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O António já me aguardava numa mesa do
bar. Recebeu-me com um enorme sorriso, cedendo-me a cadeira onde repousava os
pés que ostentavam uns ténis desgovernados, mas que pareciam a peça fundamental
do seu guarda-roupa. Por ali se via o seu estilo descomprometido,
despreocupado, "tá-se bem",
que tanto me agradava.
- Então? Não dormiste?!
- Pouco.
- Deixa-me adivinhar, a Catarina não te
sai da cabeça!
- Não consigo deixar de pensar naquela
cena.
- Eu já reparei. Ontem não acertaste um
passe no jogo. Acho que o mister não
te vai convocar para o próximo. Tens de reagir, Pedro. Uma miúda não pode ser o
centro do teu mundo!
O António sabia que o futebol poderia ser
uma boa estratégia para me resgatar daquela desistência geral. Era ali que eu
sentia o brilho da vitória e da conquista. Era ali que eu era aplaudido e
valorizado. A escola, para além dos amigos, tornara-se uma responsabilidade
assustadora que me deixava desiludido a cada resultado que me chegava às mãos.
- Não digas nada, Tó. As coisas para o meu
lado não estão nos melhores dias. Até a minha mãe já percebeu que eu ando
estranho e além disso os resultados dos testes têm sido mais baixos.
- Mas não são negativos, tem calma.
Facilmente recuperas.
- Tu sabes que os meus pais têm
expectativas muito altas. E, se não conseguir níveis elevados, não posso entrar
na escola secundária que eles querem. E eu não quero desiludi-los! Só que não
consigo concentrar-me, acho tudo uma seca!
- A quem o dizes! Eu nem sei se posso
pensar na escola secundária. Por este andar, chego ao fim do ano com uma
carrada de negas.
- Os teus pais sabem disso?
- O meu pai tem estado na China. A minha mãe
passa o dia no escritório, só me vem buscar ao fim do dia e tem sempre muito
que fazer em casa. Quase não falamos. Só vai descobrir se o dt resolver chamá-la à escola. Aí temos
problemas. Nem quero pensar nisso.
- A minha quer falar comigo hoje. Vem
buscar-me mais cedo para lancharmos… Nem sei por onde começar.
- As nossas mães têm sempre ideias que nos
ajudam a ver os problemas de outra forma. Às vezes, aquilo que nos parece o fim
do mundo é antes uma oportunidade a nosso favor. Lembras-te da minha nega a História
no ano passado? Eu pensava que os meus pais me iam pôr de castigo, sem futebol,
sem computador, sem telemóvel, sem festas de amigos. Mas não. Falei com eles e
não aconteceu nada do que eu pensava. Mostraram-me que o meu estudo tinha sido
insuficiente e mal feito e que me iriam ajudar a estudar para o teste seguinte.
Dito e feito. Consegui uma nota interessante. Pena que não possam estudar sempre
comigo. O meu pai fora, a minha mãe sem tempo e eu sem vontade, vê no que está
a dar! Por isso, acho que deves ter uma conversa aberta com a tua mãe.
- Obrigado, Tó. Vou fazer isso. Tenho a
certeza de que me vai compreender. Olha, logo não vou ao treino. Fala com o mister, diz-lhe que tenho de resolver
uns assuntos da escola e que depois justifico pessoalmente a falta.
14
A Catarina estava sentada no banco junto à
sala de aula. Apoiava o rosto nas mãos, olhando fixamente uma das tijoleiras
que a cercavam. Percorria-as, procurando uma saída daquele labirinto. De
repente, tudo se complicava. Sentia-se num elevador avariado. Ali tudo era
apertado, sem luz, sem saída. A Beatriz abraçava-a, paciente e calada, enquanto
procurava no rosto de quem passava as soluções que já não tinha. Era necessário
ir para a aula mas a amiga não queria. Não queria ir à aula de Português. Sabia
que eu iria ler uma poesia. Acreditava que eu falaria do meu sofrimento e ela
não queria enfrentar essa situação.
- De certeza que ele se esqueceu de fazer
a poesia. Aliás, quem te garante que serás tu o motivo do poema que o Pedro vai
ler?
A Beatriz tentava encontrar uma
fragilidade na convicção de Catarina.
- Tu não conheces o Pedro! Ele vai fazer
tudo para provar que está inocente e que gosta de mim!
- Há uma coisa que eu ainda não percebi.
Tu achas que foi o Pedro que mandou aquela mensagem? Acho que nem tu acreditas
nessa história.
- Não sei, Bea! Quer dizer, eu sei que nós
não passamos nenhuma noite juntos! O problema é que na semana passada eu fiquei
em tua casa e a minha mãe pode tirar conclusões erradas, percebes?! Além disso
não entendo a ideia do Pedro. O que é que ele ganhava com aquela brincadeira?
Será que ele me queria dizer alguma coisa de forma indireta? Nós tínhamos tanta
abertura que não vejo razão para não mo ter dito diretamente.
- O que eu acho é que tens de falar com
ele. Acabas com este sofrimento e ainda podes resolver a questão. Os dois a
pensar em conjunto... O que estás a ver?
Entretanto, a Catarina vagueava no Iphone, procurava as últimas mensagens
do Pedro. Brincava com os textos que deslocava, ampliava, diminuía, sem prestar
atenção a nenhum em particular. A Beatriz não podia deixar de ler algumas
delas.
- Olha, recebeste esta quando estavas em
minha casa, lembras-te?
- Diz?! - pediu sem tirar os olhos do
texto que, na verdade, não lia.
- Recebeste esta mensagem, quando estavas
em minha casa!
- Eu sei. É um querido!
A Beatriz tentou outro assunto:
- A Teresa já te enviou a parte dela do
trabalho de Físico-Química?
- Acho que não. Ainda não falei com ela
desde que estivemos em tua casa. Só a vejo nas aulas. Nos intervalos, não faço
ideia onde se mete.
- Também não estás à espera que ela ande
atrás de ti e do Pedro feita vela. Tipo eu!
- Não digas disparates. Sabes muito bem
que tu és a minha melhor amiga. E nestas alturas é muito bom ter alguém com
quem falar.
- Vamos para a aula, está na hora, o
professor já passou.
A Beatriz levantou-se e com ela a Catarina
que caminhava lentamente, permitindo que, entre cada passo, o seu pensamento
voasse em direção à noite em que estivera com a Teresa em casa da Beatriz.
15
A minha mãe já estava à minha espera.
Falava ao telefone que desligou, logo que entrei no carro, depois de ter
abandonado a mochila na mala. Sentei-me calado, olhando em frente, sem saber se
havia de beijar a minha mãe, como sempre fazia. Havia em mim uma resistência
que nem eu conseguia perceber. Era talvez uma vergonha que em mim se instalara.
Algo me dizia que era um gesto infantil que me tornava uma espécie de menino da mamã, imagem que eu queria
evitar.
- Correu tudo bem?
- Ahah… - respondi, evitando qualquer
palavra que orientasse o sermão da minha mãe.
- Vamos a casa dos teus avós.
- Mas não querias falar comigo?
- Sim, Pedro. Mas o avô Francisco precisa
que passe lá por casa.
- Está tudo bem com o avô?
- Não sei. Pareceu-me muito abatido esta
manhã. Estava com uma voz fraca. Não percebi muito bem o que me queria dizer.
Receei que o meu avô Francisco não
estivesse bem. Por momentos, revisitei muitas das memórias que construí com
ele. Revi as suas mãos fortes, os seus olhos azuis, húmidos. A sua cabeça que
sempre tremia por entre palavras demoradas e sábias. Esperava-me quase sempre
na sala, no seu sofá preferido, rodeado de objetos que o aconchegavam e
apaziguavam. Observei, vezes sem conta, a fotografia do casamento dos meus
pais. A fotografia do meu irmão João ao meu lado, ainda bem pequenos, na praia.
A fotografia da minha Avó Rosa sorridente comigo ao colo. A estante lá estava
sempre igual, agarrada aos livros que lhe davam sentido, alinhados, raramente
folheados. Adorava aquele canto que de alguma forma contava o meu passado,
raízes que se agarravam ao tempo.
- Achas que está outra vez com aquelas
crises, tipo, não sabe onde está, não sabe o meu nome nem o teu?
- Talvez... E tu tens andado bem nas
aulas? A diretora de turma comunicou-me que andas muito distraído, isolado nos
intervalos, algo agressivo até com os teus colegas.
- A dt
também falou comigo. Penso que está a exagerar, não se passa nada. Tenho é de
estudar mais para os testes.
- Está tudo bem com a Catarina?
- Porque perguntas isso? Não estou a
perceber?
- Notei que não te acompanhou hoje até ao
portão da escola.
-Acho que teve de fazer um trabalho com a
Beatriz.
- O João disse-me que tu andas a dormir mal.
- Oh, mãe, por favor, o João dorme
profundamente toda a noite, como é que ele pode dizer isso?
- Tu não voltaste a jogar pela noite
dentro com o Tó e com o Bernardo, pois não?
- Outra vez essa conversa, mãe. Sabes
perfeitamente que já não jogo com os meus amigos.
A minha mãe estava a explorar as pistas
todas e a analisá-las enquanto conduzia. Os olhos mantinham o carro na estrada
mas o pensamento analisava cada palavra que eu dizia. Ao contrário do que era
habitual, não me olhava de forma intermitente, enquanto falava e conduzia. Por
isso eu sabia que não tardaria a fechar o cerco e a deixar-me sem saída.
- Na semana passada, encontrei a mãe da
Catarina. Falamos sobre várias coisas e fiquei muito preocupada com a história
da mensagem que supostamente enviaste.
- Mãe, por favor, tu não acreditas nessa
história. É a coisa mais estúpida que já me aconteceu!
- Ouve, Pedro, nós achamos que há aqui uma
confusão qualquer. Estivemos a ler a mensagem e não vemos possibilidade de
vocês estarem a mentir. Nos últimos tempos, tu não tens passado nenhuma noite
fora de casa. Além disso, no dia em que a Catarina esteve em casa da Beatriz,
tu não saíste.
- Claro! Isto é tudo uma estupidez! Se eu
apanho o engraçadinho, nem sei o que lhe faço.
- Algum dos teus colegas sabia que o
telefone que a Catarina usou na semana passada era da mãe dela?
- Não sei, nunca pensei nisso. Talvez a
Beatriz e a Teresa. Porque perguntas?
- Deixa lá, deve ter sido uma brincadeira
de mau gosto.
- E, então, ainda estou proibido de estar
com a Catarina?
- Acho que não. Mas a Catarina e a mãe
ainda têm de conversar primeiro. Espera que ela te dê notícias.
Chegamos. Vamos ver o avô Francisco.