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A mostrar mensagens de 2020

O Pai Natal e as renas um pouquinho aborrecidas

  - Pai, vem cá, por favor. O Mateus agarrou o braço do pai e conduziu-o até à janela. - Repara! - desafiou, enquanto apontava uma constelação brilhante no firmamento. - Não me parecem estrelas! – afirmou o pai. – Vês aquele brilho avermelhado? Assemelha-se às luzes de um carro ou de um avião... O Mateus fixou alguns segundos a claridade estranha concentrada no céu. - Até parece um engarrafamento! E ficaram ambos presos àquela imagem, enquanto a noite fria crescia, espalhando o luar que a tornava suave e transparente. De repente, o Mateus notou que o rádio fazia movimentos estranhos em cima da mesinha de cabeceira. O fio que lhe servia de antena não parava quieto. Os números vermelhos apareciam e desapareciam desesperadamente. Aproximou-se e sossegou-o, tocando num dos botões disponíveis. Nesse instante, ouviu um sussurro: - Só as crianças poderão ouvir esta notícia. Repito, só as crianças poderão ouvir esta notícia de última hora. O Mateus sentou-se então na beira da

Conto contigo

  Foram chegando de mansinho, discretamente. Os primeiros encostaram o nariz ao vidro da janela e ali ficaram apertadinhos pelos que foram chegando depois. Espreitaram, curiosos, para ver as meninas que se preparavam para uma serena noite de sono. A Teresa fez uma conchinha, fechou os olhos, segurou o rosto com as duas mãos, sorriu e adormeceu devagarinho. A Clara não. A Clara resistia, mantinha os olhos bem abertos, via para além do tecto as aventuras e os sonhos que já não cabiam na sua imaginação e brotavam nos movimentos que fazia com os braços e nas melodias aveludadas, quase inaudíveis, que segredava ao unicórnio que abraçava carinhosamente. Eles continuavam à espera no parapeito da janela. Ainda não era o momento ideal. Sabiam que só podiam entrar em caso de emergência e estavam treinados para os longos saltos que encantavam os meninos e as meninas.   As ovelhinhas e os carneirinhos mostravam o nariz rosa e os olhos simpáticos que sobressaíam da sua lã macia e branquinha.

Em terra de reis...

                    - Pai! – a Clara reagia com surpresa sorridente. Admitia que ele estava certamente a brincar. – Não é assim, enganaste-te!                 O pai continuou concentrado na conversa que mantinha com o Mateus.                 - E sabes explicar o provérbio?                 - Claro… - afirmou o Mateus, incapaz de esconder uma certa hesitação agarrada aos gestos, pendurada no olhar descendente.                 A explicação foi surgindo do escuro como a lua em quarto crescente.                 - Pai, não é assim! – insistia a Clara que, percebendo o desencontro do pai, continuou – o provérbio não é assim!                 - Assim?! – estranhou o pai.                 - Tu trocaste tudo!                 Não tinha reparado nas gargalhadas e nos olhares húmidos, brilhantes, que o rodeavam. E a sua seriedade tornava o momento ainda mais hilariante.                 - Em terra de cegos, quem tem um olho é rei – disseram em coro.                 - Foi o que eu d

Cantiga Chinela

https://cantigas.fcsh.unl.pt/manuscrito.asp   (Tropa Chinela, pelotão dedicado e aprendiz) A poesia invadia a sala. Cada palavra chegava carregada de tempo e de espanto. Trazia rugas nas voltas desenhadas e a história dos séculos no ventre de cada vogal.   - Digades, filha, mia filha velida, por que tardastes na fontana fria?   Chegavam as palavras fundadoras. Chegavam e não se reconheciam na descendência reencontrada. Sentiam no corpo a perda de cada sílaba, a rebeldia dos sons desaparecidos e alterados. Repararam no sorriso benevolente das meninas sentadas, longe das mães e das perguntas prudentes que sempre souberam fazer. Perceberam que elas, as meninas, já não apanhavam flores para pôr no cabelo a caminho da fonte. E sentiram-se fechadas na sala, longe dos verdes campos da cor do limão , das fontes frescas, limiar de vida. Percebiam-se despidas das melodias que outrora abraçavam as sílabas e dos movimentos intencionais dos amigos que desafiavam as meninas para a dança.

O cativo feliz

A Clara aproximou-se do pai que permanecia concentrado na leitura de um livro que tinha aberto sobre a secretária. Trazia na mão o tablet e um protesto organizado pronto a irromper. - Sim, Clara! Também não tenho internet! – antecipou-se o pai. A menina acalmou as palavras amotinadas e já não permitiu que a boca lhes desse forma. Tinha percebido que o pai não queria ser incomodado naquele momento. Dava já meia volta, quando reparou na página que ele olhava fixamente. - O que é isso? - Um pergaminho. - Um pergaminho? – estranhou. - Um texto muito antigo. Este, por exemplo, já tem mil anos. E provavelmente foi escrito numa folha feita a partir da pele de um animal. A menina mostrou alguma resistência e não desistiu: - Uma história com cavaleiros e princesas presas numa torre vigiada por uma bruxa má? Por momentos, o pai pensou que devia dar o caso por encerrado. Mas, segundos depois, resolveu apoiar aquela curiosidade desafiante. - Sim – respondeu, certo de que a His

O sorriso escondido espreita no olhar

Entrei e dirigi-me para a secretária disposta junto à janela. As cortinas dançavam inspiradas pelo vento, que parecia querer fugir daquele espaço. Junto ao monitor, havia um líquido transparente que disparei sobre os objetos por ali alinhados. Era a primeira vez, nunca os tinha recebido assim: sorriso escondido, mãos presas, algemadas, negando os abraços que apagam a distância e a saudade. Restava o olhar espantado, resistente, líquido, enraizado… Entraram e procuraram enfileirados a higiénica torre que os protegeria dos ataques inimigos. Tomaram depois posição no lugar respetivo. Reparei que também eles mantinham o sorriso aprisionado, amordaçado. Mas não os olhos. Esses passeavam pela sala, encontrando outros a quem contavam pequenas histórias silenciosas, deliciosas, às vezes, ousadas, às vezes, envergonhadas. As gargalhadas formavam uma albufeira atrás do muro que lhes barrava o caminho. Apenas o som abafado conseguia evadir-se. Gargalhadas incompletas. Enquanto os observav

Uma tenda no jardim!

  A noite tinha chegado e havia espalhado pelo lugar a sua mantinha leve e brilhante. A lua parecia um candeeiro atento que resgatava do escuro as mais belas flores do jardim. O silêncio era agora o tempo dos animais: os cães uivavam notícias ao desafio, as cigarras afinavam o interminável cânone e os gatos ronronavam histórias de caça. - A minha lanterna, mãe? A Clara avistou-a rapidamente, antes mesmo da resposta pedida, e divertiu-se a fazer círculos brilhantes no tecto da sala. - Clara, essa lanterna é minha! – queixou-se imediatamente o Mateus. - Não é nada! A tua é a redonda! – contrariou. Daí a pouco, a Teresa seguiu os irmãos, que já tinham saído para o alpendre. Um pouco atrás, testando a lanterna do telemóvel, avançou também a Inês. - Pai, ainda demoras? – protestou o Mateus que queria chegar depressa ao jardim da casa vizinha. Saíram. O orvalho afagava as ervinhas do caminho. Cada gotinha deslizava pelas pétalas e pelas folhas, saciando a sede que o Sol tinha

Abraço

  - Pai, o que vês para além deste dia? - Vejo o que fiz e prevejo o que não fiz. - Hum, só isso? - Sim, tenho memórias e projetos. O que faço hoje, ocupando o tempo que vai deixando de ser futuro, torna-se passado, vestígio longo e permanente. - Então vês apenas aquilo que os teus olhos alcançam? - Não, filho. Através dos teus, alcanço outro horizonte para lá do meu. - Certo. E o que vês quando me abraças? - Nada, gosto de fechar os olhos quando abraço. - É melhor o abraço? - Sim, por momentos, recusamos o tempo e, quando abrimos os olhos, regressamos mais fortes para o enfrentar. - Dás-me um abraço? - Claro. A cadeira baloiçava levemente. O silêncio acariciava a brisa que tocava levemente as folhas das japoneiras. - Pai, o almoço está pronto. Surpreendido, olhou o filho, levantou-se e seguiu-o. Ainda pensou em falar-lhe sobre aquelas coisas, mas o melhor era começar pelo abraço. Fixou o melhor momento: ao deitar, quando a noite nos segreda as memórias

Conversa afiada

  Entrou na caixa, conduzido pela mão que levantou suavemente a cobertura, e aconchegou-se no espaço livre ao lado dos colegas de ofício. - Encosta-te a mim, deves estar um pouco tonto de tanto balançar naquela folha. - Desfaço-me para dar cor àquelas formas! - Eu cá prefiro os traços contínuos. Detesto que me façam andar para trás e para a frente, nunca sei para onde vou! Assim falavam o verde escuro e o verde claro, lado a lado na mesma casa. Aí descansavam, após intermináveis viagens por desertos brancos onde sempre deixavam um rasto de beleza. - Olha, agora vai o amarelo! Coitado! Vai diretamente para a composição! Nem sequer passa pela aguça! – espantou-se o verde claro. - Assim rombudo enche mais depressa a forma do Sol – explicou o verde escuro. - Eu prefiro trabalhar bem afiadinho, o meu risco é mais delicado. - Mas sabes que perdes um pouco de ti sempre que te aparam?! - E para que quero eu permanecer inteiro?! Os inteiros nunca serviram para nada! Nunca desenharam um sorriso,

O dia em que a mamoa foi ponte

In  https://pt.wikipedia.org/wiki/Mamoa Os soldados vinham de Gaia pela via que continuava para Lisboa. Em Arrifana, seguiram pelo caminho que os conduziria até Escariz e daí marchariam em direção a Viseu. Já não havia muito tempo de Sol e por isso era necessário apressar o passo. Os cavalos estavam a precisar de descanso e de alimento e os legionários suspiravam por um bom naco de carne aconchegado por um púcaro de vinho ou de cerveja. Além disso, não queriam que a noite os apanhasse perto do Castro da Portela. Era um lugar difícil de transpor. Os Lusitanos que o habitavam não davam tréguas aos invasores, atacavam de surpresa, descendo velozes como cervos das citânias. Ao chegarem a certo lugar junto do rio Ul, avançaram pela sua margem direita, pois sabiam que mais à frente, em Mouquim, havia uma passagem segura. De repente, o mais velho dos soldados levantou a mão e impôs silêncio imediato. Todos pararam e procuraram o gládio onde apoiaram a mão expectante, enquanto os olhos p

No tempo em que passam os caracóis

A Teresa entrou na cozinha repentinamente, deixando escancarada a porta que dava para o alpendre. Mesmo antes de falar, apontava já a razão do alvoroço que os olhos arregaladamente sublinhavam. - Mãe, está um caracol no vaso!  Imediatamente lhe agarrou a mão, conduzindo-a ao local indicado. - É só uma concha, vês!? – mostrou a mãe, enquanto retirava de entre as folhas da orquídea aquela espécie de carapaça que mais parecia uma casa abandonada. - Oh! O que aconteceu? Onde está o Caracol? A Teresa atreveu-se a pegar também na concha que virava e revirava em busca dos tentáculos que já não procuravam o Sol. Entretanto já o Mateus e a Clara se tinham aproximado e assistiam divertidos ao desalento da mais pequena. - Teresa, há pouco, eu vi um caracol passar por aqui – intrometeu-se o Mateus. Acho que deixou a concha na oficina e volta mais logo. - Não viste nada, ninguém vê os caracóis a passar! Muito menos sem a concha! – protestou a Clara. - É verdade! E o Mateus foi d