Avançar para o conteúdo principal

Pai, o que são pessoas normais?



O Mateus fazia exercícios de Ciências Naturais, quando, calmamente, levantou os olhos do caderno para retirar do sapato a dúvida que durante alguns dias o tinha incomodado:
- Pai, tu sabes o que é uma pessoa normal?
- Diz?
- Pai, perguntei se sabes o que é uma pessoa normal – repetiu com alguma impaciência.
Não havia margem para dúvidas, era mesmo uma rede que o apanhava e, quanto mais procurasse fugir, mais se enredaria. Era agora necessário saber onde tinha começado aquela pergunta para que a resposta preenchesse o vazio da dúvida. Sim, porque a dúvida tem sempre a forma da resposta, tal como o copo guarda a forma da água que vai receber.
- Pois, assim desprevenido, talvez não saiba dizer-te o que é uma pessoa normal. Mas porque me fazes essa pergunta?
- Por nada de especial. Estava a conversar com alguns amigos lá da escola…
Que resposta seria justa e capaz? Que terão dito aqueles rapazes sobre o assunto? Que padrão exigiam para ascender ou descer à normalidade?
- Os teus amigos são normais?
O rapaz gesticulou como quem não tem dúvidas sobre isso. Eram todos normais.
- Tens algum amigo exatamente igual a ti?
O Mateus considerou a pergunta desnecessária e garantiu que não.
- Ainda bem, não há cromos repetidos na tua caderneta, não podes trocar nenhum por outro – gracejou o pai.
- Pai, as tuas piadas antigas já não resultam.
- O que eu queria dizer-te é que não há pessoas normais, há pessoas e todas são diferentes. Tu tens qualidades que os teus amigos não têm e eles têm outras que tu não tens ou ainda não tens.
- Acho que percebi!
O pai sorriu e atreveu-se a mais uma das suas piadas desengraçadas com o tempo:
- Se fôssemos todos normais, éramos uns caramelos repetidos!
- Por favor, pai, caramelos!? Não és tu que tens uma t-shirt que diz Caramelo em letras garrafais?!!
Ups! Era verdade, por isso, poucas vezes a tirava do gavetão.
- Mas ainda não me disseste qual foi o motivo que vos levou a conversar sobre este assunto. Como vês, para mim, a diferença é que faz as pessoas normais. É a diferença que as torna mais sábias e interessantes.
Então o Mateus explicou ao pai que estava a brincar com os amigos a ver quem dava mais toques com uma raquete de ténis sem deixar cair a bola, claro!
- O António conseguiu trinta e seis!
Fez uma pausa. O pai não se atreveu a preencher o silêncio que o filho deixou disponível.
- Não queres saber quantos toques consegui dar?
O pai olhou-o expectante.
- Seis, pai. Seis! Achas normal?!
Achava normal.
- E tu quantas raças de cães consegues identificar?
E saiu do quarto, reparando no brilho satisfeito que renascia nos olhos do rapaz que de imediato retornou às Ciências Naturais.
- Pai, tu conheces o bedlington terrier?
Nem olhou para trás. Seguiu consciente do dever cumprido. Tudo continuava normal.

Mensagens populares deste blogue

Pai, quantas ondas tem o mar?

A Clara continuava na água. Abraçava as ondas e deixava-se levar qual capitão à proa do barco da imaginação. Atracava feliz e logo se voltava para sulcar a seguinte. O pai permanecia sentado, observava aquele vaivém e também ele navegava em cada onda que beijava inocentemente a areia. - Pai, viste o meu mergulho? – perguntou, enquanto se aproximava. O pai acenou afirmativamente, evitando as palavras e o olhar. Não queria regressar daquela viagem que a imensidão sempre proporciona. A menina, curiosa, perspicaz, feita de perguntas e saberes nunca satisfeitos, sentou-se e ficou também a olhar. - Estás a ver ou estás a pensar? - As duas coisas… – respondeu o pai, inseguro. - Posso fazer-te uma pergunta? – continuou, procurando melhor posição na areia. - Sim. - Quantas ondas tem o mar? O pai levantou os óculos escuros para ver melhor o rosto da criança e não encontrou sinais de brincadeira. Reparou, sim, na dúvida que permanecia no olhar concentrado e insatisfeito.

Mãe, emprestas-me um beijinho?

A Teresa rodava no centro da sala com os braços esticados sobre a cabeça. Era uma bailarina encantada pela música, rodopiava nos braços da melodia. - Mãe, olha para mim! Vês, já sei dançar! - Linda! Que princesa tão linda! E logo a envolveu num abraço, emprestando-lhe um beijo no rosto. A menina olhou-a de uma forma inesquecível. Nos olhos, um tempo indistinto, um tempo sem tempo que reunia ali todos os tempos. O beijo provocou-lhe uma explosão interior sentida no olhar, uma alegria que se alargava no sorriso e se apertava no abraço que reafirmou à volta do pescoço da mãe. Depois afastou-se para reencontrar-se com os amigos de peluche que aguardavam pela sua imaginação. - Vem cá, pequenino, estás com frio? Agarrou-o, envolveu-o num pequeno cobertor e ofereceu-lhe um beijo demorado. O Mateus também estava na sala. Tinha reparado com curiosidade na irmã e na mãe. - Também me davas beijos assim? Como não obteve resposta, aproximou-se e encostou a cabeça no ombro da m

A primeira aventura do Sapo Toquinhas

O Sapo Toquinhas acordou e ficou muito contente. Estava um dia lindo. O Sol estendia os seus dedos quentinhos até ao rododendro. Era aí que o Toquinhas vivia com os seus pais e a sua irmã Matocas. Avançou então por entre as folhas aos saltinhos com muito cuidado para não ser visto. À sua frente começava a calçada que conduzia até à porta principal da casa. - O que haverá lá dentro? - matutava o Toquinhas. E logo recordou o conselho do Paitocas: "Nunca te aproximes daquela porta!". Mas o Toquinhas olhava a porta grande e castanha e ficava triste porque via que outros animais lá entravam todos os dias. Entrava a mosca, o mosquito, a melga, a lagartixa. Até a formiga lá entrava! Um dia, ficou à espera, quieto como uma pedra. O coração batia apressadamente! Tum! Tum! Tumtum! Tumtum! Tum! Tum! Tumtum! Tumtum! Dali até à porta eram três saltos altos e longos... De repente, viu passar o pai de Mateus com sacos de compras. O homem abriu a porta grande e