Avançar para o conteúdo principal

A fuga das palavras


- Pai, tenho uma pergunta para te fazer.
- Sim?
- É um pouco inusitada.
O pai já não estranhava certas palavras que o miúdo utilizava. Inicialmente irritava-se, no entanto, foi percebendo que afinal as usava com propriedade, como quem calça pela primeira vez os ténis preferidos. Aquele brilho, aquele sorriso, aquela felicidade!
- Tu sabes o que é a poesia?
- Não.
O petiz ficou perplexo com a incipiente resposta. No olhar, germinava uma certa desilusão.
- Vá lá, pai! Essa não é a tua melhor resposta!
- Já tentaste o dicionário?
- Quero a tua resposta. No dicionário, as palavras não têm futuro, estão presas ao que foram.
- Consideras o dicionário uma prisão?
- Não tinha pensado nisso, mas até faz sentido: cada palavra vive na sua cela dentro do dicionário.
- Cada cela será a definição, o significado de cada uma.
- Sim.
- As palavras que dão corpo ao significado serão as grades apertadas…
- Sim.
O Mateus fazia um esforço por acompanhar o pai, mas continuava com a pergunta insatisfeita presa no olhar.
- Ainda não respondeste à minha pergunta.
O pai sorriu como quem estende o melhor tapete para as palavras que pretendia alinhar.
- Parece-me que a poesia acontece quando as palavras se evadem da prisão.
- Queres dizer do dicionário?
- Também.
- Explica melhor.
O pai disse-lhe então que a poesia acontece quando as palavras se libertam do peso e do caminho a que as obrigam todos os dias. Quando arriscam um novo brilho, se tornam estranhas, diferentes. É como se as palavras vestissem o seu melhor fato para ir ao teatro.
- Queres experimentar? – desafiou. E, perante o aceno afirmativo do filho, continuou. – Escolhe uma palavra.
- Pode ser… bota?
Bota!? Seria um verdadeiro desafio retirá-la da cela.
- Parece-me bem. Vamos preparar-lhe uma fuga decente, retirar-lhe a cor do chão, o odor do trabalho. Vamos mostrar-lhe a beleza.
- Podemos dar-lhe um nome?
- Claro!
- Pele e sola! – batizou o Mateus.
O pai ficou maravilhado com este jogo de palavras. Havia nele uma certa gravidez.
- Pele e sola. Pode ser. Vamos libertá-la, ouve:
                       Pele e sola
Pele e sola
Levanta-te do chão
Pele e sola
Pele e sola
Tens aqui a minha mão

Vou contigo
Vou contigo
Sairei desta prisão
Não sou bota
Não sou bota
Eu conduzo um pelotão

                O Mateus repetiu de forma divertida.
                - Vês?! Mal sabia a bota que conseguiria muito mais do que fazer o mesmo caminho todos os dias.
                Continuou:
                                   Pele e sola
Pele e sola
És bota, és capitão
Pele e sola
Pele e sola
Tens o mundo sempre à mão
                 O Mateus não parava de rir.
                - Ó pai, como é que esta bota tem o mundo sempre à mão?!!
                Riram os dois. O Mateus atreveu-se:
                                               Pele e sola
                                               Pele e sola
                                               Tu já não podes pisar
                                               Pele e sola
                                               Pele e sola
                                               Tu agora és poesia
                O pai verificou algum desalento no rosto do rapaz.
                - Não rimou, pai.
                - Não precisa.
               Não precisava. A poesia tinha acontecido. A bota fugira da prisão até que alguém a fechasse novamente. Conhecera a beleza do ritmo, carregara por momentos a responsabilidade dos sentimentos, a dureza da denúncia, o entusiasmo da descoberta de outros sentidos.
                Outras palavras esperam a evasão a qualquer momento.

Mensagens populares deste blogue

Pai, quantas ondas tem o mar?

A Clara continuava na água. Abraçava as ondas e deixava-se levar qual capitão à proa do barco da imaginação. Atracava feliz e logo se voltava para sulcar a seguinte. O pai permanecia sentado, observava aquele vaivém e também ele navegava em cada onda que beijava inocentemente a areia. - Pai, viste o meu mergulho? – perguntou, enquanto se aproximava. O pai acenou afirmativamente, evitando as palavras e o olhar. Não queria regressar daquela viagem que a imensidão sempre proporciona. A menina, curiosa, perspicaz, feita de perguntas e saberes nunca satisfeitos, sentou-se e ficou também a olhar. - Estás a ver ou estás a pensar? - As duas coisas… – respondeu o pai, inseguro. - Posso fazer-te uma pergunta? – continuou, procurando melhor posição na areia. - Sim. - Quantas ondas tem o mar? O pai levantou os óculos escuros para ver melhor o rosto da criança e não encontrou sinais de brincadeira. Reparou, sim, na dúvida que permanecia no olhar concentrado e insatisfeito.

Mãe, emprestas-me um beijinho?

A Teresa rodava no centro da sala com os braços esticados sobre a cabeça. Era uma bailarina encantada pela música, rodopiava nos braços da melodia. - Mãe, olha para mim! Vês, já sei dançar! - Linda! Que princesa tão linda! E logo a envolveu num abraço, emprestando-lhe um beijo no rosto. A menina olhou-a de uma forma inesquecível. Nos olhos, um tempo indistinto, um tempo sem tempo que reunia ali todos os tempos. O beijo provocou-lhe uma explosão interior sentida no olhar, uma alegria que se alargava no sorriso e se apertava no abraço que reafirmou à volta do pescoço da mãe. Depois afastou-se para reencontrar-se com os amigos de peluche que aguardavam pela sua imaginação. - Vem cá, pequenino, estás com frio? Agarrou-o, envolveu-o num pequeno cobertor e ofereceu-lhe um beijo demorado. O Mateus também estava na sala. Tinha reparado com curiosidade na irmã e na mãe. - Também me davas beijos assim? Como não obteve resposta, aproximou-se e encostou a cabeça no ombro da m

A primeira aventura do Sapo Toquinhas

O Sapo Toquinhas acordou e ficou muito contente. Estava um dia lindo. O Sol estendia os seus dedos quentinhos até ao rododendro. Era aí que o Toquinhas vivia com os seus pais e a sua irmã Matocas. Avançou então por entre as folhas aos saltinhos com muito cuidado para não ser visto. À sua frente começava a calçada que conduzia até à porta principal da casa. - O que haverá lá dentro? - matutava o Toquinhas. E logo recordou o conselho do Paitocas: "Nunca te aproximes daquela porta!". Mas o Toquinhas olhava a porta grande e castanha e ficava triste porque via que outros animais lá entravam todos os dias. Entrava a mosca, o mosquito, a melga, a lagartixa. Até a formiga lá entrava! Um dia, ficou à espera, quieto como uma pedra. O coração batia apressadamente! Tum! Tum! Tumtum! Tumtum! Tum! Tum! Tumtum! Tumtum! Dali até à porta eram três saltos altos e longos... De repente, viu passar o pai de Mateus com sacos de compras. O homem abriu a porta grande e