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O dia em que a mamoa foi ponte


In https://pt.wikipedia.org/wiki/Mamoa


Os soldados vinham de Gaia pela via que continuava para Lisboa. Em Arrifana, seguiram pelo caminho que os conduziria até Escariz e daí marchariam em direção a Viseu.

Já não havia muito tempo de Sol e por isso era necessário apressar o passo. Os cavalos estavam a precisar de descanso e de alimento e os legionários suspiravam por um bom naco de carne aconchegado por um púcaro de vinho ou de cerveja. Além disso, não queriam que a noite os apanhasse perto do Castro da Portela. Era um lugar difícil de transpor. Os Lusitanos que o habitavam não davam tréguas aos invasores, atacavam de surpresa, descendo velozes como cervos das citânias.

Ao chegarem a certo lugar junto do rio Ul, avançaram pela sua margem direita, pois sabiam que mais à frente, em Mouquim, havia uma passagem segura.

De repente, o mais velho dos soldados levantou a mão e impôs silêncio imediato. Todos pararam e procuraram o gládio onde apoiaram a mão expectante, enquanto os olhos procuravam ruídos antes dos ouvidos atentos.

Nesse momento, um deles apontou discretamente o pequeno monte que todos facilmente avistaram a pouca distância:

- Mammula! – segredou outro, provocando o riso contido dos companheiros.

O mais avisado, o veterano, olhou-os com dureza, pois não era tempo para pensar naquelas frivolidades! Mas, de soslaio, reparou melhor e concordou.

- É ali que os Lusitanos sepultam os seus mortos e honram a sua memória – explicou.

- Mas aquela cobertura de terra e pedras sobre a anta parece uma Mammula… - insistiu divertido um dos soldados mais novos, desenhando com as mãos um bonito seio feminino.

Repentinamente, o decano fez sinal para que todos se escondessem atrás da vegetação. Da mamoa saíam vários homens com lanças afiadas e, à frente, esperava-os outro grupo mais numeroso, segurando rijamente certeiras fundas e pequenos escudos redondos. Nada podiam contra eles os soldados romanos. Por isso, esperaram que se afastassem da mamoa, reparando que seguiam por carreiros que ladeavam campos de cereais. Aqueles homens viviam numa citânia ali perto!

- Não podemos continuar – decidiu o veterano. - Espera-nos uma emboscada mais à frente. Eles saíram da anta porque o vigia que aguardava em cima da mamoa os avisou. Esperamos aqui pela centúria que amanhã passa também por estas terras.

O Sol tocava já o horizonte lançando os últimos raios que tornavam ainda mais vivo o vermelho das túnicas dos soldados que montavam naquele momento as tendas para a pernoita. Três deles, entretanto, saíram à caça, para terem o que cear.

De manhã, o vento suave de outono antecipou a chegada da centúria – sentia-se a marcha compassada e pesada. O decano reparou ainda na densa coluna de pó e nos estandartes que os anunciavam.

- Sim, é verdade. Os soldados que saíram ontem para caçar avistaram, a pouco mais de dez estádios, numeroso exército lusitano.

- Preparam-nos uma emboscada – concordou o centurião.

- E a nossa legião não pode apoiar-nos neste momento? – perguntou o decano.

Por momentos, houve silêncio na tenda onde reuniam os oito decanos e o centurião.

- Não podemos contar com mais legionários. Os que estão acampados em Braga continuam com dificuldade em dominar os Lusitanos em Briteiros – explicou o centurião.

- Temos de seguir para Viseu, os mantimentos que trazemos não dão para mais de oito dias – aconselhou outro dos decanos.

- Tens razão. Não é tempo de atacar estas citânias. Em Braga, esperam pelas armas que vamos buscar a Viseu – continuou o centurião. – Dominados os Lusitanos em Briteiros, voltaremos a estas terras. Importa agora passar o rio e avançar por outro caminho, pela direita daquele outeiro. O rio leva pouca água, podemos atravessar naquele vau.

Mas o decano que primeiro ali tinha chegado lembrou que, no regresso, as chuvas de inverno tornariam impossível a passagem.

O centurião considerou seriamente as intervenções e, por fim, decidiu:

- Temos dois dias para construir uma ponte que usaremos no regresso.

Perante as dúvidas visíveis no rosto dos outros comandantes continuou:

- Usaremos as pedras daquela mamoa e da anta que ela acolhe. Dois dias.

Rapidamente os soldados deram forma à passagem sobre o rio e discretamente marcharam sobre ela em direção a Viseu.

As lajes que antes marcavam o fim eram agora caminho e passagem.

Entretanto, os Lusitanos enviaram soldados à terra da mamoa, pois estavam desconfiados devido à demora dos legionários.

Ouvida a notícia da ponte da mamoa, reuniram de emergência.

- Não mais abandonaremos aquele lugar. Os filhos da loba não voltarão a pisar as pedras que honraram os nossos antepassados! – decidiu o mais velho, que afirmava ter na alma a força de Viriato.

 

O Inverno chegou e com ele as chuvas intensas. Das encostas que ladeavam o rio Ul, soltou-se a terra que arrastou consigo pedras e árvores.

A ponte não aguentou a força da água e desfez-se.

As pedras da mamoa voltaram ao seio da terra e aí permanecem, guardando estas memórias que só a imaginação pode desvendar.


*

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