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Dona Desculpa e Dona Licença




A Dona Desculpa e a Dona Licença caminhavam pela rua sorrindo a quem passava. A Dona Desculpa com os óculos na pontinha do nariz, a Dona Licença agarradinha à sua bengala.
- Bom dia, menino! – saudavam, parando uns segundos para reparar no rosto do rapaz que seguia apressado.
- Ó Dona Licença, o rapazito deve ser mais surdo do que nós! – protestou.
- Eu cá também acho, deve ouvir mal, é um pouco surdo, assim como nós! – concordou a Dona Licença, enquanto soltava uma divertida gargalhada.
E foram andando. O passeio era estreito e, por isso, seguiam lado a lado muito juntinhas. Às vezes, a Dona Desculpa dava o braço à Dona Licença. Como quando foi preciso atravessar a rua e a bengala não era ajuda suficiente. Na verdade, o senhor de verde que brilhava e assobiava ao mesmo tempo andava tão depressa que de repente ficava ofegante e vermelho. Perigosamente vermelho, porque os carros parados logo começavam a rosnar e a fazer tentativas de arranque assustadoras.
- Ó Dona Desculpa, para onde vão estes senhores?! Nunca tanta pressa vi!
- Eu cá gostava mais daquele semáforo onde havia um senhor verde de chapéu e um senhor vermelho de chapéu! Eram assim como nós, demoraram mais tempo a mudar de cor.
- Só não tiravam o chapéu quando passávamos por eles – riu-se a Dona Desculpa.
- Já ninguém usa chapéu, minha querida!
- Já ninguém nos tira o chapéu!
E continuaram. A Dona Desculpa ia com a amiga a casa do filho para matar saudades dos netos.
- Os meninos já devem estar muito crescidos – disse a Dona Licença.
- É verdade! Basta um mês sem os ver e já quase não os conheço.
- No nosso tempo, crescíamos mais devagar!
- Sim, mas só em altura!
- Ó minha querida, nem para o lado crescíamos, era comer pouco e andar muito!
- Mas crescíamos por dentro! – afirmou a Dona Desculpa com convicção. - É aqui, chegamos.
Um homem simpático abriu a porta e convidou-as a entrar com um sorriso, estendendo também a mão para ajudar a duas senhoras a ultrapassar os dois degraus da entrada.
Já dentro de casa, perguntaram pelos garotos. A resposta não tardou, o sossego da sala ficou envergonhado com o turbilhão que a invadiu. As crianças chegaram com a mãe, a correr uma atrás da outra, dando gritos de alegria. Só elas conheciam as regras daquele jogo. Os adultos olhavam-nas calados e maravilhados com aquela energia contagiante! O sonho tem a medida do sorriso, a grandeza da alegria!
De repente o mais velho, sem reparar, passou pelo meio das duas senhoras, que ainda permaneciam de pé, forçando a passagem, quase tombando a Dona Licença. A senhora equilibrou-se com dificuldade, agarrando-se à bengala. Silêncio entre os adultos. Espanto expectante. Alguns segundos. E a corrida recomeçou. Voltaram as gargalhadas. A mãe trocou um olhar sério com o pai e a Dona Desculpa ajudou a Dona Licença a sentar-se.
- Posso falar com os rapazes? – pediu a Dona Desculpa.
- Claro. É importante que oiçam o que tem para lhes dizer – respondeu a mãe.
As senhoras mais velhas trocaram um olhar simpático. A Dona Desculpa olhou depois pela janela, reparou nas árvores e sorriu à procura das melhores palavras. Os rapazes já estavam sentados à sua frente, inquietos.
- Que árvore é aquela? – perguntou, apontando para o jardim.
- Fácil, é um pinheiro – respondeu o mais novo.
- E a outra que está ao lado? – continuou.
- Oliveira – respondeu o mais velho.
- E as outras junto ao portão?
Perante o silêncio dos rapazes a Dona Licença ajudou:
- Liquidâmbares.
Antes que se levantassem, a Dona Desculpa pediu:
- Reparem nos ramos. O que acontece quando chegam perto uns dos outros?
- Não sabemos, avó.
Então a Dona desculpa levantou-se e explicou que os ramos eram tão educados que nunca ocupavam o lugar dos outros. Procuravam os espaços vazios, por onde cresciam felizes. E apontava para o pinheiro e para os liquidâmbares.
- Sabem o que dizem os ramos quando o vento os empurra e tocam uns nos outros?
O olhar dos rapazes respondia que não. A Dona Desculpa imitou-os:
- Desculpe, amigo ramo, não vi que estava aí.
- Não há problema, caro vizinho. Já agora, dá-me licença que cresça nesta direção para que as minhas folhas tenham mais Sol?
- Ora essa, por aí não me causa qualquer transtorno.
- Já agora, sabe dizer-me por que razão ali a vizinha oliveira continua tão pequena?
- A oliveira não aprende. Não posso ajudá-la. Ninguém gosta dela. Nunca pede desculpa, nunca pede por favor, quer o espaço dela e o dos outros. Agora tem apenas o suficiente para sobreviver. É uma pena.
Os rapazes absorviam cada palavra com o olhar fixo nas mãos da Dona Desculpa que desenhavam a história carregadas de vida.
- Ó Dona desculpa, acha que os miúdos aprenderam alguma coisa com a história das árvores? – brincou a Dona Licença.
Os garotos já tinham saído para o jardim. Corriam com os braços no ar como árvores tocadas pelo vento. A dada altura, o mais novo tropeçou no mais velho e caiu desamparado.
- Desculpa! Estás bem? – perguntou preocupado o mais velho.
A Dona Desculpa sorriu satisfeita. Entretanto serviram o chá e ficaram a conversar sobre as pessoas que viram na rua e da necessidade de também elas ouvirem a história das árvores.

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