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Dona Verdade e Dona Liberdade



A Dona Verdade conhecia a Dona Liberdade há muitos anos. Moravam no mesmo lugar, uma em frente à outra, e já não se lembravam do dia em que tinham vindo para ali viver.
Todas as manhãs vinham à janela. Esperava uma pela outra e conversavam longamente. Eram tantas as histórias que tinham para contar!
A Dona Verdade, que nunca foi dona da verdade, nunca se cansava de dizer que tinha sido verdade toda a vida mas que já não se lembrava da sua primeira verdade. Partidas da memória. Aqueles cabelos brancos não a deixavam mentir.
A Dona Liberdade gostava de lembrar as histórias da sua juventude. Fechava os olhos em busca do passado que trazia ao presente com saudade. Aqueles tempos em que percorria as ruas à frente das multidões!
- Amiga, nesse tempo andava um pouco descomposta! – intrometia-se a Dona Verdade. – Lembra-se daquela pintura?
E ficavam a rir abraçadas pelo olhar que as unia.
Certa manhã, a Dona Verdade veio à janela, como era habitual.
- Bom dia, vizinha! Hoje não está com boa cara!
- Bom dia! – saudou a Dona Liberdade, acabando de abrir a janela para se deixar acariciar pelo Sol.
- Então, amiga, não me diz nada?!
Silêncio. Ficaram em silêncio durante algum tempo. A Dona Liberdade fitava a árvore que sempre esteve entre as duas casas. A Dona Verdade acompanhou-a com o olhar e rapidamente percebeu o sofrimento da amiga. O tronco da árvore mantinha-se robusto, profundamente agarrado à terra. Os ramos mais novos rompiam em busca de espaço e de luz, agarrados aos ramos mais velhos. Mas as folhas…
- As folhas da nossa árvore tardam. Há muito que as espero mas não as vejo surgir – explicou a Dona Liberdade.
- Agora que fala, amiga, reparo nisso. Mas não se preocupe, não tarda teremos sombra para conversarmos durante as tardes de calor. Continuemos a regá-la, a vizinha desse lado e eu deste.
Era assim há muito, muito tempo: as raízes da árvore recebiam a água da Dona Liberdade e a água da Dona Verdade. E sempre rebentavam as folhas e as flores e os frutos no tempo certo. Mas não naquele ano.
Naquela manhã, várias crianças brincavam debaixo da árvore.
- Tu não jogas! Tu não sabes jogar!
- Sei, sim! O meu pai disse que eu já sei jogar.
- Não quero jogar contigo. Se jogar, vou perder!
O rapaz, rejeitado, ficou sentado, murcho, não se atrevendo a levantar o olhar. Se o fizesse, sabia que seria novamente atacado. Ouviria palavras duras por não controlar as lágrimas que escorriam teimosamente pelo rosto.
- Podemos jogar a outra coisa? – arriscou, tentando levantar-se do chão.
O outro olhou-o pronto a disparar palavras ainda mais cruéis.
A Dona Verdade reparou no olhar preocupado da Dona Liberdade. Ambas estavam assustadas com a verdade e as escolhas daquele rapazito que se mantinha de pé junto ao outro que procurava limpar as lágrimas que pareciam humilhá-lo ainda mais.
- Jogar a quê? – respondeu, abrindo uma passagem no muro que ainda há pouco tinha elevado até ao mais alto nível do orgulho.
- Pode ser às caçadinhas? – propôs, abrindo um sorriso no olhar que expulsou rapidamente a última lágrima. – Eu sou bom às caçadinhas!
- Pode ser! Queres ser tu primeiro a caçar?
Os outros aproximaram-se para darem início ao jogo onde todos tinham lugar. Caçar ou fugir tinham a mesma natureza. Por isso o riso que libertavam foi subindo até ao mais alto ramo da árvore que ali perto os observava.
A Dona Liberdade suspirou de alívio e reparou que a Dona Verdade limpava discretamente uma lágrima que lhe atravessava o rosto, como um barco sulcando o mar levemente ondulado. Olharam-se depois. Bastou um sorriso para confirmar a satisfação que as invadia. Há verdades que não mudam, há escolhas que não devem mudar!

Estavam quase a recolher-se, quando algo chamou a atenção da Dona Verdade. Apontou alguns ramos da árvore para que a amiga também confirmasse. Era verdade! Ali tinham caído as lágrimas do rapazito que agora corria feliz atrás dos amigos. Era verdade! Os ramos mais próximos responderam, libertando as primeiras folhas daquele ano. Em breve todos os outros seguiriam o exemplo.


          

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