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O meu pai deu
assim início à conversa que eu esperava desde o início do jantar. Por isso comi
pouco. A cada garfada, perdia-me nos pensamentos que passavam como nuvens
fustigadas por vento forte.
- O diretor da
vossa escola convocou para amanhã uma reunião a propósito de substâncias
ilícitas na escola e parece que vocês estão envolvidos - disparou sem
eufemismos.
Nesse momento, o meu avô, que entrara no habitual
estado de sonolência após as refeições, levantou a cabeça e lançou-me um olhar
vivo que albergava uma boa dose de dúvida e desencanto.
- O que têm a dizer sobre isto? –
juntou-se a minha mãe.
- Bom, quem deu
origem ao problema fui eu - comecei. - A propósito daquela mensagem que tu já
sabes, pedi ao professor João para visionar umas imagens gravadas no sistema de
vigilância da escola. Quando eu esperava ter encontrado o engraçadinho que me
tinha feito passar por lorpa, o professor Luís chamou-me à atenção para um
facto estranho: o João tinha tirado qualquer coisa da minha mochila que
entregou ao Xavier, que, por sua vez, trocou por algo que o Eduardo, de forma
muito suspeita, lhe meteu na mão. Vi ainda que o João pegou no meu telemóvel,
escreveu uma mensagem e voltou a guardá-lo. Não sei mais nada.
- João, tens de
esclarecer esta situação. Aliás, não percebo porque deixaste passar tanto
tempo. Pior, se o Pedro não se tivesse mexido, tudo ficava como estava. Isso
nem parece teu. Estamos aqui para te ajudar, desde que nos contes tudo como
foi. Antes de mais, quero que me digas se aquilo era droga ou não.
- Pai, isso não
é assim tão simples. A história é um pouco mais complicada. Acho que é até
muito delicada. Tenho algum receio do que podem fazer aqueles tipos. São
violentos quando se sentem ameaçados. Não é por acaso que alguns carros têm
sido danificados.
-Na verdade,
não fiz nada para que me envolver com eles, as coisas precipitaram-se sem que
eu pudesse evitar. Nessa segunda-feira, chegamos à escola mais cedo do que era
habitual. Enquanto que o Pedro entrou na escola e foi para o bar, eu fiquei junto
ao portão à espera do Carlos, um colega da minha turma.
- Nesse tempo em
que por ali estive, percebi que o Xavier estava uns metros mais atrás, com o
capuz enfiado, e que, pela forma como olhava para o relógio e para a estrada,
parecia ansioso. Achei aquilo estranho e, por isso, deixei-me estar por ali
para ver o que dava. O pessoal costumava contar umas histórias acerca deles,
que traziam cenas para a escola… Entretanto, o Eduardo chegou e entregou uma caixa
pequena, pelo menos parecia, tipo caixa de chicletes, ao Xavier, que,
subtilmente, o informou da minha presença. Já não tive tempo de disfarçar ou
fugir dali.
Já não tinha
como evitar aqueles dois. Vira, na verdade, o que tinham feito e parecia que estava
em poder de informação que eles queriam anular ou controlar de alguma forma.
O Eduardo era
mais alto e corpulento. Não tinha outra hipótese. Viu que o Xavier o chamou ao
lado para lhe segredar qualquer coisa que daí a pouco viria a saber. Reparou
ainda que tinham controlado as câmaras, pois tudo fora feito fora do alcance
delas. Voltou o Xavier.
- Podes, mas
queremos falar contigo no intervalo das dez. Se falhares, hoje não chegas
inteiro a casa.
27
Naquele
momento, o meu avô Francisco estava completamente desperto. A história que o
João contava espevitava-lhe a curiosidade e a indignação. O meu pai tinha um
olhar perdido, perplexo. Ao lado, a minha mãe fitava, virando e revirando, as
peças da Pandora que reunia numa
pulseira e que constantemente chocalhavam, enquanto batiam na madeira da mesa.
Marcava o ritmo da história qual batuta de maestro em frente à orquestra.
Notava-se um ritmo crescente, pelo que o João começava a ficar irritado.
- Mãe, acalma-te.
Não batas com a pulseira na mesa. Que coisa!
- Desculpa.
Vá continua. O Xavier o Eduardo deixaram-te à porta da escola. Onde é que o
Pedro entra nesta trapalhada?
A minha mãe estava impaciente. O João
tinha de continuar.
-
Encontrei-me com eles no bar, alguns minutos antes das dez horas. Também lá
estava a Teresa.
- A Teresa
da minha turma? - quis confirmar. - A que propósito?
- Já vais
saber. Nem sabes quem tens a teu lado, Pedro! A miúda não tem escrúpulos!
- Há uma
coisa que continua a deixar-me confuso - atalhou o meu pai - porque que é que
não nos disseste nada, ou não falaste com o teu diretor de turma? De certeza
que teria atuado e colocado esses alunos sob vigilância policial.
- Pai, deixa-me
explicar. Já vais perceber que tomei a decisão que me pareceu melhor para mim e
para o Pedro. Foi a Teresa que me chamou. Sentei-me com eles numa mesa junto à
janela.
- Olá, João,
já ouvi dizer que agora andas a espiar o pessoal.
- Achas que
estou interessado no que eles andam a fazer?
- Tens mesmo
cara de inocente! Se calhar, foste direitinho ao gabinete do diretor.
- Estás
parva! Já te disse que não me interessa a vossa vida. Não disse nada a ninguém.
- Nem vais
dizer, ó direitinho - o Eduardo entrava na conversa, de forma ameaçadora.
-É assim, se
continuam a ameaçar-me, acreditem que ponho mesmo um ponto final nisto –
arriscou o João.
- Olha,
olha, o menino já usa sinais de pontuação! Pois ouve bem o que te vamos dizer.
Não vais pôr um ponto final nesta cena, vais pôr um ponto final parágrafo –
impôs-se a Teresa. - Vais com o Eduardo e com o Xavier ao corredor onde está a
mochila do teu irmão. Abres o bolso de fora, retiras uma caixa de chicletes que
nós lá colocamos, aqui no bar, antes de ele ir para a aula.
- Estás
parva, não acredito, como é que tiveram acesso à mochila?
- Está
caladinho! O Pedro deixa mochila em qualquer lado. Antes do teste de Geografia,
ainda foi jogar futebol. Não precisámos de muito tempo para deixar lá a
encomenda. E vês aqui alguma câmara? – disse, sorrindo, para desespero do João.
- Já sabes, vais com eles agora, retiras a caixa para a devolveres aqui ao
pessoal.
- Não
percebo, porque é que eu tenho de fazer isso?
- Porque, se
não, vou já direitinha falar com o diretor para lhe expor uma situação deveras
preocupante. Senhor diretor – simulou - nem sei como dizer-lhe estas coisas,
mas não posso ficar calada, perante esta ameaça ao bom ambiente escolar. Quero
que saiba que o Pedro tem na sua posse centenas de doses de droga e quis que eu
lhe comprasse… Achas que tenho jeito? – perguntou.
O João
estava num labirinto deveras bem montado. Não tinha por onde escapar. Não havia
por ali nenhum fio que lhe devolvesse a saída ou material para as asas que o
elevariam acima daqueles muros em que o encerraram. Aceitou sem ponderar muito.
Mas a Teresa ainda tinha mais uma exigência que lhe acentuava definitivamente o
seu lado negro.
- Vais fazer
isso e tens ainda outra tarefa que me vai deixar muito feliz. Não suporto ver
aqueles dois juntos. Vais pegar no telemóvel do teu irmão e escrever uma
mensagem para a mãe da Catarina. Ele tem lá o número, procura-o. Escreves
qualquer coisa como isto: “Catarina, gostei muito da noite que passamos juntos,
temos de repetir.” Aposto que decoraste tudo. És muito bom aluno, por isso até
podes usar recursos expressivos. Ah, já me esquecia, apagas a mensagem depois
de a enviar.
A Teresa tinha estado ao lado da Beatriz
quando esta ficara a saber que a Catarina já tinha com ela o telemóvel que o
tio lhe oferecera.
Nesse
momento, o meu pai já estava encostado na cadeira e olhava o teto falso,
mostrando uma surpresa cada vez mais acentuada.
- Bem
tramado, sim senhor. Esses meninos são do piorio! Não tinhas hipóteses, João.
Se, por acaso, resolvesses falar, estava o Pedro também metido num grande
sarilho. Era a palavra dele contra a da Teresa e, perante as provas encontradas
na mochila,… Seguraram-se muito bem. Só não contaram foi com as câmaras. Um
pormenor de extrema importância. De qualquer forma nós é que continuamos com a
batata quente nas mãos. Como vamos garantir ao diretor que o Pedro é inocente
no meio desta trapalhada toda?
- Contaram
com as câmaras, sim. Aliás, as câmaras serviriam para provar o meu envolvimento
e o do Pedro, portanto, para me manterem calado! Agora só nos resta contar a
verdade. Não temos nada a temer. Fica esclarecido o mistério da mensagem. Resta
agora encontrar uma solução para pôr aqueles três na ordem.
O João
falava com convicção mas a minha mãe interveio com mais um obstáculo.
- Não pensem
que lhes vai acontecer alguma coisa. As imagens não provam nada. É a palavra
deles contra a do João. Eles vão sempre dizer que eram chicletes ou outra coisa
qualquer. Agora o que pode acontecer de grave é que o Pedro e o João passarão a
estar referenciados pela polícia e terão de prestar declarações. Um
aborrecimento. Estas coisas nunca são boas para ninguém.
O meu avô
tinha estado calado, absorvendo cada palavra desta história.
- Ó Pedro,
não te esqueças da nassa de que te falei há dias.
- De que é
que estás a falar, avô? - quis saber o João.
- Que é
preciso surpreendê-los, virar a vassoura contra o feiticeiro.
Não resisti
a uma saudável gargalhada. Também o meu avô se enganava nesta típica expressão
da língua. Lembrei-me do António e de como seria interessante que ele estivesse
ali para me ajudar a encontrar uma solução.