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Conto contigo


 

Foram chegando de mansinho, discretamente. Os primeiros encostaram o nariz ao vidro da janela e ali ficaram apertadinhos pelos que foram chegando depois. Espreitaram, curiosos, para ver as meninas que se preparavam para uma serena noite de sono.

A Teresa fez uma conchinha, fechou os olhos, segurou o rosto com as duas mãos, sorriu e adormeceu devagarinho.

A Clara não. A Clara resistia, mantinha os olhos bem abertos, via para além do tecto as aventuras e os sonhos que já não cabiam na sua imaginação e brotavam nos movimentos que fazia com os braços e nas melodias aveludadas, quase inaudíveis, que segredava ao unicórnio que abraçava carinhosamente.

Eles continuavam à espera no parapeito da janela. Ainda não era o momento ideal. Sabiam que só podiam entrar em caso de emergência e estavam treinados para os longos saltos que encantavam os meninos e as meninas.  As ovelhinhas e os carneirinhos mostravam o nariz rosa e os olhos simpáticos que sobressaíam da sua lã macia e branquinha.

Pouco depois, a Clara recolheu os braços sob a colcha leve e quentinha.

- Preparem-se! - ordenou o mais velho. - Já falta pouco. Quero movimentos decididos! Os primeiros um salto só, longo! Nada de ficar a bisbilhotar lá dentro. Entrar, saltar e sair. Voltam depois para o fundo da fila. Esta menina dá sempre muito trabalho. Vamos ter de entrar e sair várias vezes.

- Quando é que podemos dar cambalhotas? - perguntou uma das ovelhinhas mais novas.

O olhar severo do chefe foi suficiente para travar aquele atrevimento.

- Agora! - ordenou, ao reparar que a Clara tinha fechado os olhos.

O primeiro carneirinho, experiente e concentrado, saltou por cima da cama da menina que abriu repentinamente os olhos e bateu palmas.

- Boa! Agora, mais um!

O chefe ficou desorientado. Não estava a dar resultado. Não era suposto que a Clara abrisse os olhos naquele momento. Contar carneirinhos só de olhos fechados! Não estavam preparados para aquela situação.

Esperaram por uma nova oportunidade.

A menina continuava à espera dos carneirinhos. Queria contá-los, um por um. Mas nenhum entrava com receio de ser observado. Para os ver, bastava sonhar, bastava fechar os olhos. A Clara sabia disso, por isso, por marotice, voltou a fechá-los.

- Preparar salto! Entra! - ordenou o chefe ao segundo.

O salto longo e elegante do carneirinho foi novamente surpreendido pela Clara que se divertia com aqueles amigos branquinhos que lhe espantavam o sono.

- Dois! Ainda melhor! Como consegues saltar tão alto?! Mais um!

O mais velho dos carneirinhos começou a ficar nervoso. Precisava de uma solução, mas qual?

- Posso tentar? - propôs uma ovelhinha que esperava no fundo da fila.

O chefe chamou-a para ouvir melhor o seu plano.

- Tens a certeza?! Quando regressares já não estaremos aqui! Temos mais meninos à espera.

- Fico até à próxima noite. Quando regressarem, volto para o grupo.

A ovelhinha entrou no quarto, lentamente, suavemente, rodopiou, devagar, devagarinho... e parou mesmo por cima do nariz da Clara.

- Três! Que giro!... - comentou. Mas reparou que não se ia embora. - Então, vais ficar aí parada?!

A ovelhinha voltou a saltar e a rodopiar, lentamente, serenamente, devagar, devagarinho e voltou a parar.

- Não tens mais companheiros? Onde está o quarto?

A ovelhinha desta vez não saltou, rodopiou três vezes, lentamente, serenamente, devagar, devagarinho... fechou os olhinhos e … adormeceu.

A Clara não queria acreditar. Abraçou-a carinhosamente, cedeu-lhe um pedacinho da sua colcha e embalou-a lentamente, serenamente, devagar, devagarinho... fechou os olhinhos e … adormeceu.

 


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