Avançar para o conteúdo principal

O nome das fontes





A Clara aproximou-se do pai sem ele dar conta. Durante algum tempo, permaneceu atenta às imagens que apareciam no monitor. A dada altura não resistiu:
- Pai, Fonte do Rato! Que horror, onde fica?
Desprevenido, não sabia se responder à pergunta, se contrariar o espanto negativo, ou se protestar por ser observado. Começou pelo mais fácil:
- Esta fonte situa-se aqui em Milheirós de Poiares!
- Tem um nome estranho, não achas? – insistiu.
Tinha de admitir, era um nome invulgar.
- Porque se chama assim?
A Clara estava agora encostada ao ombro do pai. Era o tipo de abordagem que gostava de fazer quando as respostas não satisfaziam a sua curiosidade.
- Se achas este nome estranho, espera pelos próximos -arriscou, tentando fugir ao cerco. Passou, por isso, às imagens seguintes.
A Clara foi soltando gargalhadas cada vez mais divertidas, penduradas no rosto, agarradas aos gestos disparatados.
- Fonte da Piolha?! Fonte da Palhaça?!
Achava aqueles nomes ainda mais hilariantes.
- De onde vêm esses nomes, pai?
O cerco continuava. Afastá-la não resultaria e seria como soprar sobre a chama de um fósforo, o da curiosidade. Era preciso mantê-la. Além dos nomes inesperados, havia uma agravante: piolho e palhaço ainda se compreenderia, agora piolha e palhaça! Alguém se lembraria das brincadeiras de uma palhaça? E que miúdo se teria já queixado das piolhas que alegremente se passeavam no cocuruto despenteado? Enfim!
Era preciso que a História abrisse as suas memórias e deslindasse estas incógnitas. Dizem que as palavras, as faladas, leva-as o vento. (Às vezes, carrega também as escritas.) É ele o grande Historiador, aquele que guarda todas as nossas narrativas, os nossos segredos. (Talvez a Clio não se importe com este atrevimento.)
Pensava o pai numa resposta quando uma brisa lhe acariciou o rosto. Olhou a filha durante alguns segundos, os suficientes para ela disparar:
- O que foi que eu fiz?!

- Há muitos anos atrás – começou o pai, levado nas asas da brisa –, havia nesta terra várias fontes. Nenhuma delas tinha nome próprio, bastava-lhes o nome comum. Todas corriam para o rio que serpenteava ao fundo do vale que ele próprio desenhava ano após ano.
Um dia, as fontes foram convocadas pela Grande Nuvem Negra. (Diziam que estas nuvens eram negras de esperança). Parou ela no cimo do Outeiro que se elevava junto ao rio, acomodando-se na copa da árvore mais alta. Dali podia ver todas as fontes que cantarolavam nas encostas circundantes. Ao vê-la, sussurraram subterraneamente sobre a sua chegada: o que viria ali fazer a Grande Nuvem Negra? Era bem melhor quando passava, oferecendo a água que logo se infiltrava nos aquíferos para alegria de todas.
- Fontes – começou a nuvem de forma grave e séria-, há muito que vos trago água. Já perdi a conta às vezes que por aqui passei para saciar a sede destas plantas, destas árvores e de todos os animais que sob elas se abrigam. Há muito que reabasteço as vossas reservas! Há muito que sou a razão do vosso canto e do sorriso saciado dos homens que bebem as vossas águas!
Por momentos, as fontes tremeram de expectativa: onde queria chegar a Grande Nuvem Negra com aquelas palavras?
- Fontes, tenho viajado por terras distantes, sobrevoado planícies, altas montanhas, terras áridas e terras verdejantes. Em todas elas encontrei amigas fontes que me receberam com simpatia. De todas sei o nome que guardo com saudade na minha memória.
Em breve, vou retirar-me para a Montanha do Repouso. Por ali vou ficar tempos sem fim, deixando de responder ao sopro dos ventos do Norte, do Sul, do Este e do Oeste. Mas parto muito triste!
As fontes não se atreveram a fazer perguntas. Aquelas palavras fizeram-nas tremer até ao lugar de onde todas partiam, o grande aquífero escondido nas profundezas do mais alto monte.
- Parto triste porque não conheço os vossos nomes! – justificou.
As fontes entreolharam-se espantadas, surpreendidas. Na verdade, nenhuma tinha sido nomeada pelos homens que bebiam a sua água. Era necessário encontrar uma solução. A Grande Nuvem Negra não podia partir sem conhecer o nome de cada uma.
Imediatamente, reuniram sob a presidência da Velha Estalactite que vivia pendurada na gruta de onde sempre as fontes partiam. A elas se dirigiu vagarosamente:

- Tu, a fonte que primeiro as águas da minha gruta alimentam, que nome hás de ter?
- Eu sou procurada pelos homens da terra que aqui trazem os animais a beber e a comer. Por aqui passam longas horas, trazem novas, conversam e contam histórias. Dizem que por aqui a palha é sã, boa para os animais. Eu rego a terra da palha sã.
- Então tu serás a Fonte da Palha Sã! – decretou a Velha Estalactite.
- Palha Sã! Palha Sã! Palhaça! Palhaça! Fonte da Palhaça! Fonte da Palhaça! – aplaudiram as outras fontes.

- Tu, que brotas junto às fronteiras da vizinha terra, para onde todas as vossas águas reunidas no rio vão, diz-me que nome hás de ter.
- Ainda não sei. Ninguém me chama pelo nome próprio. Mas posso dizer-te que todos os dias oiço os suspiros de amor do valente Pio que aqui vem para matar a sede, a dele e do seu cavalo Mais Além. Aqui sempre espera a donzela do seu coração. E, enquanto ela não chega, é nas minhas águas que o Pio se mira, que o Pio se olha.
- Então tu serás a fonte dos amores de Pio. A fonte onde o Pio se olha. A Fonte que o Pio Olha! – ordenou a Velha Estalactite.
- Pio Olha! Pio Olha! Piolha! Piolha! Fonte da Piolha! Fonte da Piolha! - concordaram as outras fontes.

- Tu, que te escondes junto aos caminhos mais apertados, diz-me que nome hás de ter?
- Eu não sou feliz como as minhas irmãs. Há muito que por aqui donzéis e donzelas não se encontram. Mas a minha água é pura e cristalina.
- Porque se afastaram os amores da tua fonte? – quis saber a Velha Estalactite.
- Porque um dia a mais bela donzela desta terra ficou assustada, enquanto enchia o seu jarro. Bem perto da minha bica, ela viu um rato escondido debaixo de uma folha. O grito que deu foi tal que se ouviu em toda a aldeia: “Um raaaaaaaaaato!”. E fugiu para não mais voltar.
- Tu serás a Fonte do Rato – estabeleceu a Velha Estalactite.
- Rato! Rato! Rato! Fonte do Rato! Fonte do Rato! – aprovaram as outras fontes.

- E tu, que corres lá para os lados das pedras levantadas onde os homens ficam para a eternidade, que nome hás de ter?
- Também eu conheço histórias de amor. Junto a mim conversam belas donzelas que choram a ausência prolongada dos seus amigos embarcados ou no fossado.
A que mais me comoveu foi a história de dois irmãos. Também eles esperavam as suas amadas, todas as manhãs, junto às minhas águas puras e frescas. Mas, um dia, elas deixaram de aparecer. Prometidas a cavaleiros distantes, partiram para nunca mais voltar. Então os irmãos, que diziam ser gémeos, não mais abandonaram a minha fonte. Por aqui ficaram à espera. Diziam que o meu canto lhes lembrava as amadas perdidas.
- Tu serás a Fonte dos Gémeos! – determinou a Velha Estalactite.
- Gémeos! Gémeos! Fonte dos Gémeos! Fonte dos Gémeos! – apoiaram as outras fontes.

Acabada a reunião, a Velha Estalactite ordenou que todas as fontes voltassem à presença da Grande Nuvem Negra e se apresentassem.
Ao saber o nome de cada uma, a Nuvem despediu-se serenamente, libertando grossas pingas que logo se infiltraram na gruta da Velha Estalactite. Rapidamente, encontraram a corrente das fontes e se juntaram ao canto que delas brotava.

Enquanto narrava o final desta história, o pai reparou que os olhos da Clara tinham abandonado a sala onde se encontravam. Tinham voado também ao sabor da brisa encantadora que murmurava histórias ao ouvido dos mais atentos.
- Que giro! Como é que sabes essas coisas, pai?
O pai limitou-se a sorrir. Tinha saciado por momentos a curiosidade da menina que em breve voltará com mais perguntas certamente mais sérias. A essas a brisa já não responderá e a deusa Clio também não, pois dizem que adormece repetidas vezes. Fica o trabalho para os Historiadores.

Mensagens populares deste blogue

Pai, quantas ondas tem o mar?

A Clara continuava na água. Abraçava as ondas e deixava-se levar qual capitão à proa do barco da imaginação. Atracava feliz e logo se voltava para sulcar a seguinte. O pai permanecia sentado, observava aquele vaivém e também ele navegava em cada onda que beijava inocentemente a areia. - Pai, viste o meu mergulho? – perguntou, enquanto se aproximava. O pai acenou afirmativamente, evitando as palavras e o olhar. Não queria regressar daquela viagem que a imensidão sempre proporciona. A menina, curiosa, perspicaz, feita de perguntas e saberes nunca satisfeitos, sentou-se e ficou também a olhar. - Estás a ver ou estás a pensar? - As duas coisas… – respondeu o pai, inseguro. - Posso fazer-te uma pergunta? – continuou, procurando melhor posição na areia. - Sim. - Quantas ondas tem o mar? O pai levantou os óculos escuros para ver melhor o rosto da criança e não encontrou sinais de brincadeira. Reparou, sim, na dúvida que permanecia no olhar concentrado e insatisfeito.

Mãe, emprestas-me um beijinho?

A Teresa rodava no centro da sala com os braços esticados sobre a cabeça. Era uma bailarina encantada pela música, rodopiava nos braços da melodia. - Mãe, olha para mim! Vês, já sei dançar! - Linda! Que princesa tão linda! E logo a envolveu num abraço, emprestando-lhe um beijo no rosto. A menina olhou-a de uma forma inesquecível. Nos olhos, um tempo indistinto, um tempo sem tempo que reunia ali todos os tempos. O beijo provocou-lhe uma explosão interior sentida no olhar, uma alegria que se alargava no sorriso e se apertava no abraço que reafirmou à volta do pescoço da mãe. Depois afastou-se para reencontrar-se com os amigos de peluche que aguardavam pela sua imaginação. - Vem cá, pequenino, estás com frio? Agarrou-o, envolveu-o num pequeno cobertor e ofereceu-lhe um beijo demorado. O Mateus também estava na sala. Tinha reparado com curiosidade na irmã e na mãe. - Também me davas beijos assim? Como não obteve resposta, aproximou-se e encostou a cabeça no ombro da m

A primeira aventura do Sapo Toquinhas

O Sapo Toquinhas acordou e ficou muito contente. Estava um dia lindo. O Sol estendia os seus dedos quentinhos até ao rododendro. Era aí que o Toquinhas vivia com os seus pais e a sua irmã Matocas. Avançou então por entre as folhas aos saltinhos com muito cuidado para não ser visto. À sua frente começava a calçada que conduzia até à porta principal da casa. - O que haverá lá dentro? - matutava o Toquinhas. E logo recordou o conselho do Paitocas: "Nunca te aproximes daquela porta!". Mas o Toquinhas olhava a porta grande e castanha e ficava triste porque via que outros animais lá entravam todos os dias. Entrava a mosca, o mosquito, a melga, a lagartixa. Até a formiga lá entrava! Um dia, ficou à espera, quieto como uma pedra. O coração batia apressadamente! Tum! Tum! Tumtum! Tumtum! Tum! Tum! Tumtum! Tumtum! Dali até à porta eram três saltos altos e longos... De repente, viu passar o pai de Mateus com sacos de compras. O homem abriu a porta grande e