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Noite de
consoada. Chegamos a casa do meu avô ao final da tarde. A minha mãe já lá
estava. Viera mais cedo para ajudar nos preparativos. Já não eram novidade para
mim aquelas panelas enormes onde as batatas, as couves e o bacalhau se
cozinhavam, libertando um aroma inconfundível. As tradicionais sobremesas
estavam já expostas e alinhadas no aparador da sala de jantar. A mesa esperava
preparada para acolher os comensais.
Era uma
noite especial. Os meus primos apareciam sempre repletos de cenas para contar e mostrar. A casa
parecia sorrir tal era a alegria que a preenchia. Os espaços quase desabitados durante
o ano eram agora invadidos por conversas ruidosas. Continuavam abandonados
apenas aqueles que resistiam à tecnologia wi-fi.
- Então,
Pedro, ouvi dizer que tramaste a vida a uns tipos lá da tua escola - intrometeu-se
o Tomás.
Eu não desviei o olhar da televisão,
apesar de não prestar qualquer atenção ao programa que lá passava e há muito
abandonado.
- Não sei de
que é que estás a falar - disse, tentando desanimá-lo.
- Deixa-te
de coisas, o João já me contou.
- Então já
não tenho mais nada para te dizer.
Nesse
momento, o meu avô passava no corredor ao lado da sala e espreitou para nos
ver.
- Pedro,
chega aqui ao quarto, por favor.
Segui-o,
enquanto caminhava lentamente, medindo cada passo que encostava à bengala que
abria caminho mais seguro.
- Senta-te
aí na beira da cama - indicou, acompanhando cada movimento que eu fazia com
aqueles olhos claros e húmidos.
- Diz, avô.
Precisas de alguma coisa? - comecei, procurando antecipar o motivo daquela
reunião.
- Já tentei
saber junto da tua mãe, mas ela não satisfez completamente a minha curiosidade.
Diz-me lá como montaste a nassa e como caíram lá os pássaros.
- Avô, não quero
que isto se espalhe muito... Mas não tem sentido estar a dizer-te isto. Muito
bem, aqui vai.
E contei-lhe como combinei tudo com a
Catarina e com o António. Apesar de eu ter arquitetado tudo, os louros iam,
sobretudo, para a Catarina que, com coragem e agilidade, enviara naquela tarde
uma mensagem para o agente da Escola Segura, pedindo-lhe ajuda, pois, no dia
seguinte, dois colegas, antes do início das aulas, iriam obrigar a Teresa a
levar droga para dentro da escola. Enviou outra para o Xavier, a partir do
telemóvel da Teresa a pedir-lhe que, no dia seguinte, lhe levasse “três folhas
de teste”. Era um código que usavam entre eles e que nós conhecíamos porque, às
vezes, a Teresa falava demais.
- A Catarina
assistiu a tudo - continuei. - Não imagina a minha alegria quando ela me
descreveu a cara dos três perante a intervenção policial. A Teresa olhava o
Xavier e o Eduardo completamente incrédula. Estes depressa ficaram em choque,
porque perceberam que os agentes procuravam, estranhamente, protegê-la.
Entenderam que teria sido ela a traí-los, informando a polícia. Nesse momento,
o Xavier não se conteve e mostrou a mensagem que a Teresa lhe enviara a pedir
“folhas de teste”. Um dos polícias confirmou o número do telemóvel e resolveu
levá-la também para o gabinete da direção. Algum tempo depois, foram conduzidos
para a esquadra onde foram chamados também os pais.
- Ainda hoje
estarão a tentar perceber como é que a mensagem foi enviada do telemóvel da
Teresa – disse, sorrindo, o meu avô.
- É verdade.
Há pistas muito óbvias. Eles sabem que foi durante a aula de Educação Física.
Mas não sabem com certeza quem foi. Aliás, a Teresa não imagina como foi
descoberta a palavra-passe do telemóvel dela: encontrei-a, por acaso, numa aula
em que ela me emprestou o caderno de Matemática para eu copiar uns exercícios.
E continuei,
explicando que a Teresa tinha sido proibida de contactar com o Xavier e o
Eduardo. Os pais dela voltaram a viver na mesma casa para a ajudarem naquela
fase difícil.
Por sua vez, o Xavier e o Eduardo tinham
agora um acompanhamento diário por técnicos da comissão de proteção de jovens
em risco.
Entretanto, o meu telemóvel vibrou.
- Muito bem,
rapaz, fizeste um ótimo trabalho com a nassa que inventaste! Agora lê a
mensagem que recebeste. Deve ser dela
- disse, piscando o olho temperado por um sorriso meigo. - Deseja-lhe bom Natal
e diz que lhe admiro a coragem. E despacha-te, está na hora da ceia.
E seguiu
pelo corredor certo de que outras aventuras não tardariam. Eu também não
duvidava disso. Aquelas mensagens ainda dariam muito que falar.
Fim