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Sexta à noite. A Beatriz tinha convidado a
Catarina e a Teresa para dormirem em casa dela. O trabalho de Francês seria o
pretexto para mais uma longa conversa. Tinham de confecionar o "Tronco de
Natal", designação que a Catarina considerava horrível, já que preferia a
versão francesa Bûche de Noël. Aquela
noite seria perfeita para pensarem nos ingredientes e na forma a dar ao bolo. Viviam
o conforto macio de um fim de tarde que antecede o fim de semana, a sensação brilhante
de fazer o que lhes apetecia e a expectativa de estarem juntas longas horas,
sem horários limitadores. Sondavam os smartphones
sem objetivo aparente.
A viagem de carro decorria num silêncio
sorridente que as unia.
- O que é querem jantar? - quis saber a Beatriz.
- Não sei. Não me apetece nada em especial
- respondeu a Catarina, sem tirar os olhos das árvores que permaneciam firmes
sob aquela chuva fininha que bailava entre os ramos.
- E se fosse uma piza, assim, de tamanho familiar! – a Teresa abria muito os olhos
enquanto desenhava com as mãos o perímetro exagerado da piza. - Já não como há muito tempo, vá lá, pode ser?
Concordaram. Nessa altura, a Beatriz
aproximou-se da Catarina e perguntou-lhe de forma discreta se a mãe já sabia da
nossa relação.
- Mais ou menos, ela não é parva. Passo
montes de tempo a falar pelo telemóvel, no Face,
no Insta… Há dias entrou no meu quarto e resolveu perguntar quem era meu
amigo com quem passava tanto tempo a conversar. Não tive hipótese de lhe
continuar a esconder.
- E ela reagiu bem? - perguntou a Teresa.
- Acho que sim. Pediu-me para ter cuidado
com as aulas, com os trabalhos e com mais um montão de coisas. Sabes como são
as mães!
- Mas ela já conhecia o Pedro e a mãe
dele, não? - continuou a Teresa.
- Sim. A mãe do Pedro costuma trocar
impressões com a minha sobre as disciplinas e os professores.
- Ui, já estou a imaginá-las: o meu filho
é muito inteligente mas não gosta nada de estudar. A minha filha é muito
organizada, muito metódica. Espero que não mude, mas nestas idades nunca se
sabe... - a Teresa não perdia a oportunidade para estas intervenções que
deixavam as amigas furiosas. - Mas o meu filho já sabe, se baixar as notas, sai
do futebol! A Catarina deixa o ténis e, se necessário, meto-a em explicações!
- Acaba com isso, Teresa! – insurgiu-se a
Catarina.
O carro parou em frente ao portão que se
abria lentamente cortando a chuva que, naquele momento caía de forma intensa,
inundando o jardim que ali principiava e acompanhava a calçada que conduzia ao
alpendre onde se abrigava o carro.
Dois edifícios antigos rigorosamente
recuperados erguiam-se cercados por cedros que quase os escondiam. Os jardins eram
limitados, junto ao muro e ao alpendre que acompanhava a fachada principal da
casa, por camélias que em dezembro se atreviam a florir. De um lado da calçada,
uma oliveira, alinhada com uma tília, um pinheiro e um liquidâmbar
levantavam-se do chão ocupando com vigor e beleza o espaço disponível. Do
outro, abundavam plantas aromáticas. Entre elas reinava um azevinho viçoso que
competia em altura com um limonete.
- Fiquem à vontade. Se precisarem de mim,
é só chamar. Estou na lavandaria.
- Jantas connosco, mãe?
- Não. Vou estender uma máquina de roupa
e, quando o teu pai chegar, preparo alguma coisa para nós. Não te preocupes,
Beatriz.
A Teresa não resistiu:
- Vocês já não têm empregada?
- Temos, mas menos horas por semana, faz
apenas limpeza. A minha mãe trata das roupas - explicou a Beatriz sem rodeios. -
As coisas andam um pouco complicadas. Os meus pais queixam-se dos impostos e da
insegurança no trabalho. Neste momento, sou eu que passo a minha roupa a ferro.
- Ó Catarina, o telemóvel com que tens
andado não é teu pois não? - interrompeu a Teresa.
- Não, é da minha mãe. Estou a ver se
encontro um usado. Penso que amanhã vou ter um que era do meu tio José. Ele já
não precisa dele e o meu pai quer comprar-lho. Enfim, é melhor do que não ter
nenhum. A minha mãe já se anda a passar por eu querer andar com o dela.
- Vais fazer festa de aniversário e convidar
o pessoal da turma? - quis saber a Beatriz.
- Acho que sim. Na segunda, digo alguma
coisa. Tenho de falar sobre isso com os meus pais.
O aniversário de uma das amigas era sempre
uma oportunidade para estarem juntas. Além disso, tanto a Beatriz como a Teresa
queriam muito que os meus amigos fossem também.
- Achas que o Tó e o Bernardo podem vir? –
continuou a Beatriz.
- E o Pedro, vais convidar o Pedro, não
vais? – perguntou a Teresa, descontroladamente.
- Não sei se eles podem vir. Se tiverem
jogo nesse dia, vai ser complicado. Eu depois falo com eles. Acho que eles vão ficar
tolinhos com as minhas amigas do ténis, a Joana e a Andreia.
A Beatriz e a Teresa não gostaram muito
desta última ideia. Aquelas miúdas eram concorrentes com elevado potencial.
Facilmente deixavam os rapazes desorientados, acotovelando-se à sua passagem,
sem palavras capazes. Apenas lançavam olhares e algumas interjeições que
manifestavam de forma bruta o que sentiam. Mas não deixava de ser muito
divertido.
17
- Olá, avô! Boa tarde.
- Vem cá, João, dá um beijo ao teu avô.
Eu já sabia que o avô Francisco vivia com
perdas de memória e não nos reconhecia com facilidade.
- Não é o João, avô, é o Pedro. Então como
tem passado?
- Muito mal, sempre muito só. Ninguém me
vem visitar. Já ninguém quer saber de mim!
- Ó pai, não diga isso. O pai tem sempre
cá em casa a Emília, nunca está só. E, sempre que é preciso, eu estou presente.
Então, vá lá, diga-me o que fez esta manhã?
- Esta manhã... O Pedro está um homem! Chega-te
cá, meu rapaz. Então a escola, as notas são boas? Não percas esta oportunidade.
No meu tempo, só alguns tinham o privilégio de ir à escola. Ainda hoje de manhã
tive de apanhar o comboio. Estava um frio medonho. A chuva penetrava até aos
ossos. Quando cheguei ao comboio, já estava todo molhado. Foi uma tristeza, nem
lanche tinha. Quando voltei ao almoço, estava com uma larica. A minha mãe já
tinha a sopita quentinha. Aquilo é que me soube! Ó Madalena, a minha mãe não
morreu, pois não?
A minha mãe ouvia vezes sem conta esta
pergunta. No início, custava-lhe a resposta mas agora já não estranhava e
respondia com serenidade.
- Já, pai, já faleceu há uns anos. O pai
tem oitenta e dois anos e já lá vai o tempo em que ia à escola. Quem agora vai
à escola são os seus netos. Hoje escreveu alguns versos? Quer que o Pedro os
passe no computador?
- Não, não me apeteceu. Mas vou compor um
poema para a tua mãe que faz anos este mês. Se o Pedro mo puder passar e tirar
cópias para toda a gente...
A minha reação mereceu a desaprovação
pronta da minha mãe que adiantou a resposta que eu não queria dar:
- Claro, pai, o Pedro não se importa.
Eu ia dizer que o João tinha mais jeito e
tempo para aquela tarefa mas calei-me. Com um lenço limpei suavemente a saliva
que percorria o queixo sulcado do meu avô sem que ele desse conta. E, naquele
momento, senti-me grande, enorme. O olhar do meu avô procurava o meu e
lentamente abria um brilho sorridente e agradecido.
- Tu não andas bem, pois não, Pedro?
Pareces preocupado com alguma coisa.
- Porque que é que dizes isso, avô?
- São os teus olhos muito irrequietos,
olhas muito para o chão.
- Não é nada, uma pequena confusão. Um
engraçadinho tentou encravar-me, tramar-me com uma mensagem que eu nunca
escrevi.
- Sei... Olha lá, eu até gosto de passear
e, quando era mais novo, andava horas pelos campos. Adorava colocar nassas, que
eu mesmo fazia com vergas. Depois era só esperar que os melros não resistissem
à tentação de uma pequena minhoca que lá deixava presa. Porque não fazes o
mesmo?
A minha mãe regressava nessa altura à sala
de estar.
- Pai, nós já vamos. Daqui a pouco a
Emília traz o jantar. Coma tudo, está a ouvir? Beijo. Até amanhã.
- Está bem. Ó Madalena, tens de ensinar o
teu filho a fazer uma nassa, ainda te lembras?
- Não, pai. Pronto, fique bem, até amanhã.
Entramos no carro para regressar a casa e
eu não deixava de pensar nas palavras do avô Francisco. O que queria ele dizer
com aquilo?
- Mãe, o que é uma nassa?
- Acho que é uma armadilha. O teu avô adorava
caçar pássaros com elas. Era uma armadilha feita de verga em forma de pirâmide.
Acho que tinha entendido o conselho do meu
avô.