11
O
sono teimava. Resistia. A escuridão e o silêncio que me cercavam não me
acalmavam. Procurei o telemóvel para ver as horas e para ter algo que me
ocupasse o pensamento. Lembrei-me de que o tinha deixado a carregar na cozinha
junto à torradeira. Instintivamente, os meus pés procuraram os chinelos e
facilmente se entenderam. Ao descer as escadas, percebi que os meus pais
estavam ainda na sala e conversavam a meia voz. Parei a meio, discretamente, o
meu nome fora motivo suficiente.
-
Madalena, isso não faz sentido nenhum. O Pedro não é rapaz para essas
confusões! E ele tem namorada?! Não me tinhas dito!
-
Tem uma amiga especial. É a filha da Eduarda e do António.
-
Parece-me bem, isso até é bom porque poderá ficar mais ajuizado, mais
concentrado. As raparigas parecem-me sempre mais trabalhadoras, mais maduras.
-
Achas?! Eu cada vez me surpreendo mais com a mentalidade destes miúdos. Parece
que ruiu tudo à volta deles, que anularam todas as referências, percebes? Para
mim as referências são valores, são como faróis que orientam. No entanto, eles
acham que são a medida de todas as coisas. O problema é que também os adultos
que nós conhecemos não se distinguem deles; tudo é relativo, tudo se resume à
forma como cada um vê e entende as coisas. Assim, no limite, é impossível,
sequer chamá-los à atenção.
-
Não exageres! Não percebo o que é que isso tem a ver com o Pedro ou com o João.
-Vicente,
tu disseste que as raparigas são mais maduras, mas eu não acredito em nada
disso. O ambiente na escola é cada vez mais estranho. E não penses que elas são
mais recatadas. A Andreia e a Isabel contam-me histórias incríveis que se
passam lá na escola onde dão aulas! A forma como os alunos encaram o
conhecimento e os professores é alarmante! Há mesmo casos de violência! Por
isso, falava em referências. Estes miúdos não têm família, não têm professores…
Enfim, são canas agitadas pelo vento!
-
Continuo a dizer que estás a exagerar. Sempre foi assim. Já te esqueceste de
como fomos com a idade deles? Também nos baldávamos a certas aulas, também
criticávamos alguns professores. Também dávamos cabo da cabeça aos nossos pais,
enfim, nada de novo.
-
Sim, mas não te esqueças que determinados valores mantinham o seu lugar e eram
inquestionáveis.
-
Sim, concordo, o silêncio, a disciplina, o sacrifício estão hoje mais débeis.
Mas continuo a defender que estes jovens são formidáveis e repletos de valores.
Podem é não ser aqueles que nós queremos a toda a força. Sei lá, a respeito dos
professores, o que tenho ouvido dizer é que já não interessa tanto o professor
que é uma barra em conhecimentos mas aquele que orienta os alunos na construção
do conhecimento. A informação está hoje de tal maneira disseminada e disponível
que, por vezes, basta mostrar o caminho aos alunos. Mas isto levar-nos-ia muito
longe... Não queres ir buscar cereais para nós. Quero com maçã aos pedacinhos.
-
Hoje é a tua vez - protestou a minha mãe. - E então o que achas que devo fazer
com o Pedro? Falo com ele sobre a mensagem e da conversa que tive com a
Eduarda?
-
Claro! Faz isso.
Uma carícia na orelha e um sorriso maroto
foram suficientes para me sentir a mais. Desci as escadas que faltavam.
-
Vou buscar o telemóvel - falei sem os olhar, enquanto caminhava.
-
Vai descansar, Pedro. Já é muito tarde.
Aquela conversa ocupou-me mais algum
tempo. Senti um misto de preocupação e alívio. Aquela confusão já tinha chegado
ao conhecimento dos meus pais mas isso deixava-me mais aconchegado, mais
protegido.
Não tardei a adormecer.
12
A manhã acordou-me como se não tivesse
havido noite. O João já tinha saído do quarto. Encontrámo-nos para tomar o
pequeno-almoço. A minha mãe estranhou a minha figura.
- Bom dia, Pedro. Dormiste bem?
- Não gozes comigo, mãe. Podemos ir para a
escola. Não me apetece nada.
- Nem penses. Vais tomar o pequeno-almoço
e logo conversamos seriamente. Quero saber o que se passa contigo. Nos últimos
dias tens andado muito instável. E isso é mau para todos, inclusive para ti
que, com certeza, não te concentras nas aulas e nos trabalhos.
Não respondi à minha mãe. Não sairia vivo daquele
combate. Ela tinha todos os argumentos do lado dela. Os professores iam dando
informações sobre o meu aproveitamento e as coisas não andavam muito famosas.
Além disso, com a confusão gerada pela mensagem, o castigo seria duro.
Provavelmente, teria de abandonar o futebol. Só o meu pai poderia impedi-lo,
porque adorava futebol e a minha mãe não aguentava aquele olhar profundo e
calmo que ele lhe lançava, quando queria conquistá-la e convencê-la. O sorriso
do meu pai aplacava qualquer tempestade lá em casa. Admirava a forma como se
entendiam.
Não soltei uma palavra até à escola.
As árvores despidas soltavam os braços,
que procuravam Sol que os acolhia numa harmonia impensável, embalados pelo leve
vento que os percorria. Parados no semáforo, assistia a pequenas encenações que
o tempo permitia. Havia um monólogo no olhar perdido daquela senhora que
esperava pelo verde do semáforo. Que música ouviria ela? No carro da frente, um
homem aguardava, balançando a cabeça num ritmo que me parecia binário, batendo
com as mãos como se à sua frente de repente surgisse o mais afinado instrumento
de percussão. Não evitei um sorriso.
Paramos em frente ao portão da escola.
- Até logo. Pedro, hoje, venho buscar-te
mais cedo. Vamos lanchar e conversar um pouco.
Era naqueles momentos que desejava uma mãe
um pouquinho mais distraída e ocupada. Já não tinha escapatória. Mas era melhor
assim. Os problemas partilhados tornam-se mais leves e resolvem-se com mais
facilidade. Eu sabia disso. Mas havia zonas da minha vida onde a minha mãe já
não entrava há algum tempo. Era um mundo onde pairavam os meus sonhos, as
minhas paixões, as minhas dúvidas, as minhas convicções que, em parte,
partilhava com a Catarina.
- Olá, Pedro, está tudo bem contigo?
Ultimamente, não vês ninguém. Sabes ao menos que aula vais ter?
Era a Teresa. Sempre interessada em saber
para ser a primeira a contar.
- Vamos ter EV, na sala 23 do bloco A.
Importas-te?
E deixei-a com um dos braços suspenso e
preparado para acompanhar a melodia de uma nova pergunta prestes a invadir o
meu espaço. Ainda disparou:
- Não percebo este tipo! Uma pessoa a
querer ajudar e só recebe indiferença. Ainda bem que a Catarina te encostou.
Já toda a escola sabia! Avancei sem receio
para a sala de aula. Como iria reagir quando visse a Catarina? E ela continuaria
a evitar-me?
De repente, uma dedução invadiu o meu
pensamento: quem tinha enviado a mensagem sabia que o telemóvel não era da
Catarina e que, naquele momento, quem a receberia já não seria ela. Além disso,
teria de conhecer o número da mãe da Catarina.
13
O António já me aguardava numa mesa do
bar. Recebeu-me com um enorme sorriso, cedendo-me a cadeira onde repousava os
pés que ostentavam uns ténis desgovernados, mas que pareciam a peça fundamental
do seu guarda-roupa. Por ali se via o seu estilo descomprometido,
despreocupado, "tá-se bem",
que tanto me agradava.
- Então? Não dormiste?!
- Pouco.