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Uma rainha em Dentazes

        Era uma vez… era uma vez?! Sim, era uma vez!
                No tempo em que viviam os netos e os bisnetos de D. Afonso Henriques, era tenente da Terra de Santa Maria a Senhora de Arouca, a rainha Mafalda.
                Por esse tempo, vinha a rainha do Porto para onde partira em romagem à capela de Nossa Senhora da Silva. Lá ia desde criança, no tempo em que a avó, também ela rainha e também ela Mafalda, a mandara construir. Seguia, pois, para o Real Mosteiro de Arouca.
                Mas o dia escurecia e as nuvens anunciavam mau tempo. Tinha passado já o casal de Gaiate quando parou no caminho a comitiva.
                - Real Senhora, é preciso pernoitar neste lugar. Não é seguro continuar a viagem, as mulas e os cavalos precisam de descanso e de alimento. Além disso, em breve, teremos muita chuva que tornará os caminhos perigosos.
                - Meu fiel D. Pio, aceito o que dizeis. Também eu preciso de descanso. Mandai os arqueiros à povoação mais próxima para que nela nos acolham.
                - Farei como mandais, Senhora.
                Partiram os homens em direção ao lugar que mais à frente albergava algumas casas. Ficava junto a um ribeiro que por ali serpenteava dando vida aos campos e a quem deles dependia.
                Depressa voltaram trazendo a notícia de que lá morava um homem-bom que acolheria a Infanta de Portugal e Rainha de Castela com dedicação.
                - Que nome tem esse homem que nesta terra me acolhe?
                - Vossa Alteza será acolhida em casa de Estêvão Pais. Aí, as aias que vos acompanham zelarão pelo vosso conforto, nós pela vossa segurança.
                Partiram então em direção ao casal indicado pelos escudeiros.
                Retemperadas as forças foi tempo de conversar junto à lareira que na sala tornava as noites mais amenas.
                - A gente que aqui vive tem sustento para o inverno que se aproxima? – quis saber D. Mafalda.
                - Alteza, estas terras são fecundas. Temos fartura de trigo e centeio. Vinho também não falta! – assegurou Estêvão Pais.
                - Há pouco passei junto ao cruzeiro onde vi um homem amarrado e ferido. Que crime cometeu para sofrer tal castigo?
                O homem da casa ficou embaraçado, pois era ele um dos jurados que representava o juiz naquela terra e não esperava que a Rainha Mafalda questionasse o seu dever.
                - Aquele homem que vossa alteza avistou tem por nome Fernando Martins, mordomo-menor nestes lugares. Foi publicamente açoitado por ter cometido um crime contra vossa Majestade.
                A Rainha considerou calmamente aquela resposta.
                - Que crime cometeu?
                Estêvão Pais hesitou. Receava que o pobre homem viesse a sofrer castigos ainda mais pesados.
                - Que crime cometeu? – insistiu a rainha.
                - Saiba vossa majestade que Fernando Martins tem ficado com os foros que recolhe em seu nome.
                - Que bens são esses que o condenam aos açoites no cruzeiro?
- Três vezes ao ano, recolhe uma galinha por morador neste casal. Descobriu-se que não as entrega ao mordomo-mor nem no vosso real mosteiro.
- Trazei-o à minha presença – ordenou a rainha.
Saiu imediatamente Estêvão Pais acompanhado por fortes escudeiros. Na sala, ficaram as aias assustadas. O que faria a Senhora de Arouca com aquele homem considerado traidor? Não conseguiam ver no seu rosto qualquer indício. Repararam apenas que orava, serenamente.
- Senhora, trazemos à vossa presença o homem que ousou apropriar-se dos vossos bens.
Fernando Martins permaneceu cabisbaixo, consentindo.
- Onde tendes casa?
- Nesta terra, senhora.
- Que nome tem esta terra?
- Dizem que é terra de antas. Dizem que quem aqui vive é de antas. São pedras levantadas antes de Nosso Senhor Jesus Cristo… serviam de…
- Sei… vi uma no caminho aqui perto – interrompeu D. Mafalda. - Que fizeste aos meus direitos cobrados aos moradores de Antas?
- Senhora, tenho sete filhos ainda pequenos… nem sempre chega o que a terra dá!
A rainha olhou-o fixamente durante alguns segundos. Olhou depois para Estêvão Pais.
- É verdade o que este homem diz?
O homem-bom acenou afirmativamente. A rainha declarou então:
- A todos os presentes faço saber que este homem recolherá aqui em Dantazes os meus direitos e com eles alimentará os filhos enquanto estes forem pequenos. E quando forem adultos os filhos, metade dos meus bens recolhidos por Fernando Martins serão usados para alimentar as crianças de Dentazes. E, não havendo galinhas, que cada morador lhe pague um soldo ou doze dinheiros.
Retirou-se depois a rainha Mafalda para descansar. Os restantes permaneceram em silêncio obediente e desconcertado.
No dia seguinte, a chuva já tinha passado e o Sol secava já o caminho. Junto ao cruzeiro estava o povo reunido para ver partir a rainha que deixava Dentazes em direção ao Real Mosteiro de Arouca.
Voltou ainda a senhora, várias vezes, ao Porto, parando nesta terra que sempre a recebeu com espanto e gratidão.
Era uma vez… era uma vez?! Sim, era uma vez!

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