A Pipoca acordou
quando o Sol lhe acariciou a carapaça. Era a primeira vez depois de um longo e
atribulado inverno. Vira-se ao espelho do gelo que cobria a superfície da água.
Sentira o embalo do vento que tornava as águas inquietas. Aguentara-se com
firmeza enquanto a chuva incessante provocava enchentes demoradas, revolvendo-lhe
a casa até às pedras onde se agarrava.
Mas o Sol trazia
agora a bandeira da paz e a natureza abria novamente as janelas, soltando sorrisos
coloridos, melodias ingénuas, incentivos aos filhotes que se atreviam ao
primeiro voo. As folhas rebentavam nos ramos procurando a forma no espaço.
- Félix! Que
bom rever-te! – saudou a Pipoca, quando levantou o pescoço para procurar os vizinhos.
A caturra manteve-se
quieta.
- Félix! –
insistiu.
- Não vale a
pena! Está assim há muitos dias! Não quer falar com ninguém! – explicou o gato
Sonecas que passava naquele momento. – Vês aquela parede fina e transparente?
Foi colocada à volta da casa deles no início do inverno. Desde essa altura que
não os oiço cantar. Raramente saem do ninho…
- Terá sido
para os proteger do frio e do vento.
- Pensei o
mesmo. Só não percebi aquela tristeza calada e, por isso, procurei o velho Vagaroso.
- O Vagaroso!
Já não o vejo há tanto tempo! Onde vive agora? O regador desapareceu deste
alpendre no final do verão…
- No tronco daquela
oliveira, numa cova protegida.
- Ainda bem. E
que te disse ele?
- Contou-me
que se deslocou até à casa da Félix, onde permaneceu alguns dias. Falou com ela,
com o Johnny e com a Gema. Mas nem a caturra nem os agapórnis souberam justificar
a sua tristeza.
O Sonecas contou
ainda que o velho Vagaroso não desistira. Observara-os durante algum tempo e
ficara alarmado, porque, mesmo nos dias em que as nuvens permitiam que o Sol as
atravessasse, eles permaneciam em silêncio, vagarosos, quietos. Mesmo quando o
mandarim que vivia a poucos metros soltava melodias de esperança. Mesmo quando
as melhores sementes chegavam pela porta da frente. Era como se os sentidos
estivessem encerrados por tempo indefinido! Quem lhes tinha roubado a cor?! Quem
lhes tinha capturado a voz?!
- Temos de ajudá-los!
– reagiu, por fim, a Pipoca. – O Vagaroso descobriu alguma solução?
- Sim, mas teremos
de ter muito cuidado.
Claro! Muito
cuidado! A Pipoca tinha ficado a saber que o motivo daquela tristeza escura
vinha daquela cobertura transparente. O que protegia os amigos do frio encerrava-os
numa prisão que só abria por dentro. E mais ninguém conhecia o caminho da chave
singular que descerrava a porta da alegria.
- Não entendo
por que razão aquele manto transparente os entristece!
O Sonecas explicou-lhe
então que, aos poucos, a Félix e os amigos deixaram de ver e de ouvir claramente
os vizinhos amigos que viviam nas árvores e nos arbustos. A forma e a voz de
cada um chegava filtrada por aquela barreira deturpadora. Além disso, há muito
que não se derramavam por ali os aromas encantadores, vibrantes, libertados
pelas asas livres, que cortavam os céus em acrobacias felizes! Há muito que não
partilhavam, pelo amoroso bico, as mais delicadas e saborosas sementes com as fascinantes
nómadas, essas aves que lhes ofereciam depois as melhores histórias dos lugares
que descobriam em cada primavera.
- Agora
percebo! – concordou a Pipoca.
- Quando for
tempo, falaremos com a formiga Teimosa. Ela trará as amigas e, em conjunto com
as minhas garras, cortaremos aquele manto. Tudo terá de ser feito com muito
cuidado. Não sabemos como irão reagir! Será uma avalanche
brilhante e verde! A cor, a melodia, o perfume, o calor, o sabor, todos confundidos!
A sinfonia dos sentidos!
- Olha! Não é
o velho vagaroso?
- Sim, está a
fazer-nos sinais. Vamos.
Em pouco tempo foram as amigas aves desconfinadas e a brisa fresca incendiou-lhes as asas e o canto brotou como um ramo tocado pelo Sol. Reaprendiam a voz de cada sentido!