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O
encontro com a Catarina deixara-me mais calmo. As ideias mais cruéis tinham
sossegado e a minha imaginação voava agora por entre razões mais plausíveis.
Arrancar o João do retrato que levei anos a construir era um contrassenso, mas,
perante as provas que me atacaram como uma estalada inesperada, não resistia a
pensar nas piores coisas. O meu irmão envolvido com aqueles tipos! Não, não
podia ser! Era mau demais. Um golpe muito duro para os meus pais. Depressa
recordei alguns colegas que em nada se desviavam do comportamento considerado
equilibrado, adequado, e que se revelaram, repentinamente, o oposto. Ostentavam
uma vida que lhes servia de máscara para ocultar uma outra no mínimo
questionável, onde abundavam as noites sem dormir e a alucinação causada por substâncias
a todos os níveis perigosas. Perturbavam-me, no dia seguinte, aqueles rostos
cansados, descoloridos, ávidos por água. Sentados no átrio, pareciam
derrotados, esquecidos, desligados da vida que fervilhava nos passos dos outros
que passavam para as aulas.
O
João, definitivamente, não encaixava naquela moldura. Olhava as coisas dele por
ali no quarto, como sempre, organizadas. Procurei no passado pistas, pontas
soltas que agora fizessem sentido. Nada.
-
Deves estar a passar-te, não? Eu não tenho nada a ver com os desentendimentos
entre ti e a Catarina.
-
Será que não? - desafiei. Nesse momento, o João hesitou, disfarçou o embaraço,
escolhendo umas meias numa gaveta. - Então, não falas? Não sei como conseguiste
disfarçar este tempo todo.
-
Não percebo onde queres chegar. Abre logo o jogo! Já vi que andas outra vez com
a Catarina, por isso, só pode ser um problema relacionado com o futebol ou
então com algum teste.
-
És parvo ou quê!? Não sabia que andavas tão atento à minha relação com a
Catarina! Melhor, não sabia que agora és um Cupido destruidor que separa as
pessoas. Lanças as setas venenosas pela calada e escondes o arco para ninguém
ver!
-
Estás a estudar Camões, é? Há dois anos também adorei a mitologia clássica a
propósito d’Os Lusíadas... Mas continuo
sem perceber o teu jogo de palavras. Talvez fosse melhor ires direto ao
assunto.
-
Olha, João, nunca imaginei que tu me pudesses trair. O que é que tu queres? Falamos
há dias sobre aquela mensagem que a Catarina recebeu e tu até conseguiste
dar-me conselhos. És um grande mentiroso! Se fosses um tipo lá da escola,
resolvia já isto ao soco.
-
Estúpido! Além disso, estás metido num grande sarilho, quer dizer, estamos!
Vais ter de me explicar direitinho que porcaria era aquela que foste buscar à
minha mochila e que entregaste ao Eduardo e ao Xavier. E não negues, eu vi tudo
nas gravações do sistema de vídeo da escola! Só não quis dizer o nome deles ao
professor Luís!
-
Não sei como conseguiste, mas ainda bem! Tenho um grave problema para resolver
e ainda não tive coragem para o fazer.
O jantar era em
casa do avô Francisco. Quando entrei no carro, já todos me esperavam. As
últimas palavras do João continuavam a fazer eco na minha cabeça. O que
quereria ele dizer com aquilo?
Desta vez era o
meu pai que conduzia, por isso, seguia atrás com o João que ouvia música e
fazia questão de fingir que não dera pela minha chegada. Olhava as árvores que
se mantinham firmes na escuridão que se apoderava daquele final de tarde. Era
assim que ele se sentia, rodeado de dúvidas.
- Em casa do
avô, quero que me contes tudo. E espero que não estejas a inventar, não gosto
que me enganem. Tiveste foi sorte por a mãe ter chegado naquele momento.
-
O diretor da escola telefonou a marcar uma reunião para amanhã. Parece que o
problema é sério. Algo relacionado com droga… Não acredito que vocês tenham alguma
coisa a ver com o problema. Enfim, falamos daqui a pouco - sublinhou o meu pai.
Estas
palavras atingiram-me duramente. Além disso, o João era o único que podia
defender-nos das suspeitas que o vídeo lançara sobre nós. A mensagem enviada em
meu nome para o telemóvel da mãe da Catarina era agora um problema bem mais
simples do que este.
Várias
questões se levantavam agora no meu pensamento: por que razão o João enviara a
mensagem naquele momento, logo após a troca suspeita com o Xavier e o Eduardo?
Não fazia muito sentido. Além disso, nunca tinha visto qualquer encontro entre
o meu irmão e aqueles dois. Por que razão se encontraram ali os três? O que
estaria escondido na minha mochila? Quem o esconderia lá? Porquê? Ansiava pelas
respostas que o João podia dar-me.
26
O meu pai deu
assim início à conversa que eu esperava desde o início do jantar. Por isso comi
pouco. A cada garfada, perdia-me nos pensamentos que passavam como nuvens
fustigadas por vento forte.
- O diretor da
vossa escola convocou para amanhã uma reunião a propósito de substâncias
ilícitas na escola e parece que vocês estão envolvidos - disparou sem
eufemismos.