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Mensagens inesperadas - 3 e 4





3

Daí a pouco, levantei os olhos, observando com cuidado os meus colegas, para colher discretas opiniões sobre a dificuldade do teste. Reparei que alguns manifestavam um entusiasmo contido e outros uma certa vaidade por terem previamente acertado na matéria testada. Ouvia-se a sinfonia das folhas manuseadas, viradas e dobradas, que, assim, se preparavam para receber as respostas que brotariam daquelas mentes curvadas como pontos de interrogação.
À minha frente, o Xavier não parava de se mexer. Notei que não se concentrava na leitura do enunciado. Ora se recostava, abandonando os braços ao longo da cadeira, ora fixava o tecto, enquanto batia descontraidamente com a caneta nos lábios. Achei estranha tal atitude. Normal seria que se movimentasse na cadeira para tentar observar as respostas de algum colega desprevenido, qual explorador que na floresta se esconde atrás de um arbusto para observar ou capturar a sua presa.
Ali perto, a Catarina começava já a responder às questões. Percebi que tinha uma versão igual à minha o que me fez, estranhamente, ficar mais seguro. Sabia que ela nunca me daria as respostas, no entanto, admitir que ela percorria as questões pela mesma ordem deixava-me mais calmo.
Nos dias anteriores, eu tinha feito um esforço extraordinário para abarcar a gramática que era, de facto, complexa e cheia de particularidades. Era um labirinto que não tinha percorrido a tempo e com tempo. Por isso, não tinha feito muito para além de atulhar a memória com informação que agora poderia não servir de nada. Qualquer exercício poderia surpreender e derrubar aquele edifício de cartas sobrepostas. Já a interpretação dos textos não era tarefa que me assustasse. Era mar para a minha prancha.
O Xavier continuava inquieto e não havia maneira de começar a trabalhar. Tinha, naquele dia, o cabelo solto e desalinhado, um aspeto descuidado que gostava de cultivar e que se adequava à sua atitude perante as tarefas escolares. Aliás, o cabelo comprido e despenteado protegia-o de algumas aventuras que, por vezes, arriscava durante as aulas. Contava que chegava a ouvir música sem que os professores descobrissem. Os auriculares ficavam totalmente ocultos por aquela trunfa desorientada. Pensei se naquele momento não estaria mesmo a ouvir as suas bandas preferidas indiferente ao teste que tinha pela frente.
- Bom dia, senhor professor - o Eduardo tinha sempre aquele modo polido de se dirigir aos professores. Não sei se o levavam a sério. - Este fim-de-semana estive de cama e não pude estudar convenientemente para este teste.
- Entra, Eduardo. Podes ocupar aquela mesa. Já lá tens um enunciado e uma folha de respostas – respondeu o professor, apontando a mesa e evitando claramente aquela desculpa.
Mas o Eduardo não desistiu:
- Pois, mas eu queria aproveitar esta hora para estudar. Se me pudesse dar um enunciado, eu ia resolvê-lo para a Biblioteca. Depois, se tivesse dúvidas, vinha procurá-lo.
O professor olhou-o fixamente durante alguns segundos, ponderou as vantagens e as desvantagens daquele pedido.
- Não, não posso dar-te o enunciado neste momento. Poderás levá-lo no final. E, se não fazes o teste hoje, a solução passa por vires ao teste de recuperação que já está agendado. Mas não terás segunda oportunidade. Estuda. Se tiveres dúvidas, sabes onde encontrar-me. A tua diretora de turma espera-te. Podes ir.
O Eduardo agradeceu contrariado e surpreendido. Parecia não entender aquela recusa. Foi nesse momento que eu notei movimentos muito interessantes na mesa da frente. Logo que o professor se opôs às intenções do Eduardo, o Xavier retirou discretamente do ouvido um auricular, que rapidamente escondeu no interior da camisa, e, de entre as pernas, retirou um telemóvel, que atirou para dentro da mochila que mantinha aberta a seu lado. Não pude deixar de relacionar o que acabara de acontecer. Esperava tudo do Eduardo e do Xavier. Reparei ainda que o professor procurava entender também aquele pedido. A sua expressão não deixava dúvidas, um sorriso discreto acompanhado por um ligeiro aceno com a cabeça fez-me adivinhar o seu pensamento: «Que atrevimento!!».
Resolvi continuar o teste. Depois falaria com a Catarina sobre estas suspeitas.





4

A caneta brincava entre os meus dedos satisfeita por não ter de abrir caminho pela folha branca, prisioneira entre duas linhas sempre iguais. Todos os meus colegas copiavam do quadro qualquer coisa que parecia ser muito importante, a avaliar pelo seu silêncio e concentração. Um exército de canetas azuis, pretas, verdes, vermelhas, rosa, rosa-um-bocadinho-mais-escuro, rosa-um-bocadinho-mais-claro, alinhava-se nas mesas, cada uma delas pronta a retirar o capacete para a batalha na folha branca. Nunca percebia por que razão usavam dezenas de cores para copiar do quadro o sumário da aula.
- Pedro, passa-me o corretor. Pedro!
Uma cotovelada convenceu-me a olhar para o meu colega de mesa, o António.
- Sim?!
- Empresta-me o corretor.
- Já vais pintar as unhas outra vez! Ao menos tem cuidado, não estragues o pincel – gracejei, para depois acusar em voz alta. - Professor, podemos usar corretor no caderno diário?
- Espera um momento, Pedro, já falo contigo.
O António acertou-me em cheio na canela com um pontapé furioso.
- És mesmo estúpido! - deixou escapar entre dentes. – Professor, - contra-atacou de braço no ar - o Pedro ainda nem sequer começou a escrever o sumário.
O António era um dos meus melhores amigos. Adorávamos aquele jogo que fortalecia a nossa amizade. Entretanto, o professor tinha-se aproximado.
- Toma, António. Usa este corretor. Pedro, depois de registares o sumário, recolhe, por favor, as poesias.
Adorava aquelas tarefas. O professor ficava satisfeito com a minha colaboração e eu podia passear pela sala e passar junto da Catarina. Catarina!… Eu sentia um conforto, uma paz enorme, quando estava ao lado dela. Tinha um jeito meigo de falar, olhava-me nos olhos, ao mesmo tempo que me segurava o braço.
Raramente sabia o que dizer-lhe, o meu coração ainda não conhecia as palavras certas para aquilo que sentia e, naquela manhã, arrisquei baixinho:
- Fizeste o trabalho de casa, Catarina?
Sem esperar a resposta, outra frase ainda menos inteligente escapou-me da boca:
- Tenho a certeza de que te inspiraste em mim, para fazeres a poesia!
Até eu me espantei com aquela presunção. Sentia receio. Tinha sido demasiado convencido. A Catarina só então levantou os olhos. Ao voltar-se, os cabelos voaram e deixaram no ar um aroma que eu inspirava como remédio para uma doença qualquer.
- Continua a recolher os textos. Não tarda, estão todos a olhar para nós.
Entregou-me a composição e escondeu um papel no bolso do meu casaco. Esperava tudo menos aquela reação. Apetecia-me gritar, correr pela escola toda. Sentia a emoção de quem está quase a começar uma viagem na montanha russa.
- Pedro, coloca os trabalhos em cima da minha mesa, por favor.
Assim fiz.
- Obrigado, podes sentar-te. Vamos ouvir poesia.
Alguns alunos queriam partilhar as poesias. Eu preferia ouvi-las. A minha imaginação trepava pelas palavras de mãos dadas em verso e fugia para mundos que só eu conhecia. Dessas viagens ficavam sempre alguns vestígios riscados ao acaso na minha mesa. Eram desenhos que nem eu sabia decifrar.
- Pedro, queres ler a tua? Sinto que hoje é um bom dia para nos revelares os teus sentimentos através da poesia.
O professor tinha percebido tudo!
- Professor, eu não fiz nenhuma poesia, não consegui escrever. Ainda tentei procurar uma interessante nos livros lá de casa, mas não gostei de nenhuma. Estão aqui. Pode ver.
Entreguei os textos perante os olhares dos meus colegas sedentos de consequências. O professor demorou pouco tempo a decidir.
-Lê este, por favor. A tua leitura deve revelar o sentimento que cada palavra esconde.
Procurei na sala os olhos de Catarina, que já me olhavam prontos para escutar. A emoção rebentou-me nos lábios.

Quando tu aqui chegas
E bates à minha porta
Eu abro um sorriso
E fecho-te comigo

Cai uma lágrima
Que te quer beijar
Brilha uma lágrima
Que te faz sorrir

Silêncio absoluto na sala. Senti-me bem. Antes de me sentar, perguntei:
- Professor, para a semana, posso entregar-lhe uma feita por mim?
O sorriso do professor afirmava que sim. Procurei estar atento para compreender a matéria, mas nunca tirei a mão do bolso do casaco. O que teria escrito a Catarina naquele papel?


5

A campainha rompeu pelo silêncio da sala. Tive a sensação de mergulhar em água fresca num dia de calor intenso.

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