20
O Natal estava próximo e aquela era a
última semana de aulas antes das férias. Naquele dia, acordei mais cedo do que
o habitual. O João ainda dormia quando me sentei na cama e peguei no telemóvel
para ver as horas e as mensagens. Estava ansioso por encontrar a Catarina.
Enfiei-me dentro das calças que me esperavam pacientes e descuidadas ao fundo
da cama. No armário procurei umas meias e uma sweatshirt para aquele dia que me parecia um dos mais felizes dos
últimos tempos. Em frente ao espelho, murmurei a palavra que levava escrita na camisola,
trap, e achei-a muito oportuna: tinha
caído numa muito bem montada e estava disposto a usar a mesma moeda. Levantei a
mochila que até ali permanecia atrás da porta do quarto e desci para a sala
onde esperei pelo pequeno-almoço.
O sofá abraçava-me com os seus almofadões
macios, enquanto eu fixava um ponto no teto e abanava as pernas, alimentando o
fogo da imaginação que naquele momento já habitava a escola.
Repentinamente, lembrei-me do avô
Francisco e da sua habilidade para apanhar pássaros nas armadilhas que
espalhava pelos campos. Precisava daquele jeito especial. Pensei que talvez
fosse um erro fingir que tudo tinha acabado entre mim e a Catarina, conforme
combináramos por mensagem. Se assim fosse, o responsável por aquela trabalhada
toda não se voltaria a manifestar. Tratei logo de comunicar esta alteração à
Catarina. A resposta não se fez tardar:
"Ok. Apaixonados como se nada tivesse
acontecido. Acho que não me vai custar nada representar este novo papel:)"
O relógio apontava as oito horas e
cinquenta minutos, quando transpus o portão da escola, deixando para trás o meu
irmão, ao contrário do que era habitual. Percorri os corredores, procurando o
caminho por entre grupos de alunos que por ali esperavam a entrada nas salas.
Nenhum deles se desviava um centímetro para eu passar.
A sala onze espreitava lá ao fundo. De
braços cruzados, olhando como quem pensa e espera, vi a Catarina encostada a
uma coluna vermelha, com uma das pernas ligeiramente fletida. Numa das mãos
segurava o telemóvel. Instintivamente, procurou-me com o olhar. Permaneceu
imóvel mas o sorriso que me dedicou cativou-me, cercou-me de forma inefável.
Aquele modo peculiar de me fixar encantava-me.
- Pedro! - era a Teresa que se atravessava
no meu caminho. - Pedro! Sabias que o Tó não vem hoje às aulas. Parece que...
Acho que nem a vi. Beijei carinhosamente a
Catarina, perante o espanto de todos. A Teresa procurou a Beatriz e pensou em
voz alta como só ela sabia fazer:
-Então eles não tinham acabado? Não
percebo nada disto. Isto assim já não tem piada nenhuma.
- Cala-te! Não sejas desmancha-prazeres -
reagiu a Beatriz. - Será que não podes pensar com a boca fechada pelo menos uma
vez na vida. Até parece que gostas de os ver sofrer, francamente, Teresa.
Enquanto as duas falavam, a Catarina e eu
comentávamos com o olhar aquelas duas. Um brilho e um sorriso comprometido
bastavam para nos entendermos. Apesar de tudo, gostávamos muito delas.
Enquanto esperávamos o início da aula de
Português, vi o meu irmão que passava com os headphones. Nem sequer nos olhou. Ou melhor, deixou a impressão de
que nos viu mas não quis enfrentar-nos. Quis partilhar com ele a minha alegria:
- João!
Fiquei com o braço suspenso. Queria apenas
que me visse de novo ao lado da Catarina. Resolvi que mais tarde falaria com
ele. Com certeza que estaria concentrado na música ou nalguma matéria que revia
mentalmente.
Resolvi trazer a Catarina para o exterior
da escola.
21
- Que horas
são? - quis saber a Catarina, enquanto se levantava do banco mesmo em frente ao
edifício que nos esperava para as aulas da manhã.
- Faltam
três minutos para as nove - respondi sem me levantar.
- Acho que
tomamos a melhor decisão. Não devemos fingir nada! Se houver alguém que queira
separar-nos, terá de ver-nos juntos para voltar a tentar.
- Concordo.
Naquele momento, levantei-me e abracei a
Catarina, procurando um beijo que ela fingia evitar.
- Já reparaste que estamos a ser
espiados!?
- Como
assim? Nunca te importaste com isso.
- Não é
isso! A escola agora tem câmaras de vigilância nos corredores, além das que
existem nos espaços exteriores.
- Acho que
não estamos a cometer nenhum crime - protestou a Catarina, ainda sem perceber o
que ia na minha cabeça.
- Escuta,
não é nada disso. A sala dos monitores está sob a responsabilidade do professor
Luís…
- Não
percebo. Temos de ir, Pedro, caso contrário, chegaremos atrasados.
- Catarina,
quem enviou a mensagem na semana passada fê-lo durante o intervalo depois do
primeiro tempo da manhã. Lembras-te? Tu faltaste à primeira aula. Era teste de
recuperação de Geografia…
- Até aí
também eu chego. Deixaste a mochila no banco junto à sala. Aliás, eu já te
tinha dito que um dia destes ficavas sem as tuas coisas. Mas tudo bem. Pois
foi, nesse dia, eu, a Bea e o Bernardo fomos dispensados desse teste de
recuperação. Por isso, só viemos no segundo tempo. Faltamos ao apoio de
Matemática previsto para essa hora.
- Pois foi.
E eu deixei a mochila à porta da sala.
- Será que
foi um deles?! Não, a Bea e o Bernardo?! Não têm motivo para isso!
- Percebes
agora o meu interesse nas câmaras de vigilância?
- Lembro-me
que, nesse dia, em casa, antes de sair para a escola, enviei uma mensagem para
a Bea a confirmar que já tinha telemóvel.
- E ela
deduziu que a tua mãe já teria de novo o dela.
- Não, não
acredito nisso!
- Acho que o
professor Luís nos pode ajudar.
- Já passam
cinco minutos. Vamos para a aula.
Caminhamos
abraçados para o interior do edifício. Estávamos a caminho da solução do enigma
que nos tinha atormentado nos dias anteriores.
22
As aulas de
terça-feira correram ao lado dos meus pensamentos. Respirava fundo para dar
espaço à imaginação que invadia os dias seguintes na esperança de antecipar
respostas que as gravações de vídeo guardavam seguramente. Não queria acreditar
que algum dos nossos amigos pudesse ter-nos feito uma daquelas partidas. Por
momentos, desistia da ideia de visionar as imagens para não ter de enfrentar
essa possibilidade. Contudo, a curiosidade e a vontade de vingança eram
irresistíveis. Abriam-se num sorriso maroto que espreitava no canto da boca.