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O cativo feliz



A Clara aproximou-se do pai que permanecia concentrado na leitura de um livro que tinha aberto sobre a secretária. Trazia na mão o tablet e um protesto organizado pronto a irromper.

- Sim, Clara! Também não tenho internet! – antecipou-se o pai.

A menina acalmou as palavras amotinadas e já não permitiu que a boca lhes desse forma. Tinha percebido que o pai não queria ser incomodado naquele momento. Dava já meia volta, quando reparou na página que ele olhava fixamente.

- O que é isso?

- Um pergaminho.

- Um pergaminho? – estranhou.

- Um texto muito antigo. Este, por exemplo, já tem mil anos. E provavelmente foi escrito numa folha feita a partir da pele de um animal.

A menina mostrou alguma resistência e não desistiu:

- Uma história com cavaleiros e princesas presas numa torre vigiada por uma bruxa má?

Por momentos, o pai pensou que devia dar o caso por encerrado. Mas, segundos depois, resolveu apoiar aquela curiosidade desafiante.

- Sim – respondeu, certo de que a História que sabemos é um puzzle onde faltam muitas peças que o tempo ocultou. Nesse espaço vazio, só a imaginação consegue entrar. – Sim, temos aqui uma história!...- arriscou. O olhar da criança abriu caminho e o pai apanhou as melhores palavras para regressar ao passado:

 

-  Há muito, muito tempo atrás, no tempo dos bisavós do primeiro rei de Portugal, no tempo do Condado Portucalense, perto do Castelo de Santa Maria, junto ao rio Ul, no vale de Gaiate, havia uma casa onde viviam Dom Ero Soares e Dona Froila Erotis. Governavam o seu domínio com sabedoria e justiça.

Uma vez por semana, subiam ao ponto mais alto da sua vila, daí conseguiam avistar o castelo donde o filho Fernão partira para defender e alargar as terras do condado. Desse lugar, acompanhavam também o Sol que se punha ao longe no mar.

- Ero, quando voltará a casa o nosso filho?

- Dizem que continua por terras do Sul, perto de Coimbra.

- Deus não há-de abandoná-lo! Voltemos para casa – pediu Dona Froila Erotis, suspirando.

Quando chegaram, esperava-os um criado que os avisou da presença de um cavaleiro. Entregaram os cavalos e foram ao seu encontro. A notícia mal-amada não tardou:

- O vosso filho caiu ferido nas mãos do inimigo às portas de Coimbra. Fizemos tudo para o resgatar…

- Nada mais nos sabes dizer sobre Fernão Soares? – protestou Dom Ero.

Nada mais sabia. Leu com solenidade o louvor enviado pelo senhor do Condado e afastou-se em direção ao Porto. Tinha ainda mais notícias para dar.

Os senhores da Vila de Gaiate não mais descansaram. Fernão Soares podia estar vivo!

Pouco tempo depois, Dom Ero partiu em direção a Coimbra. Levou consigo os homens fortes e armados que há muito protegiam o seu domínio e o acompanhavam em todas as viagens que fazia. À frente, seguiam Arualdes Gondesendes e Vegila Gondesendes, a seu lado,  Kace Ermiariz, Cide Fernandes e Trasmiro, na retaguarda, Gondesendo, Zomeile e Egica.

Conhecia bem aquelas terras por onde também combatera alguns anos antes. Quando lá chegaram, enviou os irmãos Arualdes e Vegila à fortificação inimiga para saber novas do filho.

Nada. A hipótese de um resgate já não tinha sentido. Os dois soldados regressavam desiludidos. Dom Ero iria ficar destroçado com notícia.

- Ajudem esta pobre velha! Ajudem, por Deus!

Vegila reparou na mulher vestida de negro sentada na margem do caminho que os levava a Coimbra. Conseguiu ver-lhe os olhos brilhantes, cheios de vida, ao contrário do corpo magro e enrugado. Estendia uma das mãos. Mantinha a outra apoiada num cajado que guardava nos sulcos os caminhos já percorridos.

- Fique com este pedaço de pão. Já estamos perto dos nossos companheiros – disse Vegila, desmontando.

- Deus vos proteja! – rezou a velha, agarrando o braço do benfeitor. – Quem procurais está vivo! – segredou com firmeza.

Vegila fez sinal para que Arualdes se aproximasse.

- O cavaleiro que procurais está vivo! – repetiu, confirmando as palavras com o olhar vivo e sábio.

- Onde podemos encontrá-lo?

- Naquele povoado, lá longe, por onde passa este caminho – respondeu, apontando com o cajado. – Uma linda donzela salvou-o, levando-o do vale onde tinha ficado gravemente ferido.

- Como podes ter tanta certeza?

- Eu própria lhe curei as feridas com os meus unguentos. Guardo o que dizia, enquanto delirava o pobre rapaz… A linda donzela que o libertou da morte é agora a prisão de onde não quer sair!

- Obrigado! Serás recompensada, se as tuas palavras forem verdadeiras.

- Tão verdadeiras como este pão que sacia a minha fome.

Partiram. Pouco depois chegaram às imediações da casa indicada pela mulher pobre. Estranharam que ninguém se tivesse oposto à sua passagem. Chegaram a suspeitar de uma emboscada.

- Sejam bem-vindos! Estas terras são também vossas, pois sei que vindes em paz!

As palavras vinham do alto de uma encosta junto à entrada da casa principal.

- Fernão!! És tu!? – espantaram-se os irmãos que o procuravam.

Sim. Fernão Soares aproximou-se acompanhado por mais quatro homens da sua confiança.

- Não há dúvida! Viemos de Gaiate à tua procura. O teu pai espera-te em Coimbra.

- Fico feliz por vos reencontrar, amigos. Tinha intenção de voltar a casa para descansar os meus pais, mas ainda não recuperei completamente.

- Agora já podes voltar connosco!

O cavaleiro não respondeu. Baixou a cabeça. Nesse momento, juntou-se ao grupo uma linda donzela, montando um possante corcel branco. Todos se curvaram, respeitando a beleza rara daquela donzela guerreira.

- Por ela não poderei regressar! – declarou Fernão. – Respeito os meus pais, mas Teresa é a mulher que amo! É a mulher a quem devo a minha vida!

- Podes levá-la para as terras do vale de Gaiate. Os teus pais aprovarão o vosso amor.

- Teresa não pode partir. O chão que pisamos é domínio dos pais que permanecem cativos um pouco mais a Sul. Com ela preparo homens para o resgate. Sois bem-vindos para esta missão. O meu lugar é aqui.

- Mas estas são terras inimigas, corres grave perigo.

- Eu tal como todos estes homens que me acompanham.

Arualdes e Vegila regressaram a Coimbra. Depois de saber novas do filho, Dom Ero Soares seguiu para Norte. Ia feliz e amargurado. No pensamento, levava já um plano desenhado pelo amor e contava com a aprovação de Dona Froila Erotis.

- Sim, vendemos a vila com todos os bens que ela contém, conforme a obtivemos dos nossos antepassados.

- Mas a quem vamos entregar o domínio das nossas gentes e das nossas terras?

- Falei já com os nossos vizinhos, pagarão o preço justo, 260 soldos. Soeiro Gonçalves e sua mulher Gunterode são pessoas de bem. Iremos depois para as terras de Fernão. Aí recomeçaremos a nossa vida, apoiando o nosso filho, vendo crescer os netos que virão.

Semanas depois, no dia 26 de outubro do ano 1020, o escrivão Randulfo leu a carta de venda na presença de vários confirmantes, homens ricos das redondezas. Foram testemunhas os homens que sempre acompanharam Dom Ero Soares e que já se mostravam preparados para a viagem.

Partiram nesse dia. Deixaram para sempre o Vale de Gaiate.

Ao Sul, aguardava-os o cativo que só o amor podia libertar.

 

 A Clara estava em pé, apoiada no ombro do pai. Seguia atentamente cada palavra que trazia do passado a história de Fernão Soares.

- Acaba assim?

O pai encolheu os ombros e acarinhou-lhe o rosto.

- O Fernão não voltou a casa só porque estava apaixonado pela Teresa?! – protestou. -Mas não consigo encontrar a história no pergaminho…

O pai levantou-se e abraçou-a. Estava na hora do lanche.

Um dia voltaria à história de Fernão por quem os pais tudo deixaram no vale de Gaiate.


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