapaz.
Não precisava
de apontar. O pai sabia muito bem o motivo do espanto.
- Muito
corajoso, Mateus. Com esta chuva, logo pela manhã… registo com espanto o
sacrifício daquele homem!
- Oh! –
reagiu o Mateus, acompanhando a interjeição protestante com um acentuado encolher
de ombros. Ainda se voltou para trás de forma a ver mais uns segundos aquele
quando matinal.
O silêncio
voltou. As árvores despediam-se das últimas folhas que apanhavam o sopro do
vento agitado e, baloiçando, chegavam suavemente ao chão. E os ramos lá ficavam
orgulhosamente erguidos. A perda não os inclinava. Aguardavam sabiamente pela
energia que vinha de dentro. Em breve, brotariam novas dádivas inspiradas pelo
Sol.
- Pai, olha!
Desta vez,
tocou-lhe no braço para que visse com atenção. O rapaz apontava para o canteiro
cuidado que verdejava à frente da porta principal de um hotel.
- Pai, olha!
– insistiu.
- Vejo uma
senhora que, pela forma como caminha apoiada à bengala, me parece bastante
idosa …
- Pai!... –
e novamente aquele clique aborrecido.
- Acho até
perigoso, os passeios estão muito escorregadios – completou.
O rapaz
calou-se e não mais desviou o olhar da janela.
O pai queria
contar-lhe uma história, mas não era ainda o tempo. Queria que ele percebesse o
mistério das árvores que sempre sabem onde agarrar as raízes. Que a altura
sempre lhes exigiu profundidade! E era admirável a forma como procuravam o
Sol!
Como poderia
dizer tais coisas ao filho?
O rapaz não
tinha observado o homem que passeava um cão, não dera atenção à velhinha que
custosamente também acompanhava um cão no passeio matinal… Interessava saber
onde se agarravam aquelas ainda frágeis raízes e para onde se orientavam os
ramos que imparáveis despontavam.
O carro
seguia ainda entre as paralelas brancas, aqui e ali, tracejadas, para permitir
a mudança de direção. Em breve, apareceria o edifício escolar. O pai continuava
a pensar nos quadros propostos pelo filho e lembrou-se daquele jardim que
visitara no Buçaco onde tinha visto uma minhoca que procurava atravessar o
carreiro de brita e terra seca entre os buxos. Debalde. À sua volta,
juntaram-se alguns transeuntes que lamentavam a qualidade do piso. Um deles
pegou carinhosamente no invertebrado e colocou-o sobre a relva macia. Algum
problema? Nenhum… Mas não guardaria este episódio, se não tivesse visto a
poucos metros uma criança que esticava a mão a quem passava. Quando lhe
perguntou se estava sozinha, porque andava a pedir, fugiu assustada… Também ela
atravessava um caminho rugoso... Revisitou ainda as palavras daquele rapaz que,
a meio de uma conversa, o tinha confrontado com uma certeza em forma de
pergunta retórica: …e a minha vida vale mais do que a de um animal? Nesse
momento, olhara-o fixamente e respondera-lhe que não tinha dúvidas, em caso de
escolha obrigatória…
Fixou novamente
as árvores. Admirou mais uma vez a sua altura e a sua profundidade escondida.
- Pai,
porque insistes em mostrar-me as pessoas quando eu te quero mostrar um animal?
– perguntou o Mateus, ao abrir a porta do carro, pronto para sair.
- Tens o dia
todo para pensar nisso. Mais logo voltamos a conversar. Fica bem!
75. Dores de crescimento
O rapaz
estava ensimesmado no sofá, esquecido das pernas e dos braços que mantinha em
posições acrobáticas. Conservava na cabeça o capuz para criar uma fronteira com
o mundo que todos os dias descobria qual alpinista destemido. Aterrara havia
pouco tempo, vindo do reino onde sempre vivera, um círculo perfeito, luminoso,
uma brancura ingénua e feliz. Agora percorria as ruas de um outro cheio de
cores e brilhos confusos, onde o branco parecia branco. Um labirinto onde, por
vezes, já não era uma vez. Sem volver os olhos, perguntou:
- Pai, ouvi
dizer que és um romântico, é verdade?
O adulto
olhou-o fixamente por momentos, em silêncio. Percebeu que não ia encontrar os
olhos do filho que acompanhava com algum interesse o decorrer de uma série
policial. Às vezes, encontramos nos olhos o caminho da resposta que as palavras
em ponto de interrogação não sabem antecipar. Arriscou então uma graça:
- Não me
digas que estás apaixonado?
O rapaz
reagiu com espanto à inesperada pergunta.
- Pai, não
fujas à pergunta. Alguém me disse que és um romântico. Só tens de me dizer se é
verdade?
Verdade?
Antes da resposta irromper agarrada às palavras, o adjetivo obrigou-o a considerações
que deixaram o rapaz impaciente.
- Sim ou
não?! - forçou.
Silêncio.
Podia googlar, mas a resposta seria despojada, desenraizada, sem passado, sem
compasso.… Por isso, foi aguardando, ora fixando o pai, ora acompanhando o
estado da narrativa policial.
- Significa
estar apaixonado? Pelo menos era isso o que me dizias há pouco… - tentou.
O pai
fixou-o novamente, deixando-o perceber a sua concordância. Mas o silêncio que
de novo se seguiu obrigou-o a mais uma aborrecida espera. O que dizer sobre o
amor àquele aprendiz? Essa inquietude extrovertida, em tudo sempre tão
contrária a si?
- Então?!
- Essa
palavra desmedida não cabe na nossa vida, filho! Não basta dizer sim ou não. Há
um passado que importa revisitar… para entender a sua força, o seu poder arrebatador!
- Pai, por
favor, não podes simplificar as coisas? – protestou.
Não podia...
o romântico emergia, imagem há muito guardava, retirando decididamente o
capacete que lhe reprimia os cabelos que naquele momento libertava, revelando a
sua forma, cor e beleza. De imediato, reviu a liberdade e a tricolor agregando
multidões e o povo e os povos. Num ápice, eis os românticos que levantaram os
heróis medievos, recuperando as suas façanhas, génese de fronteiras e nações;
eis os românticos que celebraram os homens que renasceram para as façanhas no
mar e os homens que as cantaram em verso e no palco! Os românticos que
perseguem um sonho, vivem intensamente as paixões que os definem e alcançam a
beleza que começa para lá daquilo que nos enleia e essa coisa é que é linda. Os
românticos que procuram reconstruir essa terra onde era uma vez!
- Pai,
queres ver o filme?! - convidou, desviando.
- Mas ainda
não respondeste à minha pergunta... - disse, sorrindo.
Era Natal,
começava Sozinho em Casa que sempre arrancava gargalhadas contagiantes. Mais
tarde voltariam às dores de crescimento.
76. Dispositivos no caminho
- Bom dia!
O rapaz
entrou na sala com a lentidão de quem tem de apanhar o autocarro que nos leva
de volta no fim das férias que nunca queremos terminar. Colocou a mochila em
cima da mesa e sentou-se. O professor observou discretamente estes movimentos e
reparou que os olhos dele ainda não tinham chegado. Percorriam ainda as felizes
paisagens interiores que se deixavam vislumbrar na curva que no rosto o sorriso
desenhava.
- Bom dia!
Desta vez,
os olhos do moço procuraram lentamente a voz que o saudava, igualando a maçada
de quem encontra um revisor, imóvel, ao alto, braço estendido.
- Podes
colocar o teu telemóvel no cesto, por favor?
Despertou.
- Sim,
claro, desculpe!
O professor
continuou serenamente a recolha, parando em cada lugar, aguardando o modo sem
som, só depois avançando. Sentia a responsabilidade das vidas assim recolhidas,
abafadas, estagnadas, algumas em modo de avião. Sentia ainda os tremores, as
vibrações protestantes.
-
Obrigado! - agradeceu, ao voltar para junto da secretária. - Peço agora a
vossa atenção para o trabalho que vou apresentar.
O rapaz
continuava ausente. Olhava fixamente o quadro branco e tamborilava
suavemente na mesa. Uma felicidade que só ele ouvia e que lhe escapava pelos
dedos inquietos.
- Também
posso ouvir? - murmurou depois de se aproximar o mais possível do rapaz.
-
Esqueci-me, peço desculpa, aqui tem – justificou, enquanto entregava os fones
sem fios que mantinha discretamente nos ouvidos.
Os trabalhos
avançaram. Era necessário recolher as palavras que se organizavam no texto
proposto, reconstruir o seu sentido, percorrer a beleza da sua forma. Nada
substitui esta viagem ao interior das palavras tecidas! Que paisagem conheces
tu, se te limitas a ver o que outros viram por ti? Agarra cada página como um
peregrino que percorre os caminhos até à luz! Não leias sobre o caminho, faz o
caminho! Então será teu o perfume das palavras, o canto das aves que te guiam nas
veredas, o sabor dos frutos que as árvores te oferecem, o calor de cada
parágrafo, cada passo que te leva!
-
Notificações?! – censurou.
Desta vez o
rapaz sentiu-se seriamente despido, desprotegido. Retirou e guardou o relógio smart
que deixou de lhe medir os batimentos e de atender aos seus insatisfeitos
desejos.
Avançaram os
trabalhos.
- Professor,
posso usar o meu caderno inteligente para registar as respostas? - atreveu-se o
rapaz, enquanto retirava da mochila um tablet.
- …
Importava
fazer o trabalho, que o peregrino fizesse o caminho. Cada um leva os sapatos
que lhe servem, que o servem, mas urge fazer a travessia, passo a passo, sílaba
a sílaba, página a página, até que, ao longe, se ergue a torre da conquista! A
caminhada deixa no corpo as marcas do caminho, sinais que brilham nas outras
cruzadas.
- Professor,
eu precisava de pesquisar informação. Posso usar o meu telemóvel? - pediu outro
rapaz sentado na última fila.
Não teve
tempo.
- Posso
emprestar-te o meu PC. Tenho-o aqui na mochila... - ofereceu-se o da frente.
Gargalhada
geral.
Não deixes
de fazer o caminho, peregrino. As palavras que te esperam desenham a senda que
só tu podes percorrer. Não as adies assim encerradas e transferidas. Leva-as em
cada dispositivo, mas atreve-te a conhecê-las, passo a passo, como quem mata a
sede na fonte que o caminho lhe oferece.
77. Abóbada
Estavam
todos na parada. Quase prontos, quase sempre prontos. A formatura ali exposta
pouco ou nada dizia da sua descompostura interior, do desalinho mais ou menos
visível. Impossível gostar deste texto! Quem se lembrou de nos pôr a ler uma
coisa destas!? Não sei como consegue, repara naquele entusiasmo!
Seguiam-se
os últimos capítulos da obra que juntos percorreríamos como o mapa de um terreno
que importava conhecer muito bem. E eu estava deveras entusiasmado. Mãos nas
palavras! Sentido! Ler as palavras! Sentido! Depois era necessário o grito
interior, individual e mudo, o pasmo de quem descobre paisagens inóspitas,
inesperadas, desafiantes.
“Um rei
cavaleiro”… “O voto fatal”…
Mas a
resistência permanecia visível na mão que apoiava o rosto, nos olhos
introvertidos e tristes. Algumas palavras pareciam rochedos
intransponíveis! E eram tantos que a viagem se tornava aborrecida e demorada. O
horizonte teimava em não aparecer. Nada pior do que a viagem que não permite o
horizonte. Apetecia-me dizer-lhes ad augusta per angusta! Mas seria ainda pior.
Mestre
Afonso mandou tirar os simples… a abóbada não caiu.
Eis as
pedras do nosso passado que nos obrigam a levantar a cabeça para as podermos
ver, admiravelmente suspensas, cantaria lavrada, impressões digitais da nossa
identidade, relatos de um passado que nos pertence, ousadia que importa abraçar
e alcançar!
A narrativa
chegara ao fim. Olhei-os novamente, enquanto as palavras continuavam o seu
caminho, revisitando com Herculano cada forma daquela épica construção. E,
nesse momento, percebi que cada um daqueles aprendizes era uma abóbada
suspensa, aguardando ainda a pedra de fecho. Trabalho sensível em torno de cada
nervura que os sustentava. Por enquanto, elevavam-se apoiados. E eu sentia-me
um dos simples, acalentando cada sonho cinzelado. Sabia da importância de cada
pedra escolhida, de cada leitura, de cada sorriso, de cada abraço, de cada incentivo,
de cada equação… Mas importavam agora as pedras de fecho! Que valor suportaria
cada pessoa que ali se levantava?
- Fazemos
agora os exercícios? -perguntou um deles.
- Sim.
Esta é a
melhor tropa chinela! Sei que pela vida fora um grito sempre os reunirá, sempre
os levantará, “A abóbada não caiu… a abóbada não cairá!”. Uma abóbada chinela
devidamente fechada pela amizade.
78. Leonor, Leonoreta,
já não vais descalça nem de lambreta!
As palavras
vaguearam pela sala, borboletas sensíveis em busca das flores dispostas e
entusiasmadas com o Sol. Tinha chegado o momento. Finalmente, Leonor passava
descalça para a fonte. Sustentava na cabeça o pote, na mão direita levava o
testo. Passava formosa, discretamente envergonhada, secretamente ousada.
Passava, ia para a fonte.
Observei-os
demoradamente junto àquele caminho verdejante, onde as palavras sussurravam nas
suas conchas puras e era preciso encostá-las ao ouvido para escutar o seu eco
distante. Traziam ainda as conversas na fonte, as promessas de amor, as
saudades do amigo ausente.
E Leonor
passava, ia buscar água. Mas ninguém parecia reparar nos pés descalços,
endurecidos, seguros em cada passada. Ninguém fitava o pote vazio,
ninguém apontava o duro esforço - chegar à fonte, encher o vaso, levar água
para casa!
E lá ia
Leonor. Trazia a saia de cote, a saia de todos os dias, sempre branca, sempre
pura. A outra, se a tivesse, aguardaria pelos dias de festa na ermida, no adro,
no largo, debaixo das avelaneiras floridas. As tranças d’ouro dançavam, fugindo
da touca que as agarrava. Ia linda, linda! Tão graciosa era a espantosa
formosura!
Olhei-os
novamente. Também formosos, inseguros todos, não iam descalços, não levavam o
pote, nem levavam o testo. Que graça lhes daria graça à formosura? Em que fonte
matariam a sede? Que segredos lhes confiaria Amor no canto sereno daquelas
águas?
Leonor?
Leonoreta?
Descalça? De
lambreta?
Leonor,
Leonoreta,
já não vais
descalça nem de lambreta!
As palavras
vaguearam pela sala, borboletas sensíveis em busca das flores dispostas e
entusiasmadas com o Sol.
79. Música para os nossos ouvidos!
- Há um
concerto no Centro Cultural no próximo sábado. Podemos fazer a reserva dos
bilhetes neste site.
O silêncio
do ouvinte provocou outra tentativa.
- Música de
câmara por solistas da Casa da Música… flauta, clarinete, trompa, fagote…
Meninas, também querem ir?
- Se vocês
forem, com quem é que nós ficamos? É à noite? – inquietou-se a Clara.
- Vamos
todos - arriscou a mãe sem hesitar.
O pai ia
reagir, mas não teve tempo. A mãe entregou-lhe o telemóvel para fazer a reserva
- há sorrisos irremediáveis. Iam ao concerto! A Teresa e a Clara abriram
os olhos de espanto. Alguém queria protestar?
Era a última
noite de abril. Chegava depois de um dia quente, brilhante. O jardim,
exuberante, deslumbrava os sentidos! A comunhão das cores, as formas limpas e
perfeitas, os perfumes intensos e puros, lugar onde os sons desalinhados
encontravam o compasso certo, a sinfonia sempre desarmante, debutante.
O auditório
mostrou-se acolhedor. E o silêncio era confortável, uma clareira onde as
melodias esperadas teriam feliz livre-trânsito. A Clara procurou o melhor lugar
ao lado dos avós. A Teresa encostou a cabeça ao ombro da mãe. Tudo
seguro.
Apagaram-se
as luzes. A sala era agora a câmara onde todos, felizmente, podiam entrar.
Nem uma
palavra, silêncio, música! E o palco conquistou o espaço e a poesia aconteceu,
agarrada aos sons que os instrumentos sabiamente articulavam.
A Teresa
escutava maravilhada. Fazia aquela expressão com os olhos quando, muito
abertos, ousam querer ouvir mais do que os ouvidos. E tiveram livre-trânsito
aquelas melodias. Vinham de longe, diálogos que no palco se cruzavam para
depois percorrer toda a câmara. Quatro vozes que contavam histórias, todas
tecidas pelo sopro e pelos dedos, fios que ondeavam e se enlaçavam para dar
corpo à maravilhosa peça que em todos se completava. E a Clara acompanhava,
envolta numa expressão séria, talvez intrigada com a vertiginosa agilidade dos
músicos.
- Gostaste,
pai? – perguntou a Clara já de regresso a casa.
Sim! Sabia
que a música, tal como a poesia, não se agarra apenas às biografias nem se
reduz ao olhar dos outros. Era também um percurso pessoal, uma descoberta. E
estava certo de que através dela chegava mais perto da beleza, do absoluto que
sempre buscava. Naquela noite, a humanidade tinha mostrado mais um pedacinho da
sua luz, da sua grandeza.
- Foi música
para os nossos ouvidos!
80. Uma formiga nunca vem só
O Mateus
desceu as escadas para anunciar com moderada preocupação:
- Andam
formigas lá em cima!
Deixou a
informação e dirigiu-se para a cozinha, sem dar tempo às perguntas. Ao
responder-lhes ficaria implicado na solução, por isso, decidiu abandonar a
sala.
O pai
levantou-se então e dirigiu-se ao local para observar a gravidade da situação.
Rapidamente
encontrou e reconheceu o pelotão organizado e determinado que atravessava o
corredor junto ao quarto do filho. Ao comando seguia a formiga Musculosa:
É sempre com
atenção
Que saímos à
procura
Da nossa alimentação,
Sempre de
forma segura.
No carreiro,
nos mantemos,
Temos sempre
onde ir;
É segredo
que nós temos,
Ninguém pode
descobrir.
Cada verso
era um grito de união marcado pelo ritmo acertado da marcha. E o pai já os
conhecia de outras visitas que a Musculosa tinha conduzido ao interior da casa.
Curioso, seguiu a fila para descobrir o objetivo daquela incursão. Um pouco
mais à frente, a Musculosa deu ordem para parar junto a uma folha caída,
amarrotada, esquecida ao lado da secretária.
- Cercar!
E todas se
alinharam à volta do objeto branco e liso, enquanto duas operárias o analisavam
com as inquietas antenas. Ao sinal afirmativo, a Musculosa avançou com a ordem
esperada:
- Levantar!
Rodar! Marchar!
E de novo o
ritmo cantado uniu as formigas em direção ao formigueiro.
É sempre com
atenção
Que saímos à
procura
Da nossa
alimentação,
Sempre de
forma segura.
No carreiro,
nos mantemos,
Temos sempre
onde ir;
É segredo
que nós temos,
Ninguém pode
descobrir.
O pai não
conseguia encontrar o motivo daquela escolha. Por momentos, divertiu-se com a
ideia de ter um pacífico exército ao serviço da limpeza geral. Depois ficou
novamente intrigado e observou a folha que as formigas orgulhosamente
transportavam. Haveria ali vestígios de açúcar, uma doçura invisível aos olhos
incapazes? Reparou melhor. Apenas algumas palavras bruscamente interrompidas
pelas dobras descuidadas, serrana bela… na esperança de um só dia… para tão
longo amor… E sorriu, deliciado com a ideia que naquele momento lhe
ocorreu.
Antecipando
o enorme problema que a Musculosa não conseguiria resolver, sem partir em
pedaços aquele tesouro branco, abriu a porta que dava acesso ao exterior da
casa e acompanhou de perto o seu regresso ao formigueiro. A Musculosa estranhou
aquela facilidade, mas não perdeu tempo, sempre era melhor assim. Seria um
enorme quebra-cabeças voltar a unir corretamente todos os pedaços daquela folha
preciosa.
O pai
observou-as ainda durante algum tempo, tentado também a marchar ao compasso das
palavras.
- Então, pai?
Já as encontraste?
- Sim. Penso
que está resolvido – respondeu. - Vi ali no chão, junto à tua secretária, uma
folha amarrotada…
O Mateus
estranhou aquela afirmação, mas acabou por confirmar:
- Sim, ontem
deitei ao lixo uma folha com poemas…
- Era só para
confirmar… sorte a das formigas…
O Mateus não
percebeu por que razão as formigas tiveram sorte.
Novamente, o
pai sorriu, imaginando que as cigarras teriam em breve companhia, palavras e
música unidas num só momento! Lembrou-se de mais palavras visíveis nas ondas da
folha, assi são os olhos do meu coração. Naquela noite, a formiga-rainha
seria agraciada com as mais nobres palavras!
- Havia, com
certeza, alguma coisa doce naquela folha!
- Acho que
não, pai, não costumo comer no quarto.
Era preciso
percorrer a folha, sondando cada milímetro, cada sílaba, cada verso, para
encontrar o mais ínfimo grão de açúcar, o contentamento que nos anima e mantém
no carreiro.
Ao longe
ainda se ouviam as formigas, quase, quase, a entrar no formigueiro. A Musculosa
ainda olhou para trás, parecia sorrir e agradecer aquele achado.
É sempre com
atenção
Que saímos à
procura
Da nossa
alimentação,
Sempre de
forma segura.
No carreiro,
nos mantemos,
Temos sempre
onde ir;
É segredo
que nós temos,
Ninguém pode
descobrir.
81. A formiga quase retida
A Musculosa
orientava as buscas naquela manhã brilhante e fresca. Seguia as indicações
partilhadas pelas batedoras e avançava com determinação.
Um
dois um dois
Nós
marchamos todas juntas
Um
dois um dois
À procura de
sustento
Um
dois um dois
Ninguém fica
para trás
Um
dois um dois
Ninguém fica
sem alento
Um
dois um dois
-
Alto!
A ordem da
Musculosa percorreu o pelotão que prontamente obedeceu.
Um
dois um dois
O perfume
que me encanta
Um
dois um dois
Vem por
certo desta flor
Um
dois um dois
Vou subir
por este caule
Um
dois
- Alto! –
gritou novamente a Musculosa, não conseguindo parar a formiga aprendiz que
naquele momento já se desviara do carreiro. O pelotão atónito segui-a com o
olhar.
Um
dois um dois
Ai que folha
tão macia
Um
dois um dois
Ai que cor
tão refrescante
Um
dois um dois
- Formiga
aprendiz, desce imediatamente! Temos de marchar todas juntas. Aí não encontras
alimento.
Um
dois um dois
Finalmente
cá no alto
Um
dois um dois
O perfume
aveludado
Um
dois um dois
É no chão
que caminhamos
Um
dois um dois
Mas no alto
é que alcançamos
Um
dois um dois
A Musculosa
estava já no limite da paciência.
- Formiga
aprendiz, volta para o teu lugar. Se não desceres, ficas aí até ao nosso
regresso, retida e só. Se não aprenderes a marchar, ficarás retida no
formigueiro e nunca serás a obreira que sempre sonhaste.
A formiga
aprendiz sentia o calor do Sol, enquanto percorria as pétalas inebriantes. Do
lugar onde estava o horizonte era inefável!
A Musculosa
não esperou mais. Deu ordem de marcha, não resistindo a comentar com as
aprendizes mais próximas:
- O que
prenderá aquela formiga no mais alto daquela flor?
Nenhuma lhe
respondeu. Todas queriam marchar. Todas queriam encontrar a sua migalha.
Mas a
Musculosa não se sentia segura. A companheira retida nas pétalas de uma flor
não podia ficar para trás.
- Alto! –
ordenou novamente, voltando ao compasso marcial.
Um
dois um dois
Nós
marchamos todas juntas
Um
dois um dois
À procura de
sustento
Um
dois um dois
Ninguém fica
para trás
Um
dois um dois
Ninguém fica
sem alento
Um
dois um dois
As
aprendizes ficaram ainda mais desorientadas, quando perceberam que a Musculosa
se dirigia a um dos caules mais próximos, ordenando que todas fizessem o
mesmo.
Um
dois um dois
O mais alto
destas flores
Um
dois um dois
Todas vamos
conquistar
Um
dois um dois
Alterar a
nossa marcha
Um
dois um dois
Também nos
faz avançar
Um
dois um dois
Ao sinal da
Musculosa, todas iniciaram a subida. Deixaram o chão, o carreiro que sempre
percorreram, agarradas às rugas de cada pedra, ao vocabulário necessário em
cada rota, certificadas pelo esforço dedicado a cada caminho sempre horizontal,
confiantes no horizonte apertado e sempre perto.
Subiram.
Subiram
ainda mais.
Dançaram ao
ritmo da brisa fresca.
Inspiraram o
perfume segredado em cada pétala.
Tocaram as
cores e as formas que ao longe lhes pareciam pouco nítidas.
Naquela
altura, o sonho tinha mais espaço, mais distância, mais esperança.
- Daqui vemos
mais longe! – entusiasmou-se a Musculosa.
- Reparem –
apontou uma das aprendizes.
Eram
apetitosas maçãs que dali facilmente se avistavam.
-
Daqui vemos mais longe! - gritaram todas.
Um
dois um dois
Nós
marchamos todas juntas
Um
dois um dois
À procura de
sustento
Um
dois um dois
Ninguém fica
para trás
Um
dois um dois
Ninguém fica
sem alento
82. Antonomásia!
Antonomásia,
não faças isso!
A Sinédoque
estava escandalizada com o comportamento da irmã mais nova. Chamou a Metonímia
que estava escondida no fundo da página onde os dedos se juntam para virá-la:
- Vem
comigo, a Antonomásia está descontrolada, tem o campo semântico muito próximo
do mais baixo nível, pertinho do mau gosto.
O Mateus
continuava a fixar a página, uma imagem parada que escondia o rebuliço que
começava para lá do seu olhar.
Encontraram-na
evidente na segunda linha.
- Para –
pediu novamente a Sinédoque. Sabes que o rapaz fica angustiado e anda sempre
por aí cabisbaixo.
- Não
percebo a vossa preocupação. Ele é pequenote! E eu apenas disse que o pequenote
chegou a casa... Ah!... Percebi! Preferias que o tratasse de forma grandiosa e
distinta, grandiloquente: o sábio grego, o pequeno sábio, o sábio pequenote
chegou a casa! - brincou a Antonomásia, dramatizando.
- Mãe, sabes
quem é o sábio grego, certo? - perguntou o Mateus, abandonando por momentos a
prosa agarrada à folha que ele afagava entre o indicador e o polegar.
Não esperou
pela resposta. Afinal não podia perder a disputa que opunha as três irmãs. E
tão parecidas eram de figura que o rapaz mal as distinguia.
- Os
pais é que se veem gregos para te tornar distinta! - interveio prontamente a
Metonímia.
- Muito
importantes as meninas! A vossa eloquência é incomparável: ainda ontem vos vi
agarradas às palavras mais sublimes de todas. - As mais velhas mantiveram a
postura séria e elevada, como se nada tivessem entendido. A mais nova
continuou. - Tu, por exemplo, ontem disseste que o rebanho tinha trinta
cabeças... Um horror, coitadas das ovelhas! E tu, na semana passada, afirmaste
que o Eufemismo estava a precisar de beber um copo com os amigos!
A Sinédoque
e a Metonímia entreolharam-se espantadas.
- Mãe, sabes
o que é uma antonomásia? Uma sinédoque? E uma metonímia?... A mim parecem-me
nomes de medicamentos. Duas antonomásias por dia nem sabe o bem que lhe fazia...
depois das refeições, claro – brincou o Mateus.
- Não sei
bem... figuras de estilo… recursos expressivos. Será melhor consultares uma
gramática ou um dicionário.
Acenando
afirmativamente, o Mateus agradeceu o conselho e voltou a fitar a página.
- Sabes
muito bem que essas expressões foram proferidas numa conversa informal com
outras figuras. Não baixamos a esse nível quando nos passeamos pelas páginas
ímpares das nossas melhores obras. E o Eufemismo anda cansado de suavizar as
coisas. Apresenta perturbações preocupantes e, de um momento para o outro, pode
tornar-se cruel, como o tio…
- O
Disfemismo? – antecipou-se a Metonímia.
- Sim -
continuou a Sinédoque. – Por isso é que eu disse que ele precisava de beber um
copo, de descontrair, de falar com os recursos amigos.
Mas a
Antonomásia não se dava por vencida.
- Não vejo
grande diferença entre as vossas palavras e as que eu selecionei aqui nesta
página. Não estou a fazer má figura!
- Não vês!?
Nós não deixamos as nossas linhas sem um motivo sério! Repara bem, o petiz tem
um nome próprio e é esse que deves usar! Se pretendes identificá-lo através de
uma característica, procura uma que o promova, que o deixe feliz… O diminutivo
que usas é um recurso pouco fiável. Às vezes, é doce, carinhoso, mas,
repentinamente, torna-se cruel e arrasador. E o adjetivo disfarçado de nome que
empregas no diminutivo é malicioso. Como já disse, o rapaz não gosta que o
tratem assim, por isso anda atribulado. Vês agora como és uma figura que faz
uma péssima figura?!
- Pequenote!
– rematou a Metonímia que encontrou no rosto da Antonomásia uma ligeira
expressão de quem não estava a entender.
- Percebi!
Reagiu a mais nova. Vou emendar, fiquem descansadas. Não passa da próxima
revisão textual. Mas vou estar atenta porque também vos apanharei em falta com
facilidade. Sei que gostam de passear pelos níveis mais correntes.
- Mas não
costumamos ofender… - cortou a Sinédoque.
A
Antonomásia fechou as janelas e encerrou-se no interior da linha à espera da
próxima revisão.
O Mateus
virou a página e continuou a ler. Tinha prometido ler pelo menos dois
capítulos.