Avançar para o conteúdo principal

Antonomásia!

 


-          Antonomásia, não faças isso!

A Sinédoque estava escandalizada com o comportamento da irmã mais nova. Chamou a Metonímia que estava escondida no fundo da página onde os dedos se juntam para virá-la:

- Vem comigo, a Antonomásia está descontrolada, tem o campo semântico muito próximo do mais baixo nível, pertinho do mau gosto.

 

O Mateus continuava a fixar a página, uma imagem parada que escondia o rebuliço que começava para lá do seu olhar.

 

Encontraram-na evidente na segunda linha.

- Para – pediu novamente a Sinédoque. Sabes que o rapaz fica angustiado e anda sempre por aí cabisbaixo.

- Não percebo a vossa preocupação. Ele é pequenote! E eu apenas disse que o pequenote chegou a casa... Ah!... Percebi! Preferias que o tratasse de forma grandiosa e distinta, grandiloquente: o sábio grego, o pequeno sábio, o sábio pequenote chegou a casa! - brincou a Antonomásia, dramatizando.

 

- Mãe, sabes quem é o sábio grego, certo? - perguntou o Mateus, abandonando por momentos a prosa agarrada à folha que ele afagava entre o indicador e o polegar.

Não esperou pela resposta. Afinal não podia perder a disputa que opunha as três irmãs. E tão parecidas eram de figura que o rapaz mal as distinguia.

 

-  Os pais é que se veem gregos para te tornar distinta! - interveio prontamente a Metonímia.

- Muito importantes as meninas! A vossa eloquência é incomparável: ainda ontem vos vi agarradas às palavras mais sublimes de todas. - As mais velhas mantiveram a postura séria e elevada, como se nada tivessem entendido. A mais nova continuou. - Tu, por exemplo, ontem disseste que o rebanho tinha trinta cabeças... Um horror, coitadas das ovelhas! E tu, na semana passada, afirmaste que o Eufemismo estava a precisar de beber um copo com os amigos!

A Sinédoque e a Metonímia entreolharam-se espantadas.

 

- Mãe, sabes o que é uma antonomásia? Uma sinédoque? E uma metonímia?... A mim parecem-me nomes de medicamentos. Duas antonomásias por dia nem sabe o bem que lhe fazia... depois das refeições, claro – brincou o Mateus.

- Não sei bem... figuras de estilo… recursos expressivos. Será melhor consultares uma gramática ou um dicionário.

Acenando afirmativamente, o Mateus agradeceu o conselho e voltou a fitar a página.

 

- Sabes muito bem que essas expressões foram proferidas numa conversa informal com outras figuras. Não baixamos a esse nível quando nos passeamos pelas páginas ímpares das nossas melhores obras. E o Eufemismo anda cansado de suavizar as coisas. Apresenta perturbações preocupantes e, de um momento para o outro, pode tornar-se cruel, como o tio…

- O Disfemismo? – antecipou-se a Metonímia.

- Sim - continuou a Sinédoque. – Por isso é que eu disse que ele precisava de beber um copo, de descontrair, de falar com os recursos amigos.

Mas a Antonomásia não se dava por vencida.

- Não vejo grande diferença entre as vossas palavras e as que eu selecionei aqui nesta página. Não estou a fazer má figura!

- Não vês!? Nós não deixamos as nossas linhas sem um motivo sério! Repara bem, o petiz tem um nome próprio e é esse que deves usar! Se pretendes identificá-lo através de uma característica, procura uma que o promova, que o deixe feliz… O diminutivo que usas é um recurso pouco fiável. Às vezes, é doce, carinhoso, mas, repentinamente, torna-se cruel e arrasador. E o adjetivo disfarçado de nome que empregas no diminutivo é malicioso. Como já disse, o rapaz não gosta que o tratem assim, por isso anda atribulado. Vês agora como és uma figura que faz uma péssima figura?!

- Pequenote! – rematou a Metonímia que encontrou no rosto da Antonomásia uma ligeira expressão de quem não estava a entender.

- Percebi! Reagiu a mais nova. Vou emendar, fiquem descansadas. Não passa da próxima revisão textual. Mas vou estar atenta porque também vos apanharei em falta com facilidade. Sei que gostam de passear pelos níveis mais correntes.

- Mas não costumamos ofender… - cortou a Sinédoque.

A Antonomásia fechou as janelas e encerrou-se no interior da linha à espera da próxima revisão.

 

O Mateus virou a página e continuou a ler. Tinha prometido ler pelo menos dois capítulos.


Mensagens populares deste blogue

Pai, quantas ondas tem o mar?

A Clara continuava na água. Abraçava as ondas e deixava-se levar qual capitão à proa do barco da imaginação. Atracava feliz e logo se voltava para sulcar a seguinte. O pai permanecia sentado, observava aquele vaivém e também ele navegava em cada onda que beijava inocentemente a areia. - Pai, viste o meu mergulho? – perguntou, enquanto se aproximava. O pai acenou afirmativamente, evitando as palavras e o olhar. Não queria regressar daquela viagem que a imensidão sempre proporciona. A menina, curiosa, perspicaz, feita de perguntas e saberes nunca satisfeitos, sentou-se e ficou também a olhar. - Estás a ver ou estás a pensar? - As duas coisas… – respondeu o pai, inseguro. - Posso fazer-te uma pergunta? – continuou, procurando melhor posição na areia. - Sim. - Quantas ondas tem o mar? O pai levantou os óculos escuros para ver melhor o rosto da criança e não encontrou sinais de brincadeira. Reparou, sim, na dúvida que permanecia no olhar concentrado e insatisfeito.

Mãe, emprestas-me um beijinho?

A Teresa rodava no centro da sala com os braços esticados sobre a cabeça. Era uma bailarina encantada pela música, rodopiava nos braços da melodia. - Mãe, olha para mim! Vês, já sei dançar! - Linda! Que princesa tão linda! E logo a envolveu num abraço, emprestando-lhe um beijo no rosto. A menina olhou-a de uma forma inesquecível. Nos olhos, um tempo indistinto, um tempo sem tempo que reunia ali todos os tempos. O beijo provocou-lhe uma explosão interior sentida no olhar, uma alegria que se alargava no sorriso e se apertava no abraço que reafirmou à volta do pescoço da mãe. Depois afastou-se para reencontrar-se com os amigos de peluche que aguardavam pela sua imaginação. - Vem cá, pequenino, estás com frio? Agarrou-o, envolveu-o num pequeno cobertor e ofereceu-lhe um beijo demorado. O Mateus também estava na sala. Tinha reparado com curiosidade na irmã e na mãe. - Também me davas beijos assim? Como não obteve resposta, aproximou-se e encostou a cabeça no ombro da m

A primeira aventura do Sapo Toquinhas

O Sapo Toquinhas acordou e ficou muito contente. Estava um dia lindo. O Sol estendia os seus dedos quentinhos até ao rododendro. Era aí que o Toquinhas vivia com os seus pais e a sua irmã Matocas. Avançou então por entre as folhas aos saltinhos com muito cuidado para não ser visto. À sua frente começava a calçada que conduzia até à porta principal da casa. - O que haverá lá dentro? - matutava o Toquinhas. E logo recordou o conselho do Paitocas: "Nunca te aproximes daquela porta!". Mas o Toquinhas olhava a porta grande e castanha e ficava triste porque via que outros animais lá entravam todos os dias. Entrava a mosca, o mosquito, a melga, a lagartixa. Até a formiga lá entrava! Um dia, ficou à espera, quieto como uma pedra. O coração batia apressadamente! Tum! Tum! Tumtum! Tumtum! Tum! Tum! Tumtum! Tumtum! Dali até à porta eram três saltos altos e longos... De repente, viu passar o pai de Mateus com sacos de compras. O homem abriu a porta grande e