O autocarro abrandou junto à paragem, obedecendo ao sinal sonoro rouco e desafinado.
- Muito obrigada, António. Hoje fico aqui.
- Saia com cuidado, precisa de ajuda?
A Dona Educação agradeceu com um sorriso prolongado
e apeou-se. Fixou depois a fachada que há muito trazia inscrita na memória. O
edifício apresentava ainda um rosto sólido, equilibrado e inspirador, tal como
nos anos em que ali entrava todos os dias. Caminhou em direção à portaria onde
foi recebida pelo funcionário.
- Posso ajudar?
- Bom dia, desejo visitar a escola.
- Visitar?!
- Sim, gostava de a rever.
O funcionário contactou diligentemente a direção da instituição. Repetiu
o nome da ilustre visita para que do outro lado não restassem dúvidas.
Alguns minutos depois, receberam a Dona Educação. Quiseram saber a razão daquele
interesse, o motivo daquela visita.
- Nada de especial. Há muitos anos que não venho
aqui e gostava de entrar nas salas, de sentir a curiosidade insatisfeita dos alunos,
conhecer os professores.
Os dois funcionários, que pensavam agilmente como um
só, não encontraram nenhum entrave que impedisse o desejo da velha senhora e,
despedindo-se ligeiramente, voltaram para o gabinete.
Os corredores mantinham a cor inicial ainda
brilhante e alegre. A Dona Educação caminhou por eles como quem se embrenha nas
memórias de um tempo que justifica o presente.
Repentinamente, as portas abriram-se e as crianças
saíram das salas. A Dona Educação sorriu perante aquela energia
alegre.
- Bom dia! – dizia para uma que quase
lhe levava a bengala, correndo descontroladamente. – Bom dia! – dizia para
outra que passava desiludida com o lanche que acabara de ver na lancheira. –
Bom dia! – continuou ela agarradinha à sua bengala, olhando ora para a esquerda,
ora para a direita.
Passaram todos. Seguiu-as com o olhar até ao
recreio. Era o tempo delas. Distribuíram imediatamente os papéis e a
brincadeira aconteceu! Ali todos eram encenadores, todos eram atores, ninguém
na plateia! Ali era o reino da brincadeira.
Silêncio no corredor. Apenas os passos ecoavam,
amparados pela bengala. Cada passo uma sílaba do passado que ali voltava. Parou
em frente à sala. Aquela que tinha o seu perfume, a delicadeza dos seus gestos,
a cor do seu olhar. A sala onde o negro quadro foi vencido pela palavra, branca
de esperança. Onde as crianças venciam os mostrengos e dobravam o cabo, pois, naquela
sala, também começou vezes sem conta a esperança! Entrou.
- Bom dia!
- Bom dia!- retribuiu.
- Posso ajudá-la?
Não lhe respondeu de imediato. Aproximou-se
lentamente para lhe ver os olhos, a cor dos olhos, o brilho dos olhos. Afinal
era a professora que viera ocupar a sua cadeira.
- Peço desculpa por entrar sem aviso ou sequer
pedir licença!
Reparou no espanto parado, hesitante, da ouvinte.
- Durante muitos anos, fui professora nesta sala! E
continua linda! Tem o conhecimento entranhado nestas paredes. Os sonhos ainda
ali estão marcados nos vidros das janelas. Repare: ficam sempre as impressões
digitais dos meninos que por ali fogem a galope na imaginação.
Um raio de Sol quis apoiar a Dona educação, entrando
pela janela para ficar a seus pés. Ela sorriu e lembrou-se dos dias cheios de
luz que vivera naquele espaço.
- Agora parece tudo muito diferente, não lhe parece?
- Que boa surpresa! Temos falado muito sobre si!...
Não, o que mudou parece-me menos importante. No essencial, tudo se mantém –
discordou.
A Dona Educação deixou a janela e voltou-se para a
professora. Queria confirmar aquelas palavras. Os ouvidos nem sempre são o
melhor fiel, os olhos são uma grande ajuda nestes casos.
- Vejo nos seus olhos a verdade do que diz. Atrevo-me
a dizer que educação começa e acaba no olhar. E nos seus olhos vejo a paixão tão
necessária para cativar e navegar em alto mar, com ventos a favor ou contra o
vento.
- Sim, cativar, importa cativar.
A Dona Educação acenou afirmativamente como quem percorre
as razões daquela afirmação.
O reboliço voltou ao corredor. A Dona Educação
despediu-se então da professora com a promessa de que voltaria em breve.
Os meninos entraram na sala. Daí a pouco ouviam uma
história. Com ela fugiram pela janela. A professora também. Destas paisagens
lembrar-se-ão mais tarde. Sempre.
Pouco depois, a Dona Educação apanhou o autocarro
para casa. Ia satisfeita: a sua sala estava em boas mãos, não tinha dúvidas.
Era preciso que todos soubessem disso!
Era também preciso que todos dessem tempo às crianças para
elas deixarem nos vidros das janelas as marcas dos seus sonhos!