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O rapaz aprendiz

  Chegava, balançando em cada degrau, vagarosamente, como quem conta secretamente os degraus que teimavam em manter-se ali, obrigando-o à necessária subida. Podiam ser menos, mas não levariam tão alto. Levava a mochila às costas, presa por uma só alça. Parecia uma bola vazia, desocupada. Apenas um caderno preto e um estojo maltratado com restos de materiais com que se entretinha durante as aulas: uma borracha à beira da extinção, um lápis diminuto, uma esferográfica despida, reduzida à carga atacada por dentadas insistentes. Aproximou-se do banco de espera e ocupou o lugar habitual. Tirou do bolso o telemóvel e ali ficou longos minutos, enquanto assistia ao desfile de imagens que deslizavam pelo ecrã. Pedaços de humanidade desligados, distantes, instantes. Uma espécie de narrativa sem tempo, sem espaço. Um carrossel de êxtases sem circunstância, como se tudo ali se reduzisse ao ponto culminante. Nada antes, nada depois. Não havia causas, não havia consequências. E o rapaz lá contin

A ilha cheia de graça

  As malas seguiram alinhadas pelo corredor. Respeitavam o silêncio ensonado que a colorida alcatifa acentuava. Ao fundo, a grande janela recortava o Pico rodeado de nuvens, sentinelas que vigiavam o seu sono. - Adeus, Pico! Gostámos muito de te conhecer! – despediu-se a Teresa, transferindo de imediato a aquela imagem para o álbum das memórias favoritas. - Tomamos rapidamente o pequeno-almoço; às sete e trinta, temos de estar no aeroporto – organizei-me, enquanto o elevador nos conduzia ao piso zero. O voo das oito e vinte levantou pontualmente para, pouco depois, aterrar na Terceira. Seguiu-se a ligação para a Graciosa. Voo curto e agradável. Notava-se até uma certa expectativa nos viajantes que ocupavam o pequeno avião. Alguns vinham espantosamente aparelhados para explorar a ilha: potentes máquinas fotográficas, calças e botas para caminhadas exigentes, camuflados impermeáveis. Olhavam constantemente pelas pequenas janelas, analisando e comentando cada centímetro que a terra

Água, meu senhor, apenas água!

  O avião aproximou-se, inclinando-se ligeiramente como quem acena ao amigo que revê. Acompanhou as encostas escarpadas e desenhadas pelas ondas insistentes, da terra sempre desejosas. Daí a pouco agarrou-se ao chão como um filho em queda agarrado pela mãe e, por fim, amainou. Os viajantes saíram ordenadamente, os que procuravam ver e os que procuravam andar e chegar. Nós queríamos ver e chegar devagarinho. Chegar em todos os sentidos, com todos os sentidos, chegar com espanto! Primeiro o olhar, agarrado à cor da terra prometida, das folhas e das flores! Depois os outros quase todos num confundidos ! Da terra escura e dura, teimava o mais orgulhoso verde! Por entre as misteriosas cercas de pedra, venciam os cachos, aninhados entre as parras incrivelmente viçosas. A via que nos levava rompia por um jardim incessante que brotava em cada margem e que parecia querer esconder aquele solo negro e destoante. - O Pico fica do nosso lado esquerdo! – incentivei. - Não o vemos, está rodea

Conversa junto à janela

  A televisão continuava abandonada. Fora encostada à parede, como um quadro que já ninguém observa. A um canto da sala, junto à janela, o rapaz fitava o ecrã do seu telemóvel, divertia-se com os comentários sarcásticos de um youtuber sobre futilidades. - Pai, e se nós ficássemos sem passado e sem futuro? Achas possível? Por momentos, o olhar de um procurou o do outro para confirmar as perguntas e aguardar as respostas. O rapaz voltou ao cómico acessível, deixando para o adulto a dificuldade da busca. Talvez aquelas perguntas tenham surgido do novo abecedário que a televisão soletrava e que ainda não era o alfabeto, o alfa e o ómega. - O que queres dizer com “nós”? – perguntou o pai, dando o primeiro passo nessa demanda. - Cada pessoa, cada um de nós… Continuava difícil encontrar o caminho que a pergunta exigia. Parecia-lhe impossível apagar as pegadas, as marcas da passagem individual ou coletiva, boas ou más, a história da vida de cada um ou de cada coletividade. Parec

Antonomásia!

  -           Antonomásia, não faças isso! A Sinédoque estava escandalizada com o comportamento da irmã mais nova. Chamou a Metonímia que estava escondida no fundo da página onde os dedos se juntam para virá-la: - Vem comigo, a Antonomásia está descontrolada, tem o campo semântico muito próximo do mais baixo nível, pertinho do mau gosto.   O Mateus continuava a fixar a página, uma imagem parada que escondia o rebuliço que começava para lá do seu olhar.   Encontraram-na evidente na segunda linha. - Para – pediu novamente a Sinédoque. Sabes que o rapaz fica angustiado e anda sempre por aí cabisbaixo. - Não percebo a vossa preocupação. Ele é pequenote! E eu apenas disse que o pequenote chegou a casa... Ah!... Percebi! Preferias que o tratasse de forma grandiosa e distinta, grandiloquente: o sábio grego , o pequeno sábio, o sábio pequenote chegou a casa! - brincou a Antonomásia, dramatizando.   - Mãe, sabes quem é o sábio grego , certo? - perguntou o Mateus, abandonando

A formiga quase retida

          A Musculosa orientava as buscas naquela manhã brilhante e fresca. Seguia as indicações partilhadas pelas batedoras e avançava com determinação. Um  dois um dois Nós marchamos todas juntas Um  dois um dois À procura de sustento Um  dois um dois Ninguém fica para trás Um  dois um dois Ninguém fica sem alento Um  dois um dois   - Alto! A ordem da Musculosa percorreu o pelotão que prontamente obedeceu.   Um  dois um dois O perfume que me encanta Um  dois um dois Vem por certo desta flor Um  dois um dois Vou subir por este caule Um  dois   - Alto! – gritou novamente a Musculosa, não conseguindo parar a formiga aprendiz que naquele momento já se desviara do carreiro. O pelotão atónito seguiu-a com o olhar.                        Um  dois Ai que folha tão macia Um  dois um dois Ai que cor tão refrescante Um  dois um dois - Formiga aprendiz, desce imediatamente! Temos de marchar todas juntas. Aí não encontras alimento.  

O segredo das formigas

O Mateus desceu as escadas para anunciar com moderada preocupação: - Andam formigas lá em cima! Deixou a informação e dirigiu-se para a cozinha, sem dar tempo às perguntas. Ao responder-lhes ficaria implicado na solução, por isso, decidiu abandonar a sala.   O pai levantou-se então e dirigiu-se ao local para observar a gravidade da situação. Rapidamente encontrou e reconheceu o pelotão organizado e determinado que atravessava o corredor junto ao quarto do filho. Ao comando seguia a formiga Musculosa: É sempre com atenção Que saímos à procura Da nossa alimentação, Sempre de forma segura.   No carreiro, nos mantemos, Temos sempre onde ir; É segredo que nós temos, Ninguém pode descobrir.   Cada verso era um grito de união marcado pelo ritmo acertado da marcha. E o pai já os conhecia de outras visitas que a Musculosa tinha conduzido ao interior da casa. Curioso, seguiu a fila para descobrir o objetivo daquela incursão. Um pouco mais à frente, a Musculosa deu ord

Música para os nossos ouvidos!

  - Há um concerto no Centro Cultural no próximo sábado. Podemos fazer a reserva dos bilhetes neste site . O silêncio do ouvinte provocou outra tentativa. - Música de câmara por solistas da Casa da Música… flauta, clarinete, trompa, fagote… Meninas, também querem ir? - Se vocês forem, com quem é que nós ficamos? É à noite? – inquietou-se a Clara. - Vamos todos - arriscou a mãe sem hesitar. O pai ia reagir, mas não teve tempo. A mãe entregou-lhe o telemóvel para fazer a reserva - há sorrisos irremediáveis.  Iam ao concerto! A Teresa e a Clara abriram os olhos de espanto. Alguém queria protestar? Era a última noite de abril. Chegava depois de um dia quente, brilhante. O jardim, exuberante, deslumbrava os sentidos! A comunhão das cores, as formas limpas e perfeitas, os perfumes intensos e puros, lugar onde os sons desalinhados encontravam o compasso certo, a sinfonia sempre desarmante, debutante. O auditório mostrou-se acolhedor. E o silêncio era confortável, uma clareira onde as melodias

Leonor, Leonoreta

  As palavras vaguearam pela sala, borboletas sensíveis em busca das flores dispostas e entusiasmadas com o Sol. Tinha chegado o momento. Finalmente, Leonor passava descalça para a fonte. Sustentava na cabeça o pote, na mão direita levava o testo. Passava formosa, discretamente envergonhada, secretamente ousada. Passava, ia para a fonte.     Observei-os demoradamente junto àquele caminho verdejante, onde as palavras sussurravam nas suas conchas puras e era preciso encostá-las ao ouvido para escutar o seu eco distante. Traziam ainda as conversas na fonte, as promessas de amor, as saudades do amigo ausente.    E Leonor passava, ia buscar água. Mas ninguém parecia reparar nos pés descalços, endurecidos, seguros em cada passada.  Ninguém fitava o pote vazio, ninguém apontava o duro esforço - chegar à fonte, encher o vaso, levar água para casa!   E lá ia Leonor. Trazia a saia de cote, a saia de todos os dias, sempre branca, sempre pura. A outra, se a tivesse, aguardaria pelos dias de fest