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Conversa junto à janela

 



A televisão continuava abandonada. Fora encostada à parede, como um quadro que já ninguém observa.

A um canto da sala, junto à janela, o rapaz fitava o ecrã do seu telemóvel, divertia-se com os comentários sarcásticos de um youtuber sobre futilidades.

- Pai, e se nós ficássemos sem passado e sem futuro? Achas possível?

Por momentos, o olhar de um procurou o do outro para confirmar as perguntas e aguardar as respostas.

O rapaz voltou ao cómico acessível, deixando para o adulto a dificuldade da busca. Talvez aquelas perguntas tenham surgido do novo abecedário que a televisão soletrava e que ainda não era o alfabeto, o alfa e o ómega.

- O que queres dizer com “nós”? – perguntou o pai, dando o primeiro passo nessa demanda.

- Cada pessoa, cada um de nós…

Continuava difícil encontrar o caminho que a pergunta exigia. Parecia-lhe impossível apagar as pegadas, as marcas da passagem individual ou coletiva, boas ou más, a história da vida de cada um ou de cada coletividade. Parecia-lhe impossível barrar o sonho, o que há de vir, o desejo sempre ávido da forma que o torna presente.

- Não percebo. Temos um passado dinâmico, em renovação constante; temos um futuro, esse tempo que sempre nos escapa, que segue à nossa frente, qual claridade que projetamos quando corremos pela noite escura. Para lá desse círculo luminoso, tudo parece informe, escuro. E não me parece que possamos apagá-los...

- Pai, por favor! Não comeces com essas acrobacias mentais!

- Estás a falar da possibilidade de uma catástrofe que aniquile a humanidade, destruindo as vidas e o conhecimento reunido nos mais diversos suportes?

Não, o rapaz não se referia a tal possibilidade.

- Estou a falar mais em termos biológicos.

As perguntas pareciam agora mais circunscritas. E o adulto deixou que o silêncio fizesse o seu trabalho. Ocorreram-lhe então algumas das possibilidades que atormentariam o pensamento do adolescente. Falaria de ascendência, de descendência? O rapaz encolheu afirmativamente os ombros. Poderia ir por aí se quisesse.

- Mas existem muitas pessoas que não querem ou não podem ter descendência, por vários motivos.

- Sim…

- Queres dizer que estes, de certa forma, não têm futuro? Parece-me que estás a ser cruel, insensível.

- Falo dos que podem e não querem, para usar a tua linguagem, dos que desligam a lanterna, deixando que a escuridão os anule, os agarre na linha do tempo.

O que preocupava aquele rapaz parecia fazer algum sentido. Era afinal uma forma de não avançar pelo tempo que há de vir. Pelo menos daquela forma descendente. Sabia que os ideais, os exemplos, uma determinada organização podem ter continuidade, podem ter defensores, seguidores, descendentes, portanto, mas não da forma como ele via o problema. E ficou por momentos a pensar nas consequências da massificação dessa opção.

- Sim, no limite, por velhice, podemos anular um país, acabando a escola que assegura a identidade coletiva, impossibilitando o exército, a segurança social, a saúde, … Percebo, portanto, o que queres dizer quanto ao futuro, que as opções e decisões radicam na vontade de cada indivíduo, mas estas poderão tornar-se, a dada altura, um obstáculo sério ao exercício dessa liberdade, abalados que ficam os pilares sociais.

Voltou por momentos ao novo abecedário e preocupou-se também com a ausência desta possibilidade.

E o passado? Ficaria para mais tarde. A ascendência era outra fronteira cada vez mais demarcada, com obstáculos cada vez mais acentuados.

- Posso desligar a televisão?

Não, não podia. Nem a necessária conversa sobre o que transmitia. 

Afinal, não estava tão abandonada quanto parecia.


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