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A mostrar mensagens de 2019

Pai, a minha história de Natal?

O Mateus estava deitado no sofá. Tinha os olhos brilhantes, dores de cabeça e um dente que se despedia dos outros, suspenso na frágil gengiva, que o rapaz constantemente verificava com a língua. - Pai, podes ver se tenho febre? - Deixa ver… vou buscar o termómetro. ­Daí a pouco, o aparelho sugeriu algum cuidado. - Espera, vou falar com a mãe. Acho que precisas de tomar um remédio para baixar a febre. - Remédio?! - Medicamento. - Não quero nada disso! O pai não respondeu ao protesto. Voltou daí a pouco com um frasco conhecido e uma colher apontada à boca do rapaz. - Água, quero água – suplicou, na tentativa de contrariar o sabor que lhe invadia a boca. Passada a tormenta, voltou a deitar-se. Fechou os olhos, mas deixou escapar um ligeiro sorriso que o pai interpretou imediatamente. - Acho que já estás a ficar melhor! - Pai, já escreveste a história sobre a árvore de Natal? Tu prometeste! Uma história sobre a árvore de Natal… Não, ainda não. As palavras fu

O burro que não queria cenouras e a árvore de Natal

                - Pai, tenho uma pergunta para te fazer.                 - Sim.                 - Porque é que dão cenouras aos burros?                 - Não percebo.                 Queria o pai saber a origem daquela pergunta. É que as perguntas isoladas correm o risco de ficar insatisfeitas. As perguntas trazem o caminho da resposta escondido atrás da inclinação final. É preciso desvendá-lo.                 - Vi uma fotografia num livro.                 - E então?                 - O burro estava preso a uma nora…                 - Sim, um mecanismo para tirar água de um poço…                 - E a minha pergunta é: porque lhe dão cenouras? Tu acreditas nisso?                 O rapaz achava estranho dar cenouras ao animal.                 Cercado assim por aquela estranheza espontânea, suavemente inocente, o pai viu-se obrigado a uma resposta e tratou de encontrar o melhor caminho. Estaria o problema nas infindáveis voltas que o burro dava? Na fugidia cen

O que queres ser quando fores crescido?

Ouvi dizer há dias, uma vez mais, que, no futuro, no teu futuro, irás exercer uma profissão que ainda não existe. Reparei no semblante carregado de quem ao meu lado se sentava, nos acenos afirmativos e nos lábios cerrados. Por momentos, senti que tudo aquilo que te ensinámos, que tudo aquilo que por ti escolhemos, poderia ser um logro; admiti ainda que percorrias uma escola obsoleta, cercada de altos muros, incapaz de ver para além deles. Por momentos, percebi a monstruosidade cometida em cada pergunta que te obrigava a pensar no teu futuro: o que queres ser quando…? Por momentos… apenas por momentos. Afinal, quem me garantiu aos dez anos a profissão que hoje exerço? Dirão que não é nova. Não, não é. Mas o que é hoje afasta-se vertiginosamente do que foi. Além disso, descobri que um dos meus amigos de infância é hoje operador de drones. É que, quando éramos pequenos, a única aeronave não tripulada que conhecíamos era o avião de papel ou a avioneta! Mia Couto diz ser a n

Escuta!

O pai entrou na sala e encontrou-os sofá. À frente deles, o televisor mostrava, quase mudo, abandonado, imagens animadas, coloridas e divertidas: uma menina fazia as maiores travessuras para desespero do urso castanho e simpático. Mas nenhum deles reparava naquelas aventuras, agarrado cada um ao seu monitor. Riu-se o pai, sentando-se num pedacinho do sofá ainda livre, mas riu-se sozinho. Ainda olhou os filhos, esperando companhia, certo de que rir acompanhado redobra a alegria. Desligou o televisor e por ali ficou à espera de que as baterias mostrassem sinais de fraqueza. Reparou depois que nenhum dos filmes chegava ao fim, histórias incompletas, interrompidas e truncadas. Pobres narrativas assim tratadas na ponta dos dedos inquietos e nunca satisfeitos! - O que estás a ver? Silêncio preso aos monitores. - Pai, traz-me uma maçã. Silêncio. Esperava o pai que o filho levantasse os olhos. - Pai, podes trazer-me uma maçã? Silêncio. - Pai?! – protestou. - Diz? - N

Um dia, subi a uma oliveira

Regresso à infância pelo caminho que só as palavras percorrem. São elas o novelo que desenrolo para não me perder. Avanço de olhos fechados. Abri-los é quase tão perigoso como olhar para trás, quem vacila perde a memória prometida. Suave, surge ao fundo, depois da curva. Tinha seis anos. Estava lá o Hélder, o Luís e o Paulo. Atrás da casa dos meus pais, uma oliveira, forte e verde. O tronco guardava orgulhoso as cicatrizes que o tempo ali gravara. O musgo, veludo verde o macio, abraçava-o. Os ramos disputavam o Sol, para ele se levantavam firmes e decididos. - Vamos ver quem trepa mais alto?! O desafio estava lançado. Subimos. Mas nem os gritos de vitória ouvi - um som abafado e um grito sufocado pela dor geraram um silêncio inesperado. - Ele caiu! Ele caiu! – gritou o Hélder, gerando alarme. -Estás bem? – perguntou o Luís, descendo rapidamente. O braço, o braço, não sentia o braço! A minha mãe chegou pouco depois, qual sentinela discreta que reage prontamente

O que é o futuro?

O rapaz aguardava ao fundo do corredor, dava passos sem destino para enganar a espera que sempre o incomodava. Aproximei-me e reparei que fixava o chão, perdido na sua geometria monótona, gasta e quadrada. - Já lhe enviei o texto! – disparou. - Deixa-me confirmar. Sim, era verdade. Observei-lhe o rosto e vi que um sorriso triunfava naquele momento. Afastou-se depois ligeiramente, ensaiando um bailado indeciso, passos que o levavam e traziam, impaciente, esperando a minha reação. - Não vai ler agora, pois não? – sugeriu incerto. O corpo crescera muito e precisava ainda de acertar umas contas com as ideias. Esperou ligeiramente curvado para me ouvir melhor. Naquele momento, o corredor acolhia já mais passos que nos cercavam curiosos, um cerco insistente. - Gosto do título. Certamente abrirá as portas para uma bela história – adiantei. De imediato, o rapaz foi arrastado para o intervalo, para o exterior, desviando-se das perguntas com gestos e sorrisos desligados. Ta

Uma rainha em Dentazes

        Era uma vez… era uma vez?! Sim, era uma vez!                 No tempo em que viviam os netos e os bisnetos de D. Afonso Henriques, era tenente da Terra de Santa Maria a Senhora de Arouca, a rainha Mafalda.                 Por esse tempo, vinha a rainha do Porto para onde partira em romagem à capela de Nossa Senhora da Silva. Lá ia desde criança, no tempo em que a avó, também ela rainha e também ela Mafalda, a mandara construir. Seguia, pois, para o Real Mosteiro de Arouca.                 Mas o dia escurecia e as nuvens anunciavam mau tempo. Tinha passado já o casal de Gaiate quando parou no caminho a comitiva.                 - Real Senhora, é preciso pernoitar neste lugar. Não é seguro continuar a viagem, as mulas e os cavalos precisam de descanso e de alimento. Além disso, em breve, teremos muita chuva que tornará os caminhos perigosos.                 - Meu fiel D. Pio, aceito o que dizeis. Também eu preciso de descanso. Mandai os arqueiros à povoação mais próx

O nome das fontes

A Clara aproximou-se do pai sem ele dar conta. Durante algum tempo, permaneceu atenta às imagens que apareciam no monitor. A dada altura não resistiu: - Pai, Fonte do Rato! Que horror, onde fica? Desprevenido, não sabia se responder à pergunta, se contrariar o espanto negativo, ou se protestar por ser observado. Começou pelo mais fácil: - Esta fonte situa-se aqui em Milheirós de Poiares! - Tem um nome estranho, não achas? – insistiu. Tinha de admitir, era um nome invulgar. - Porque se chama assim? A Clara estava agora encostada ao ombro do pai. Era o tipo de abordagem que gostava de fazer quando as respostas não satisfaziam a sua curiosidade. - Se achas este nome estranho, espera pelos próximos -arriscou, tentando fugir ao cerco. Passou, por isso, às imagens seguintes. A Clara foi soltando gargalhadas cada vez mais divertidas, penduradas no rosto, agarradas aos gestos disparatados. - Fonte da Piolha?! Fonte da Palhaça?! Achava aqueles nomes ainda mais hi

Cinquenta e um centímetros

                - Pai, faz-me uma pergunta sobre mim.                 - Não percebo.                 - Sobre alguma coisa que não saibas.                 - Não é fácil fazer perguntas sobre algo que desconheço.                 - Há muitas coisas sobre mim que tu não sabes.                 - Por exemplo…                 - Pai, assim é fácil!                 O Mateus queria que o pai, qual homem do leme, desvendasse os seus segredos.                  Que enigmas guardaria um rapaz de dez anos?!               Caminhavam os dois na marginal. Terra e mar. Dois mundos lado a lado. O Mateus admirava a indecisão do mar, o pai a insistência – as duas possíveis, faces da mesma moeda.                 O que sabe a terra sobre o mar? O que sabe o mar sobre a terra? A praia, pedaço de terra onde se encontram, um indeciso, outro insistente, guarda os segredos de ambos. Há muito que a brisa do mar procura desvendá-los.                 Caminhavam lado a lado, dois mundos u

O meu filho está falando!

O Mateus estava entusiasmado com o golo que acabara de marcar. Abriu os braços e, por momentos, correu como se voasse, para melhor receber os aplausos. Parou mais à frente para dar corpo à dança que há muito ensaiava com dedicação. Articulava movimentos que o colocavam, por momentos, num sambódromo onde só ele parecia ter palco. De novo posicionou a bola para mais um remate. - Pai, queres ver? Vou bater um pênalti! Olha, estás a ver? E marcou o penálti, a grande penalidade, conseguindo que a bola entrasse num dos extremos da baliza. O rapaz não voou entre os centrais, mas, mais uma vez, abriu as asas e sorriu, para que todo o estádio o visse em grande plano, no ecrã gigante. E de novo a dança e de novo o grito: - Golaço! Que golaço! O pai sorriu e esperou alguns segundos para que o Mateus confirmasse que tinha assistido atentamente ao remate certeiro que acabara de fazer. Antes de entrar em casa, perguntou ainda: - Mateus, quem está a jogar à baliza? - Pai, estás a