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No tempo em que passam os caracóis



A Teresa entrou na cozinha repentinamente, deixando escancarada a porta que dava para o alpendre. Mesmo antes de falar, apontava já a razão do alvoroço que os olhos arregaladamente sublinhavam.

- Mãe, está um caracol no vaso! 

Imediatamente lhe agarrou a mão, conduzindo-a ao local indicado.

- É só uma concha, vês!? – mostrou a mãe, enquanto retirava de entre as folhas da orquídea aquela espécie de carapaça que mais parecia uma casa abandonada.

- Oh! O que aconteceu? Onde está o Caracol?

A Teresa atreveu-se a pegar também na concha que virava e revirava em busca dos tentáculos que já não procuravam o Sol.

Entretanto já o Mateus e a Clara se tinham aproximado e assistiam divertidos ao desalento da mais pequena.

- Teresa, há pouco, eu vi um caracol passar por aqui – intrometeu-se o Mateus. Acho que deixou a concha na oficina e volta mais logo.

- Não viste nada, ninguém vê os caracóis a passar! Muito menos sem a concha! – protestou a Clara.

- É verdade!

E o Mateus foi desembrulhando as ideias que chegavam da imaginação prontas para a brincadeira:

- Reparem. Veem este buraquinho aqui? É preciso consertá-lo. É como ter uma telha partida, o caracol não pode viver com segurança nesta concha. Por isso a deixou ali no vaso.

As irmãs pareciam convencidas. Pareciam.

- Mas tu disseste que viste passar um caracol! Não acredito! Como sabes que era o dono desta concha? Por acaso viajava sem concha? – protestou a Clara.

- Para onde foi o caracol, Mateus? – perguntou a Teresa.

Perante a breve hesitação do irmão, a Clara foi conclusiva:

- Ninguém tem tempo para ver passar um caracol, Teresa. O Mateus está a mentir! Não viu caracol nenhum.

Mais ao fundo, sentado à mesa que sabia aproveitar a sombra que o ácer mais próximo lhe oferecia, estava o pai. As palavras da Clara tinham-lhe assaltado o ouvido e por ali ficaram como o eco que se prolonga entre as montanhas: ninguém tem tempo para ver passar um caracol! Será ele assim tão demorado ou será da urgência em que vivemos?

O pai por momentos pensou que seria uma estupidez ficar parado, vendo passar um caracol. Por momentos, pois logo de seguida invadiu-o a ideia de que o problema não era esse. 

Talvez ver passar um caracol seja o mesmo que ver as pétalas que se abrem quando o Sol as acaricia. Ou ouvir a nascente que percorre o incipiente leito tocando as pedras, como os dedos que percorrem as cordas afinadas. Ou seguir o rasto das letras alinhadas que página a página dão corpo a uma história a que o tempo nunca deu tempo. Coisas da imaginação! Demoram como demora o caracol. Mas a verdade é que não sabem que demoram. Só os apressados sabem que demoram, sempre com urgência de estar onde não estão. É preciso restaurar esta demora, agraciar esta lentidão!

- Pai!

A Teresa trazia na mão a concha abandonada pelo caracol. Queria saber se o Mateus tinha razão. Se aquela conha estava no vaso para ser restaurada.

- Sim, filha. O Mateus tem razão. Vês aqui este buraquinho? É preciso consertá-lo para que o caracol não tenha frio no inverno.

- Sim – concordou a Teresa – e não entrem formigas.

- Achas, Teresa! – Discordou a Clara. – Às tantas vão as formigas fazer cócegas ao caracol!

O pai olhou alguns segundos o filho pedindo-lhe apoio.

- Teresa – avançou o Mateus -, o caracol que eu vi levava uma concha emprestada, mais logo volta para levar a dele. Vamos colocá-la de novo no vaso.

A Clara segui-os desconfiada.

O Pai permaneceu sentado à mesa, certo de que aquelas demoras eram as que menos atrasavam.  Ainda reparou no sorriso divertido da Inês que tinha assistido àquele diálogo. Não tinha emenda!

 


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