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As aulas de
terça-feira correram ao lado dos meus pensamentos. Respirava fundo para dar
espaço à imaginação que invadia os dias seguintes na esperança de antecipar
respostas que as gravações de vídeo guardavam seguramente. Não queria acreditar
que algum dos nossos amigos pudesse ter-nos feito uma daquelas partidas. Por
momentos, desistia da ideia de visionar as imagens para não ter de enfrentar
essa possibilidade. Contudo, a curiosidade e a vontade de vingança eram
irresistíveis. Abriam-se num sorriso maroto que espreitava no canto da boca.
- Em que
pensas, Pedro? Estás calado desde que entraste no carro. Passou-se alguma
coisa? - a minha mãe sondava o meu olhar misterioso. - Podem passar comigo em
casa do avô, ou preferem ir já para casa?
O meu irmão seguia ao lado da minha mãe.
Olhava a estrada enquanto ouvia música cujo ritmo eu podia acompanhar pelo
balanço do seu corpo.
- Podemos ir
todos - respondi depois de consultar o João com o olhar. - Mãe, é possível usar
imagens gravadas em lugares públicos para obter informações que possam revelar
provas importantes, por exemplo, para a resolução de um crime?
- Penso que
sim, mas há muitas variáveis que será necessário acautelar… Mas estás a pensar
em algum caso que eu conheça?
- Não.
Esquece. Nada de especial.
- O Pedro já
reparou que na escola há câmaras de filmar por todo o lado e está com receio do
que possam ter gravado - surpreendeu-me o João.
- Deves ser
parvo, não?! Receio de quê? - quis saber agarrando-lhe o ombro para que se
voltasse para trás e me enfrentasse.
- Tu lá sabes
o que fazes nos intervalos - continuou, sem me olhar e voltando a colocar os headphones.
- João, para
com isso - interrompeu a minha mãe. - Pedro, explica lá a tua pergunta.
- Já
chegamos, vamos lá, pois quero muito falar com o avô - desviei da melhor forma
que consegui.
O avô
Francisco já nos esperava no portão, interrompera a caminhada que fazia à volta
da casa encostado a uma bengala que o ajudava nas passadas. Gostava de o ver
assim, autónomo, sorridente, com o chapéu que o protegia do calor e do frio e
lhe dava uma graça especial. Um adereço que não dispensava para onde quer que
fosse. Com ele respeitava e era respeitado. Atrás dele, as laranjeiras
esforçavam-se para aguentar o peso dos frutos que rebentavam nos ramos e
disputavam o espaço disponível.
- Então a
tua nassa, Pedro? - surpreendeu-me. - Já
lá caiu algum pássaro?
- Ó avô, vejo que não se esqueceu! Acredito
que em breve apanharei o primeiro.
O João
avançou para o interior da casa, deixando comigo um esgar que me deixou
irritado.
- Ainda não apanhaste nenhum, mas andas
muito mais feliz. Nem sei se te interessa continuar a caça, contudo, tens de
continuar atento. A qualquer momento, o pássaro pode voltar a picar o isco.
Sabes, eu também era como tu. Andava sempre saudavelmente distraído. Não
pensava sequer na possibilidade de alguém se incomodar com a minha felicidade.
Não julgava possível sequer que alguém conjeturasse planos para me fazer
sofrer. Pois enganei-me! Ver-me sofrer era o prazer de muita gente!
- Nunca pensei nisso assim. Mas começo a
acreditar no que dizes.
- Por incrível que pareça, às vezes, as
pessoas desiludem-nos. São dominadas por um egoísmo que as controla e não as
deixa suportar o sorriso daqueles que estão mesmo ali ao lado.
- Estás a querer dizer-me alguma coisa,
avô? Achas que devo estar atento aos meus colegas?
- Vivem acorrentadas nas fronteiras e nas
convenções que elas próprias criaram e não são capazes de sair desse quadrado
que as reduz, que as subtrai!
- Avô, de quem estás a falar?
- Das pessoas, Pedro.
- Tanta amargura, como podes olhar assim
para as pessoas?
- Há pessoas que amam as plantas do seu
quintal e pensam que o amor tem apenas aquela medida. Porém, há pessoas que levantaram
os olhos e já não têm quintal e o amor voa sem muros que o impeçam, sem nomes
que o penalizam.
- Avô Francisco, continuo sem entender o
que me dizes, assim de uma forma tão elaborada.
- Pedro, quero dizer-te que o bom amor
não subtrai, pelo contrário, acrescenta, multiplica.
- Avô, estás a falar de quem?
- Ó filho, diz à tua avó que vou agora
para o trabalho, no comboio das 7.45h. Vai ao guarda-fatos buscar um casaco
quente, por favor.
Não adiantava contrariá-lo. Naquele
momento, não interessava que soubesse as horas com exatidão, nem que já não tinha
idade para ir trabalhar. Guardei as palavras que me ofereceu do alto da sua
idade e que me deixaram desconcertado. Que sentido para aquelas palavras? Que
relação com o enigma que tinha em mãos? O que me acontecera teria alguma coisa
a ver com o amor?
23
O
professor Luís entrou no gabinete da direção, enquanto eu passeava os dedos
pelo monitor do telemóvel, encostado à parede que naquela hora parecia não ter
cor, escondida atrás dos papéis que se amontoavam, esperando que, por acaso,
alguém por ali procurasse alguma informação.
-
Chega aqui, Pedro - o professor Luís fez-me sinal para entrar no gabinete. - Senta-te
aí enquanto entro no sistema.
Daí
a pouco as imagens emergiram no ecrã. Endireitei-me na cadeira para ver melhor.
Por momentos, senti um calor enorme nas orelhas. Lembrei-me que seria fácil
encontrar imagens minhas com a Catarina.
Naquele momento
largou o cursor que libertou o filme perante os nossos olhos. Alguns momentos
calados foram suficientes para nova pausa no filme. O professor Luís voltou-se
para mim:
Eu nem
conseguia responder. O meu coração disparara. Ondas de calor percorreram o meu
corpo descontroladamente, paralisando qualquer palavra que procurava forma na
minha boca.
Eu
não queria acreditar nas imagens que me invadiam como ácido abrasador. O meu
irmão, o João!? Um precipício cavou-se nas minhas costas. De repente, senti-me
sem terreno, como se o meu passado se afundasse perante aquelas imagens. Também
o professor Luís estava incrédulo. Retomava, vezes sem conta, o início daquele
episódio e olhava fixamente um determinado momento. Comecei a estranhar aquela
insistência.
-
Obrigado, professor. Não preciso de ver mais nada. Foi o meu irmão que me meteu
nesta confusão. Só não percebo porquê! Que interesse é que ele tinha? Este
tempo todo a disfarçar! Cheguei mesmo a falar com ele um dia à noite… Não
percebo a ideia dele!
-
Quem são estes rapazes que estão ao lado do teu irmão? - quis saber o professor
Luís, interrompendo bruscamente o meu lamento.
-
Repara neste pormenor: antes de o teu irmão pegar no telemóvel, ele entregou
qualquer coisa a um deles que retirou da tua mochila. O que é que o teu irmão
deu aos colegas? O que trazias na mochila, Pedro?
Fiquei
petrificado, outro abismo acabara de se abrir agora à minha frente. Ficara
completamente isolado, sem saída. Traído pelo próprio irmão e desacreditado
perante os professores. Qualquer passo era caminho sem terra.
-
Desculpe, professor, mas não foi para isto que eu aqui vim. Há aqui um erro
qualquer. Não sei o que se passou ali. Desconheço completamente o que eles
estão a trocar.
-
Pedro, esta ocorrência parece-me muito grave. Terei de a comunicar à direção
que, de certeza, entrará em contacto com a polícia e com os teus pais.
-
Repara bem, os rapazes têm uma atitude muito suspeita, trocam, guardam sem
olhar, disfarçam e afastam-se. Fica apenas o teu irmão com um telemóvel na mão
que usa, volta a guardar e segue em direção contrária. Pedro, tens até amanhã
para tentar esclarecer esta situação junto da direção. Caso contrário, serás
confrontado com o agente da Escola Segura que, perante estas imagens, não terá
dúvidas em interrogar-te juntamente com o teu irmão.
-
Pois é, Pedro, a vida tem destas surpresas. Temos de estar preparados para as
resolver. Se não tens nada a temer, não terás de ficar preocupado. Agora podes
sair. Tenho uma reunião já de seguida.
-
Até amanhã, Pedro. Fala também com os teus pais. É muito importante que eles
saibam o que se passa. Sabes que serão contactados pela direção.
Saí.
Caminhei mergulhado nos pensamentos. Tudo à minha volta tinha perdido a forma e
a cor. Que caroço! Onde eu pensava estar a solução esperava-me um problema
ainda mais grave. No telemóvel procurei o número da Catarina.
-
Sim, sou eu. Estive com o professor Luís a ver o vídeo… Não, estou ainda pior,
nem vais acreditar. Vem ter ao bar.