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Mensagens Inesperadas - 26 e 27 - No labirinto, sem fio e sem asas




26

- Senta-te também aí, João. Eu e a mãe queremos falar convosco.
O meu pai deu assim início à conversa que eu esperava desde o início do jantar. Por isso comi pouco. A cada garfada, perdia-me nos pensamentos que passavam como nuvens fustigadas por vento forte.
- O diretor da vossa escola convocou para amanhã uma reunião a propósito de substâncias ilícitas na escola e parece que vocês estão envolvidos - disparou sem eufemismos.
Nesse momento, o meu avô, que entrara no habitual estado de sonolência após as refeições, levantou a cabeça e lançou-me um olhar vivo que albergava uma boa dose de dúvida e desencanto.
- O que têm a dizer sobre isto? – juntou-se a minha mãe.
- Bom, quem deu origem ao problema fui eu - comecei. - A propósito daquela mensagem que tu já sabes, pedi ao professor João para visionar umas imagens gravadas no sistema de vigilância da escola. Quando eu esperava ter encontrado o engraçadinho que me tinha feito passar por lorpa, o professor Luís chamou-me à atenção para um facto estranho: o João tinha tirado qualquer coisa da minha mochila que entregou ao Xavier, que, por sua vez, trocou por algo que o Eduardo, de forma muito suspeita, lhe meteu na mão. Vi ainda que o João pegou no meu telemóvel, escreveu uma mensagem e voltou a guardá-lo. Não sei mais nada.
- João, tens de esclarecer esta situação. Aliás, não percebo porque deixaste passar tanto tempo. Pior, se o Pedro não se tivesse mexido, tudo ficava como estava. Isso nem parece teu. Estamos aqui para te ajudar, desde que nos contes tudo como foi. Antes de mais, quero que me digas se aquilo era droga ou não.
- Pai, isso não é assim tão simples. A história é um pouco mais complicada. Acho que é até muito delicada. Tenho algum receio do que podem fazer aqueles tipos. São violentos quando se sentem ameaçados. Não é por acaso que alguns carros têm sido danificados.
- Mas tens receio de quê? Não acredito que tenhas qualquer tipo de envolvimento com essa gente!?
-Na verdade, não fiz nada para que me envolver com eles, as coisas precipitaram-se sem que eu pudesse evitar. Nessa segunda-feira, chegamos à escola mais cedo do que era habitual. Enquanto que o Pedro entrou na escola e foi para o bar, eu fiquei junto ao portão à espera do Carlos, um colega da minha turma.
- É um aluno novo na escola, veio transferido há pouco tempo - esclareci.
- Não interrompas - cortou a minha mãe - deixa-o explicar as coisas.
- Nesse tempo em que por ali estive, percebi que o Xavier estava uns metros mais atrás, com o capuz enfiado, e que, pela forma como olhava para o relógio e para a estrada, parecia ansioso. Achei aquilo estranho e, por isso, deixei-me estar por ali para ver o que dava. O pessoal costumava contar umas histórias acerca deles, que traziam cenas para a escola… Entretanto, o Eduardo chegou e entregou uma caixa pequena, pelo menos parecia, tipo caixa de chicletes, ao Xavier, que, subtilmente, o informou da minha presença. Já não tive tempo de disfarçar ou fugir dali.
- Que fazes aqui, meu? Tens algum problema? - ameaçou o Eduardo.
- Por acaso viste alguma coisa? - juntou-se duramente o Xavier, acabando de fechar o cerco.
Já não tinha como evitar aqueles dois. Vira, na verdade, o que tinham feito e parecia que estava em poder de informação que eles queriam anular ou controlar de alguma forma.
- Eu não vi nada – tentou o meu irmão.
- Está caladinho! Se pensas que vais dar com a língua nos dentes, estás muito enganado.
O Eduardo era mais alto e corpulento. Não tinha outra hipótese. Viu que o Xavier o chamou ao lado para lhe segredar qualquer coisa que daí a pouco viria a saber. Reparou ainda que tinham controlado as câmaras, pois tudo fora feito fora do alcance delas. Voltou o Xavier.
- Podes, mas queremos falar contigo no intervalo das dez. Se falhares, hoje não chegas inteiro a casa.



27


            Naquele momento, o meu avô Francisco estava completamente desperto. A história que o João contava espevitava-lhe a curiosidade e a indignação. O meu pai tinha um olhar perdido, perplexo. Ao lado, a minha mãe fitava, virando e revirando, as peças da Pandora que reunia numa pulseira e que constantemente chocalhavam, enquanto batiam na madeira da mesa. Marcava o ritmo da história qual batuta de maestro em frente à orquestra. Notava-se um ritmo crescente, pelo que o João começava a ficar irritado.
            - Mãe, acalma-te. Não batas com a pulseira na mesa. Que coisa!
            - Desculpa. Vá continua. O Xavier o Eduardo deixaram-te à porta da escola. Onde é que o Pedro entra nesta trapalhada?
A minha mãe estava impaciente. O João tinha de continuar.
            - Encontrei-me com eles no bar, alguns minutos antes das dez horas. Também lá estava a Teresa.
            - A Teresa da minha turma? - quis confirmar. - A que propósito?
            - Já vais saber. Nem sabes quem tens a teu lado, Pedro! A miúda não tem escrúpulos!
            - Há uma coisa que continua a deixar-me confuso - atalhou o meu pai - porque que é que não nos disseste nada, ou não falaste com o teu diretor de turma? De certeza que teria atuado e colocado esses alunos sob vigilância policial.
            - Pai, deixa-me explicar. Já vais perceber que tomei a decisão que me pareceu melhor para mim e para o Pedro. Foi a Teresa que me chamou. Sentei-me com eles numa mesa junto à janela.
            - Olá, João, já ouvi dizer que agora andas a espiar o pessoal.
            - Achas que estou interessado no que eles andam a fazer?
            - Tens mesmo cara de inocente! Se calhar, foste direitinho ao gabinete do diretor.
            - Estás parva! Já te disse que não me interessa a vossa vida. Não disse nada a ninguém.
            - Nem vais dizer, ó direitinho - o Eduardo entrava na conversa, de forma ameaçadora.
            -É assim, se continuam a ameaçar-me, acreditem que ponho mesmo um ponto final nisto – arriscou o João.
            - Olha, olha, o menino já usa sinais de pontuação! Pois ouve bem o que te vamos dizer. Não vais pôr um ponto final nesta cena, vais pôr um ponto final parágrafo – impôs-se a Teresa. - Vais com o Eduardo e com o Xavier ao corredor onde está a mochila do teu irmão. Abres o bolso de fora, retiras uma caixa de chicletes que nós lá colocamos, aqui no bar, antes de ele ir para a aula.
            - Estás parva, não acredito, como é que tiveram acesso à mochila?
            - Está caladinho! O Pedro deixa mochila em qualquer lado. Antes do teste de Geografia, ainda foi jogar futebol. Não precisámos de muito tempo para deixar lá a encomenda. E vês aqui alguma câmara? – disse, sorrindo, para desespero do João. - Já sabes, vais com eles agora, retiras a caixa para a devolveres aqui ao pessoal.
            - Não percebo, porque é que eu tenho de fazer isso?
            - Porque, se não, vou já direitinha falar com o diretor para lhe expor uma situação deveras preocupante. Senhor diretor – simulou - nem sei como dizer-lhe estas coisas, mas não posso ficar calada, perante esta ameaça ao bom ambiente escolar. Quero que saiba que o Pedro tem na sua posse centenas de doses de droga e quis que eu lhe comprasse… Achas que tenho jeito? – perguntou.
            O João estava num labirinto deveras bem montado. Não tinha por onde escapar. Não havia por ali nenhum fio que lhe devolvesse a saída ou material para as asas que o elevariam acima daqueles muros em que o encerraram. Aceitou sem ponderar muito. Mas a Teresa ainda tinha mais uma exigência que lhe acentuava definitivamente o seu lado negro.
            - Vais fazer isso e tens ainda outra tarefa que me vai deixar muito feliz. Não suporto ver aqueles dois juntos. Vais pegar no telemóvel do teu irmão e escrever uma mensagem para a mãe da Catarina. Ele tem lá o número, procura-o. Escreves qualquer coisa como isto: “Catarina, gostei muito da noite que passamos juntos, temos de repetir.” Aposto que decoraste tudo. És muito bom aluno, por isso até podes usar recursos expressivos. Ah, já me esquecia, apagas a mensagem depois de a enviar.
A Teresa tinha estado ao lado da Beatriz quando esta ficara a saber que a Catarina já tinha com ela o telemóvel que o tio lhe oferecera.
            Nesse momento, o meu pai já estava encostado na cadeira e olhava o teto falso, mostrando uma surpresa cada vez mais acentuada.
            - Bem tramado, sim senhor. Esses meninos são do piorio! Não tinhas hipóteses, João. Se, por acaso, resolvesses falar, estava o Pedro também metido num grande sarilho. Era a palavra dele contra a da Teresa e, perante as provas encontradas na mochila,… Seguraram-se muito bem. Só não contaram foi com as câmaras. Um pormenor de extrema importância. De qualquer forma nós é que continuamos com a batata quente nas mãos. Como vamos garantir ao diretor que o Pedro é inocente no meio desta trapalhada toda?
            - Contaram com as câmaras, sim. Aliás, as câmaras serviriam para provar o meu envolvimento e o do Pedro, portanto, para me manterem calado! Agora só nos resta contar a verdade. Não temos nada a temer. Fica esclarecido o mistério da mensagem. Resta agora encontrar uma solução para pôr aqueles três na ordem.
            O João falava com convicção mas a minha mãe interveio com mais um obstáculo.
            - Não pensem que lhes vai acontecer alguma coisa. As imagens não provam nada. É a palavra deles contra a do João. Eles vão sempre dizer que eram chicletes ou outra coisa qualquer. Agora o que pode acontecer de grave é que o Pedro e o João passarão a estar referenciados pela polícia e terão de prestar declarações. Um aborrecimento. Estas coisas nunca são boas para ninguém.
            O meu avô tinha estado calado, absorvendo cada palavra desta história.
            - Ó Pedro, não te esqueças da nassa de que te falei há dias.
            - De que é que estás a falar, avô? - quis saber o João.
            - Que é preciso surpreendê-los, virar a vassoura contra o feiticeiro.
            Não resisti a uma saudável gargalhada. Também o meu avô se enganava nesta típica expressão da língua. Lembrei-me do António e de como seria interessante que ele estivesse ali para me ajudar a encontrar uma solução.

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