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(Tropa Chinela, pelotão dedicado e aprendiz)
A poesia invadia a sala. Cada palavra
chegava carregada de tempo e de espanto. Trazia rugas nas voltas desenhadas e a
história dos séculos no ventre de cada vogal.
- Digades, filha, mia filha velida,
por que tardastes na fontana fria?
Chegavam as palavras fundadoras.
Chegavam e não se reconheciam na descendência reencontrada. Sentiam no corpo a perda
de cada sílaba, a rebeldia dos sons desaparecidos e alterados.
Repararam no sorriso benevolente das
meninas sentadas, longe das mães e das perguntas prudentes que sempre souberam
fazer. Perceberam que elas, as meninas, já não apanhavam flores para pôr no
cabelo a caminho da fonte. E sentiram-se fechadas na sala, longe dos verdes
campos da cor do limão, das fontes frescas, limiar de vida. Percebiam-se
despidas das melodias que outrora abraçavam as sílabas e dos movimentos intencionais
dos amigos que desafiavam as meninas para a dança. E as fontes guardavam os
segredos de cada encontro.
Os amores hei.
Nesse momento, também eu quis
saber o que faziam ali aquelas palavras desamparadas e quem as escutava nas
suas conchas puras. Notei que alguns rapazes riscavam a página do livro, num vaivém
incessante, qual sismógrafo, detetor de terramotos interiores. Que segredos se
escondiam nas linhas daquele lápis? E que perguntas terão ainda as mães por
fazer?
- Tardei, mia madre, na fontana fria,
cervos do monte a áugua volv[i]am.
Sorri, porque um dos rapazes lá do
fundo tinha percebido nestas palavras a intemporalidade da resposta. O sorriso discreto
e o ligeiro aceno bastaram. Examinei, depois, secretamente, cada olhar e fui
descobrindo as fontes onde se perdiam, onde se atrasavam.
Os amores hei.
As palavras fundadoras avolumavam
saber e espanto em cada brilho sentido. Com elas descobri que as fontes estavam
agora ao alcance dos dedos, em cada imagem publicada, em cada comentário
desejado, virtuais. As fontes estavam agora ao fundo de cada corredor, onde o
reencontro acontecia à hora certa. Bastava um olhar agarrado e longo, um gesto
incipiente, uma promessa contida - uma dança cujo ritmo só o coração sabia marcar:
cantiga de amigo.
- Mentir, mia filha, mentir por amigo,
nunca vi cervo que volvesse o rio.
As mães, sempre madres! Ancoradas,
à espera, no parque. Um olhar sagaz bastava para desembrulhar o segredo. Percebi
nestas palavras uma denúncia secretamente satisfeita. Um abraço que prendia e apontava
o caminho da evasão. Agarrava porque investigavam as mães quem revolvia as
águas do coração. Libertava porque a água sempre procura uma fonte para ser
nascente, arroio, rio, em busca de mar – cantiga de amigo.
Os amores hei.