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Pai, senta-te aqui!



                O Mateus chegou calado. Trazia a mochila às costas, a lancheira a tiracolo, o casaco perdido no braço e o saco da natação suspenso no ombro. Os sonhos ocupavam o espaço disponível, onde, por vezes, ficavam muito apertadinhos.
                Um dos livros espreitava por uma pequena abertura da mochila, estava preocupado com a lentidão desanimada do rapaz e com a pergunta que ele trazia suspensa no olhar - queria saber quanto era cem por cento.
- Depende – respondeu o pai, enquanto abria a porta de casa. - Se conseguires responder corretamente a todas as perguntas de um teste, poderás alcançar cem por cento. Imagina um jogo onde, para chegares à meta, tens de ultrapassar cem obstáculos. Quando conseguires chegar ao fim, tens cem por cento; porque ultrapassaste todos os obstáculos, conquistaste todos os pontos.
- Sim, pai, mas posso não ser o primeiro...
Com esta não contava! O pai percebeu que o problema era bem mais difícil de resolver. Encontrar a justa medida entre a capacidade e o necessário esforço, o equilíbrio entre o desejo e a possibilidade, era uma tarefa árdua.
- Não precisas de ser o primeiro e nem sempre é necessário chegar à meta - contrapôs o pai.
- Pai, estás a dizer que o esforço é desnecessário?
- Não, digo que tens de continuar a estudar com dedicação, se necessário, com sacrifício. Mas também quero dizer-te que não cortar a meta pode ser mais extraordinário do que ultrapassá-la em primeiro lugar.
Tinha o pai criado um enigma que o silêncio aprofundava a cada minuto que passava. Nem a Tartaruga nem a Lebre o salvariam naquele momento. Pela abertura da mochila abandonada junto ao sofá, o livro que dizia ser de Português ainda tentou dar-lhe uma sugestão, mas não conseguia abrir a boca, apertado como estava entre os colegas de História e Geografia de Portugal e o de Matemática. Dir-lhe-ia que a história da Cigarra e da Formiga poderia ajudar.
 - Às vezes, o percurso é mais agradável do que a chegada, filho!
O Mateus ouviu e guardou as palavras. Na verdade, sentia-se um atleta de alta competição, tal como os amigos. Mas havia um problema, treinavam todos em dezenas de modalidades ao mesmo tempo, e todos queriam ser o melhor em qualquer delas. Tarefa quase sempre impossível que os deixava inquietos e impacientes. Não tinham tempo para olhar pela janela enquanto viajavam. Sempre insatisfeitos, frequentavam depois aulas para curar a insatisfação, como se a brincadeira pudesse ser orientada.
Os livros entreolharam-se. Tinham percebido a resposta. O Mateus também.
- Tu olhas pela janela enquanto viajas, pai?
- Diz? – disfarçou o pai, enquanto se dirigia para o portátil.
- Podes sentar-te aqui ao meu lado?
- Não posso agora, tenho de ver um mail
- Mãe, podes sentar-te aqui um pouco?
A mãe, surpreendida, rendeu-se ao convite. Também o pai acabou por não resistir. Daí a pouco, o sofá era pequeno e as mantinhas insuficientes.
Era bom olhar pela janela.
Ali eram lebre e tartaruga, cigarra e formiga, pensaram os livros que também se aconchegavam para descansar após um dia extenuante.
Ali os sonhos tinham mais espaço. Toda a insatisfação encontrava respostas no ombro do lado e nos olhos que finalmente se fitavam. Todos eram cem por cento, melhor, sem por cento.

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