Avançar para o conteúdo principal

Mensagens inesperadas - 5 e 6






5

A campainha rompeu pelo silêncio da sala. Tive a sensação de mergulhar em água fresca num dia de calor intenso.
Depois de intermináveis avisos, o professor autorizou a saída. Contudo, a Catarina fez todos os possíveis para evitar o meu olhar que a procurava como o íman que não larga o metal. Não percebi. Fugi para o corredor, guardando no meu bolso o tesouro de papel que ela me entregara. Sentia o meu corpo a rebentar de curiosidade. As pernas tremiam um pouco, pareciam ter vontade própria – a verdade é que tropecei várias vezes nas escadas até chegar ao exterior do bloco de aulas. Procurei de imediato um banco bem longe de todos os olhares. Queria saborear sozinho aquele momento. Não queria partilhar com mais ninguém as palavras de Catarina.

«Pedro, eu gosto de ti. Quando não vens à escola, ela parece um estádio depois de um grande jogo.
Mas não envies mais mensagens para o telemóvel da minha mãe. Já tenho de novo o meu.
A minha mãe leu a última que me enviaste. Foste longe demais, estragaste tudo! Ela exige que eu me afaste de ti.
Catarina.»

- Pedro, anda daí. Vem jogar futebol. Agora escondes-te atrás da escola!? – gritou o Bernardo que se aproximava a correr, ofegante, ao lado do António que também protestou:
- Estás parvo ou quê? Que é isso? Uma carta de amor? Mas tu ainda vives na idade das cavernas? Uma carta!?... Cá para mim, andas meio poeta ou então não tens saldo no telemóvel. Por falar em saldo, o João anda à tua procura.
O António falava e tentava a todo o custo espreitar o misterioso papel que eu, com cara de ponto de interrogação, dobrava para guardar novamente.
Nem sequer olhei os meus amigos. Levantei-me e explodi:
- Diz ao meu irmão que hoje não estou cá! Emigrei para a China! Diz-lhe que me perdi na floresta da Branca de Neve. E corri como quem leva o bilhete na mão e vê o autocarro partir. O António e o Bernardo encolheram os ombros e voltaram para o campo de jogos.
- Vê lá por onde andas! Pareces parvo, Pedro! - gritou a Teresa.
- Desculpa! Viste a Catarina?
- Não. E, mesmo que a tivesse visto, não te dizia!
- Bah! Que mau hálito!
Eu não parecia o mesmo. Estava agressivo, nervoso. Caminhava com o olhar fixo, brilhante, como se estivesse virado para dentro, concentrado nos pensamentos que se atacavam uns aos outros para ver qual deles encontrava a solução para o enigma que me atormentava.
- Que caroço! Agora que as coisas estavam a correr bem. Mas eu não lhe enviei mensagem nenhuma! Há mais de uma semana que não o faço!
E procurava o telemóvel ao longo do corpo com apalpadelas.
- Mas onde é que eu pus aquela coisa?
Lembrei-me de que o deixara na mochila que ainda estava no banco junto à porta da sala onde tivera Português.
Percorri as mensagens enviadas e não encontrei nada que pudesse aborrecer a mãe da Catarina. Eram todas sensatas, normais. Algo estranho, muito estranho tinha acontecido. Apesar de tudo, estava mais descansado. Sabia, tinha a certeza de que não tinha sido eu. Agora era necessário prová-lo.
A Catarina ainda estava à entrada da sala e viu todo o meu desespero. Quando a enfrentei, voltou-se repentinamente e fingiu conversar com a Beatriz. Aproximei-me:
- Catarina, eu não escrevi nada. Juro! Vê, podes ver, estão aqui todas as mensagens que te enviei.
- Espertinho! Claro que não está aí. Com certeza que já a apagaste!
- Mas eu…
Não adiantava. Precisava de ler a misteriosa mensagem que Catarina recebera e descobrir o seu autor. Só assim poderia reconquistá-la.



6

Após o jantar, procurei um sofá onde me acomodei de forma pouco convencional. O mais difícil era encontrar uma boa posição para as pernas que se perdiam no espaço o mais longe possível uma da outra. O meu pai protestava de imediato, lembrando-me que as outras pessoas também queriam sentar-se. Aquela afluência era pouco frequente. Era difícil estarmos todos à mesma hora na sala de estar: ou porque o meu pai tinha reuniões numa das muitas associações a que estava ligado, ou porque a minha mãe tinha trabalho para acabar em casa, ou porque eu tinha de estudar, ou, finalmente, porque o João ainda não tinha chegado do treino de basquetebol. O certo é que naquela noite estávamos todos ali e o sofá parecia pequeno, extraordinariamente pequeno.
A unir-nos um canal de notícias que ninguém observava ou ouvia e que desfiava desgraças atrás de desgraças. O João arrastava com o dedo as notícias partilhadas pelos amigos no facebook. A minha mãe procurava promoções num showroom qualquer e o meu pai passeava o olhar pelos mails no tablet. Eu arriscava mais uns metros para atingir o nível seguinte naquele percurso de carro acidentado e que nunca mais acabava, jogo que de vez em quando interrompia para responder às mensagens que iam chegando. Da Catarina nenhuma.
O meu avô Francisco estava connosco naquela noite. A minha mãe tinha-o acompanhado ao médico nesse dia à tarde e ficara para jantar. Quando entrou na sala, deu de caras com aquele cenário.
- Gosto de ver a família toda junta. Nos dias que correm, é cada vez mais difícil encontrarmos tempo para falarmos uns com os outros. O que vocês estão a ver aí nesses aparelhos? Alguém está a ver este programa? Muito bem, vejo que estão muito ocupados! João, o teste que o Pedro fez hoje correu bem? Sabes alguma coisa? João! – insistiu.
- O quê, avô? Que é que isso interessa? Se ele não disse nada é porque foi tudo normal.
- Mas já lhe perguntaste ao menos?
- Não, avô, não perguntei. Mas se quiseres eu pergunto.
- João, para com isso, não te dirijas assim ao teu avô.
A minha mãe falava ainda sem olhar ninguém como se aquilo fosse uma reação maquinal e obrigatória para aquele momento. O meu avô não desistiu do seu objetivo.
- Pergunta, João, eu gostava que falassem um pouco sobre o teste.
- Ó avô, porque não lhe perguntas tu?
- Porque assim somos três a falar em vez de dois o que me parece  muito melhor.
Não resisti a um sorriso e o João também não. O avô Francisco não pactuava com aquela forma de estar. Estranhava que, ali, todos juntos, ninguém falasse. Ou melhor, todos estavam suspensos numa rede que suportava o contacto à distância e impedia a relação com quem estava ao lado.
- Muito bem, o avô ganhou. Pedro, como te correu o teste de Português? – o João dirigiu-me a palavra, enquanto guardava no bolso o telemóvel e eu fazia pause no jogo, na esperança de voltar em breve.
- Bem. Consegui responder a todas as perguntas. Falta saber se bem. Já o Eduardo…
- Está a ver, avô, nada de novo! - cortou o João.
- O Eduardo… - forçou o meu avô, para calar o João. E fixou-me daquela maneira que não me deixava espaço para contornar o assunto, como se já tivesse antecipado todos os argumentos e os tivesse a todos rebatido sem contemplações. Era um olhar vitorioso e meigo na forma como o sorriso brincava nos lábios.
Disse-lhe novamente que o teste acontecera sem surpresas e que não esperava um resultado fora de série, como, aliás, era habitual. As questões de gramática continuavam a ser um mar agitado, uma floresta cheia de recantos desconhecidos que eu não queria explorar. Em relação ao Eduardo, não quis garantir as conclusões mais óbvias. Limitei-me a considerar estranhos os acontecimentos. Assim, o Eduardo não tinha feito o teste e o Xavier não respondera a praticamente nenhuma das questões colocadas.
O pedido do Eduardo e o comportamento do Xavier também deixaram algumas dúvidas ao meu irmão.
- Mas esses tipos candidatam-se a ir a exame com negativa. Quanto é que eles têm a matemática?
Respondi-lhe com um ligeiro encolher de ombros potenciado por um breve suspiro e pontuado com um sorriso irónico.
- Bem me parecia - continuou. - Mesmo que só tenham essas duas negativas, o que duvido, já não têm hipótese nenhuma de passar. Negativa a Português e a Matemática é chumbo certo. Não acredito que tenham classificação de quatro em qualquer um dos exames para conseguir nível final positivo. Há dois anos tive um colega que reprovou assim.
- Mas então o que há de estranho no comportamento dos teus colegas, Pedro? – perguntou o meu pai que puxava assim o assunto que mais o intrigava, sem tirar os olhos do ecrã onde lia os principais títulos das notícias.
- Pai, eu não posso garantir, não quero estar para aqui a inventar. É assim…
E a história renasceu parecendo cada vez mais séria e o meu pai disparou a primeira crítica fácil:
- Estes rapazes são do piorio. O que eles inventam. Coitados dos professores… Que é que tu achas disso?
- Disso o quê?
- Da fraude que os teus colegas queriam cometer.
Às vezes ficava irritado com aquela tendência para classificar a realidade de uma forma tão perentória. Era uma visão que não deixava espaço para outras possibilidades que eu gostava de admitir e, se possível, discutir. Eu gostava de mostrar o meu ponto de vista, de argumentar de forma divergente, facto que também desagradava ao meu pai. O meu avô continuava atento e parecia satisfeito com o rumo da conversa. Em breve, aquele tema ir-nos-ia arrancar a todos do silêncio e da prisão das redes sociais.




7

Faltavam alguns dias para o aniversário de Catarina. Nos intervalos e nas aulas não se falava de outra coisa. Todos ansiavam pelos convites que só ela sabia fazer. Mais do que lê-los, eu gostava de guardá-los. Na minha secretária, havia mesmo um lugar especial para todos os papéis que recebia de Catarina – o único local organizado do meu quarto! Ali escondia o testemunho de momentos importantíssimos, inesquecíveis. Cada bilhete era uma onda refrescante que vinha do passado.

Mensagens populares deste blogue

Pai, quantas ondas tem o mar?

A Clara continuava na água. Abraçava as ondas e deixava-se levar qual capitão à proa do barco da imaginação. Atracava feliz e logo se voltava para sulcar a seguinte. O pai permanecia sentado, observava aquele vaivém e também ele navegava em cada onda que beijava inocentemente a areia. - Pai, viste o meu mergulho? – perguntou, enquanto se aproximava. O pai acenou afirmativamente, evitando as palavras e o olhar. Não queria regressar daquela viagem que a imensidão sempre proporciona. A menina, curiosa, perspicaz, feita de perguntas e saberes nunca satisfeitos, sentou-se e ficou também a olhar. - Estás a ver ou estás a pensar? - As duas coisas… – respondeu o pai, inseguro. - Posso fazer-te uma pergunta? – continuou, procurando melhor posição na areia. - Sim. - Quantas ondas tem o mar? O pai levantou os óculos escuros para ver melhor o rosto da criança e não encontrou sinais de brincadeira. Reparou, sim, na dúvida que permanecia no olhar concentrado e insatisfeito.

Mãe, emprestas-me um beijinho?

A Teresa rodava no centro da sala com os braços esticados sobre a cabeça. Era uma bailarina encantada pela música, rodopiava nos braços da melodia. - Mãe, olha para mim! Vês, já sei dançar! - Linda! Que princesa tão linda! E logo a envolveu num abraço, emprestando-lhe um beijo no rosto. A menina olhou-a de uma forma inesquecível. Nos olhos, um tempo indistinto, um tempo sem tempo que reunia ali todos os tempos. O beijo provocou-lhe uma explosão interior sentida no olhar, uma alegria que se alargava no sorriso e se apertava no abraço que reafirmou à volta do pescoço da mãe. Depois afastou-se para reencontrar-se com os amigos de peluche que aguardavam pela sua imaginação. - Vem cá, pequenino, estás com frio? Agarrou-o, envolveu-o num pequeno cobertor e ofereceu-lhe um beijo demorado. O Mateus também estava na sala. Tinha reparado com curiosidade na irmã e na mãe. - Também me davas beijos assim? Como não obteve resposta, aproximou-se e encostou a cabeça no ombro da m

A primeira aventura do Sapo Toquinhas

O Sapo Toquinhas acordou e ficou muito contente. Estava um dia lindo. O Sol estendia os seus dedos quentinhos até ao rododendro. Era aí que o Toquinhas vivia com os seus pais e a sua irmã Matocas. Avançou então por entre as folhas aos saltinhos com muito cuidado para não ser visto. À sua frente começava a calçada que conduzia até à porta principal da casa. - O que haverá lá dentro? - matutava o Toquinhas. E logo recordou o conselho do Paitocas: "Nunca te aproximes daquela porta!". Mas o Toquinhas olhava a porta grande e castanha e ficava triste porque via que outros animais lá entravam todos os dias. Entrava a mosca, o mosquito, a melga, a lagartixa. Até a formiga lá entrava! Um dia, ficou à espera, quieto como uma pedra. O coração batia apressadamente! Tum! Tum! Tumtum! Tumtum! Tum! Tum! Tumtum! Tumtum! Dali até à porta eram três saltos altos e longos... De repente, viu passar o pai de Mateus com sacos de compras. O homem abriu a porta grande e