As malas seguiram alinhadas pelo corredor. Respeitavam
o silêncio ensonado que a colorida alcatifa acentuava. Ao fundo, a grande
janela recortava o Pico rodeado de nuvens, sentinelas que vigiavam o seu sono.
- Adeus, Pico! Gostámos muito de te conhecer! – despediu-se
a Teresa, transferindo de imediato a aquela imagem para o álbum das memórias
favoritas.
- Tomamos rapidamente o pequeno-almoço; às sete e
trinta, temos de estar no aeroporto – organizei-me, enquanto o elevador nos conduzia ao piso zero.
O voo das oito e vinte levantou pontualmente para,
pouco depois, aterrar na Terceira. Seguiu-se a ligação para a Graciosa. Voo
curto e agradável. Notava-se até uma certa expectativa nos viajantes que ocupavam
o pequeno avião. Alguns vinham espantosamente aparelhados para explorar a ilha:
potentes máquinas fotográficas, calças e botas para caminhadas exigentes,
camuflados impermeáveis. Olhavam constantemente pelas pequenas janelas,
analisando e comentando cada centímetro que a terra graciosamente lhes oferecia.
Eu sorri discretamente, procurando esconder uma certa vergonha por não vir
assim preparado. Mas logo me satisfez a ideia de que me fazia acompanhar pelas
mais inquietas e curiosas objetivas. Mas teria com certeza dificuldade na
camuflagem, na cor e no som!
- Pai, estamos a descer – interrompeu o Mateus. –
Porque estás a sorrir?
- Espera-nos uma grande aventura! – foi a reação
possível, enquanto passava em revista os passageiros que nos circundavam.
- Pai… - admoestou-me o rapaz, colocando na palavra aquela
curva melódica ascendente e reprovadora.
Santa Cruz da Graciosa. Chegámos. Seguimos pouco depois
no táxi que já nos esperava. Uma espantosa calma e um sorriso demorado. Um
olhar quieto e disposto a ouvir-nos. Um movimento sábio e seguro de quem
conhecia cada ruga daquelas ruas. Assim era o homem que nos conduziu ao hotel. Era
como se em cada viagem começasse uma nova narrativa que dolorosamente interrompia
às portas do hotel.
- Aqui estamos – avisou depois de estacionar junto à
receção.
Quis pagar, pois não sabia com segurança se a agência
de viagens já o tinha feito. Não aceitou. Que não me preocupasse, voltaria ali
várias vezes. Despediu-se como quem acolhe um amigo em sua casa.
Imediatamente procurei saber se estava pago o
transporte. Não estava. Liguei-lhe.
- Não se preocupe. Passo aí no hotel daqui a pouco.
Nessa altura, entro em contacto.
Gracioso.
Ao fim da tarde, recebi uma nova, desta vez, com alguma
graça. Estava estacionada num lugar discreto junto à receção.
- Aqui tem as chaves e toda a
documentação necessária. Divirtam-se! Devolve no dia da partida no
aeroporto.
- Obrigado! - agradeci, poupando nas palavras, já que o
espanto ocupava muitas outras.
- Pai, tu sabes conduzir esta... parece um autocarro! -
gracejou a Clara.
Entrámos todos. No início, havia um silêncio avaliador
e desconfiado. Todos reparavam nos movimentos que eu fazia para domar aquela
viatura inesperada.
- Não achas esta rua muito estreita? Lá em cima tens
espaço para fazer inversão de marcha?
Sim, havia muito espaço no alto, junto à Ermida de
Nossa Senhora da Ajuda, onde saímos para sentir o silêncio vagaroso que nos acolhia.
Dali o longe ganhava espaço e tempo. Em cada extremo da ermida, o mar, em cada
vigia, a despedida de quem ia e de quem ficava. Os acenos e as palavras
permaneciam ainda na brisa que nos tocava e em cada pedra que ali resistia
firme e quieta, senhora, partem tão tristes…
Daí a pouco, descemos e voltamos ao hotel. Trazíamos
mais tempo no olhar, enquanto o mar teimava em bailar sempre ao nosso lado.
No dia seguinte, pela manhã, percorremos a costa
nordeste em direção à piscina natural do Carapacho. Antes de descermos para
encontrarmos os edifícios agarrados serenamente ao promontório brutalmente
recortado, parámos no Farol da Ponta da Restinga. Naquele topo, o infinito
ganhava forma e dava sentido à pequenez que nos agarrava àquela terra que
teimou emergir das profundezas.
A piscina acolhia já alguns veraneantes que nos olharam
com alguma esperança que cedo se foi encolhendo. Nada como uma boa gargalhada e
mergulhos desalinhados. De quando em vez o mar juntava-se à festa enviando
curiosas ondas que invadiam o território da piscina. Não tardou e mais crianças
foram chegando. Estava imparável a festa. As senhoras arrumadas e de touca
posta foram-se concentrando na escadaria agarradas ao corrimão para o que desse
e viesse, sorrindo espantadas com aquela folia.
Ao início da tarde, arrancámos para a Furna do Enxofre.
Subimos a encosta da caldeira como quem se aproxima dos limites do mundo
desvendado. E entrámos no túnel como invasores das entranhas rudes de um ser
brutal. A abóbada apertava-nos na sua irregularidade ameaçadora e parecia
trazer de longe um eco colossal, ó gente ousada, … pois os vedados términos
quebrantas, e navegar meus longos mares ousas, … ouve os danos...
- Pai, o que há do outro lado?
Emergimos pouco depois na terra cercada onde a natureza
se levantava orgulhosa, verde, densa. Um lugar estranho que nos estranhava. Ali
o tempo permanecia quieto. O silêncio das árvores alinhadas, o canto sossegado das aves, o amarelo brilhante das rocas, o silêncio
pasmado em cada pedra alinhada ao longo da estrada, lembravam-me uma
procissão. E éramos nós que passávamos.
Descemos.
E a nossa pequenez foi ganhando forma no olhar redondo
e desconfiado de cada um.
-
Parece que estamos no fundo
de uma panela! - reagiu a Clara.
E descemos pela torre que mais parecia um farol esquecido
que há muito deixara de ver o mar. Quase duas centenas de degraus e era como se
percorrêssemos as curvas de um parafuso penetrante naquelas entranhas colossais.
Eis a caverna! Lávica! Aninhada a um canto, a fumarola! Todos os sentidos
agarrados num só, espantados. A pequenez amarrava-nos ao chão daquela grandeza.
Mais uns minutos de assombro e voltamos a emergir.
- Mãe, lembras-te do gigante do Pico, aquele que
parecia adormecido? - perguntou a Clara.
Claro! Não era fácil esquecer as suas feições agrestes.
- Descobri onde ele prepara as refeições! Aquela fumarola
serve para isso...
- Clara, por favor! Só te falta dizer que cozinha em
banho-maria!
- Com aquele cheirinho a enxofre, deve ficar uma
delícia! - intrometeu-se a Inês.
Passámos o túnel e regressámos ao hotel. O silêncio era
sinal de que todos organizavam secretamente as imagens capturadas.
No dia seguinte, quando levantámos voo para regressar a
casa, reparei que o gigante do Pico se banhava nas águas calmas do oceano. Também
ele parecia sereno: no Pico, o cocuruto e a sua longa barba boiando lentamente,
no Faial, um dos ombros, em São Jorge, um dos braços parcialmente descoberto,
na Terceira, o joelho esquerdo e, na Graciosa, um tornozelo. Cuidava com
certeza dos seus vedados términos.
E desta vez uma lágrima percorreu o meu rosto, enquanto
deixava sossegado o vigilante colossal. E lá seguimos, guardando no regaço
as pessoas, as memórias ímpares daquelas terras cheias de graça.