O avião aproximou-se, inclinando-se
ligeiramente como quem acena ao amigo que revê. Acompanhou as encostas
escarpadas e desenhadas pelas ondas insistentes, da terra sempre desejosas.
Daí a pouco agarrou-se ao chão como um filho em queda agarrado pela mãe e, por
fim, amainou.
Os viajantes saíram
ordenadamente, os que procuravam ver e os que procuravam andar e chegar. Nós
queríamos ver e chegar devagarinho. Chegar em todos os sentidos, com todos os sentidos, chegar com
espanto! Primeiro o olhar, agarrado à cor da terra prometida, das folhas e das
flores! Depois os outros quase todos num confundidos!
Da terra escura e dura,
teimava o mais orgulhoso verde! Por entre as misteriosas cercas de pedra,
venciam os cachos, aninhados entre as parras incrivelmente viçosas. A via que
nos levava rompia por um jardim incessante que brotava em cada margem e que
parecia querer esconder aquele solo negro e destoante.
- O Pico fica do nosso lado
esquerdo! – incentivei.
- Não o vemos, está rodeado
de nuvens! – lamentou-se a Clara.
Sim, estava completamente
cercado. As nuvens tinham sido convocadas para uma reunião e ali permaneciam
ordenadas em círculo, aguardando o vento que regressava dos extremos. E o Pico
era ali o comandante atento e calado. Ouvido o vento, logo mandaria dispersar
as nuvens certas da missão que nesse dia lhes cabia.
- Pai, falta muito?
- Olhem estas flores! As hortências
e as rocas! Lindíssimas! – exclamou a mãe.
- Parece que viajamos nos
jardins de um palácio encantado! – concordou a Teresa.
A vila capital que se
agarrava à terra junto ao Atlântico acolheu-nos no seu sossego lento e
brilhante. Chamava-se Madalena!
Pouco tempo bastou para voltarmos à estrada. Desta vez, esperava-nos a freguesia de São Caetano. A ilha parecia um gigante adormecido, ligeiramente encolhido e de rosto escondido. A montanha que lhe dá nome era o cocuruto da sua cabeça agora repousada. Acolheu-nos o casario branco raiado pela pedra escura. E todas as janelas nos observavam; estranhavam as nossas vozes e os nossos passos. Qualquer movimento que altere o voo das aves ou a voz do mar é de imediato detetado naquele sossego sem tempo e sem pressa. Estávamos ali, nas barbas do Pico. Era aquela vegetação agarrada aos íngremes declives a barba rija e densa do gigante. A mim apetecia-me fazer silêncio para ele não acordar.
Em silêncio, saímos da estrada regional em direção ao mar, pela rua que nos levava até à adega onde já nos esperavam. O Sol desaparecia no horizonte e, naquele momento, tudo era terra e mar, mar e terra. Estacionámos. A casa lá estava ressurgida da adega que antes fora espaço para acolher e transformar as uvas que venciam nos currais de pedra que as abrigavam.
Havia um sorriso transparente naquela mulher que nos
estendeu os braços, havia nos seus olhos as ondas do mar que transbordaram de
alegria, percorrendo lentamente as margens. Havia naquele homem a paz de quem
recebe e nos quer contar histórias. Histórias que levam tempo a contar,
histórias que nos obrigam a ficar. Histórias sobre plantas que ali ousavam dar
fruto.
No dia seguinte, pela
manhã, percorremos a estrada central da ilha. Repentinamente, o Sol deu lugar
às nuvens e pouco depois mergulhámos no denso nevoeiro. Era tal a cerração que
por segurança tínhamos apenas o negro da estrada secundária, estreita e que
parecia não ter fim. Seguimos rodeados por pastagens misteriosas, certos de que
desembocaríamos no limite oriental.
- Pai, tens a certeza de
esta estrada tem saída, não será melhor ligares o GPS? – perguntou a Inês depois de algum tempo sem ver o Sol, sem ver o desejado Pico.
- Só mais um pouco. Estamos
quase a chegar – respondi com a convicção possível.
Continuámos em silêncio.
Restava-nos a introspeção, imaginar as parcelas verdes calmamente percorridas
pelas vacas lentas e serenas. De quando em vez, a passagem estreita sobre uma
ribeira que sacudia o carro dada a natureza irregular do piso. Foram várias
nesta estrada a que chamaram das lagoas. Não as vimos.
Desvendadas a noite e a
cerração, As tormentas passadas e o mistério, Abria em flor o Longe, e o Sul
sidério Esplendia sobre as naus da iniciação. Neste caso, resplandeciam a
costa norte e a maravilhosa estrada número um!
Depressa contornámos a ilha
e, ao final da manhã, voltámos a São Caetano. E só um suspiro longo e sorridente agradece aquele não querer mais que bem querer. Foram as histórias
daquela gente sábia que não se deixou enclausurar pelo mar. Enamorou-se dele e
com ele foi partindo e com ele foi voltando. E tantas histórias, tantas
lágrimas felizes, tantas lágrimas dolorosas. Que bom ouvi-las!
- Mãe, podemos ir à piscina
natural? Fica ao fundo desta rua - pediu o Mateus.
Fomos todos. Reparei que o
mar estava sereno, brincava com os rochedos e calmamente invadia o espaço
recolhido da piscina que ele próprio construíra. Seria ali que o gigante se
revia ao espelho? Seria ali que o mar lhe segredava as notícias que trazia de
longe?
- Pai, vens? A água está
boa! – desafiou o Mateus.
Uma onda inesperada inundou-me as sapatilhas, enquanto ajudava a Teresa. Não restava alternativa. Fui também.
Largar aquela gente foi
como deixar em terra quem nos quer bem. Um aperto bom no coração. Uma lágrima
brilhante que já tinha aprendido com as marés daquele maravilhoso lugar.
Ai se o gigante adormecido
observasse nesse momento os meus olhos!
- O que levas tu nesse
olhar? - perguntaria desconfiado.
- Água, meu senhor, apenas
água! – responderia atrapalhado.
E uma lágrima percorreria o
meu rosto, sossegando o vigilante colossal. E lá seguiria eu, guardando no meu
regaço a terra, as pessoas, as memórias ímpares daquele lugar, facilmente
visíveis nos vestígios que a lágrima deixaria no rosto e no coração depois de secar.
Regressámos a Madalena. No
dia seguinte, voltaríamos à estrada.