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Números amigos


                - Posso entrar, Tri?
                - Hepta, meu amigo, claro, entra!
           O Hepta estava muito cansado. Já não tinha idade para aquela escadaria. Podia descer de elevador, mas detestava ficar fechado naquele cubículo. Era como andar a mando das teclas de uma máquina que o colocava alinhado ao lado dos vizinhos números para fazer deles o que queria, tirava, punha, dividia, nunca sabia o que lhe iria acontecer, dentro daquelas invenções malucas. Portanto, preferia as escadas, uma por uma, agarrado ao corrimão.
                - Senta-te um pouco, descansa – aconselhou o Tri.
                - A cada dia que passa, parece que vivo mais afastado de ti.
                - Não digas isso, as escadas que nos unem continuam as mesmas.
                - Olha, amigo, já nem sei quantas são!
                 - Ainda me lembro do tempo em que as avançavas de um salto só…
                 - Que saudades, Tri, lembro-me muito bem!
               
Nesse tempo, os amigos números viviam entusiasmados com as brincadeiras do Tri e do Hepta. Saltavam para as casas do Tetra, do Penta e do Hexa, desafiando-os para ver qual deles era o mais rápido. O Tri era o mais entusiasta. Todos queriam ser o melhor. Nem pareciam racionais.
                - Eu sou melhor do que tu, sou tetracampeão! – justificava o Tetra, depois de ouvir o Tri.
                - E eu? Eu sou pentacampeão! Top! – orgulhava-se o Penta.
                - Chiuuu… - todos se calavam à espera da resposta – e eu? Eu fui quase, fui quase hexacampeão! – brincava o Hexa, como sempre.
                Nesse dia, o Hepta ficou calado algum tempo. Não se lembrava de ter sido campeão tantas vezes. E também não gostava muito daquelas correrias escada-acima-escada-abaixo. Desde pequeno, aprendera também a observar. A ficar em silêncio por alguns momentos. Só assim escutava as melodias que o ruído dos amigos ocultava.
                - Eu sou o campeão das maravilhas! – respondeu por fim o Hepta.
                Perante o silêncio expectante dos amigos, o Penta arriscou:
                 - Das sete maravilhas do mundo?
                 - Não, Penta. Comando os meus sentidos e eles obedecem-me.
                E explicou que cada um deles era uma porta aberta. Dedicava-lhes os dias da semana: um para observar, outro para encontrar formas, outro para descobrir aromas, outro para experimentar delicadamente os sabores, outro para escutar.
                 - E dormes nos dias que restam? – troçou o Tetra.
                 - Não, num deles, procuro a maravilha capaz de deliciar todos os meus sentidos. No último, descanso. Preparo-os para as descobertas seguintes.
                 O Hepta era o número mais velho e procurava mostrar aos amigos que era bom subirem e descerem escadas, perderem-se nas entranhas de uma máquina que os multiplicava ou dividia. Porém, muito melhor descobrir as maravilhas.
                 - E tem de ser assim, um dia para cada porta? – interessou-se o Tri.
                 - Não, mas é necessário que cada uma delas não esteja fechada durante muito tempo. Se assim não for, ficará muito pesada e será cada vez mais difícil abri-la. Pouco a pouco, esquecemo-nos que ela existe e para ali fica escondida, desaparecida.

                 - Nunca esqueci o que nos dizias nesse tempo, Hepta. Todos te devemos a sábia insatisfação – agradeceu o Tri, regressando das memórias que acabava de visitar com o amigo.
                 - Sim, sábia insatisfação. Não me conformo ainda hoje. Sabemos muito, temos a cabeça cheia de coisas, de muitos números, que podem ser inúteis. É ridículo conhecer o músico e não ouvir a sua música. Conhecer a receita e nunca a ter saboreado.
                 - O Tetra e o Hexa têm aparecido? – perguntou o Tri.
                 - Há muito que não os vejo. Só mesmo quando precisam de fazer umas operações mais complicadas. Ainda não se dão bem quando os obrigam a multiplicações e divisões.
                 - Não mudaram nada…
                 - …desistentes, quando aumentam a dificuldade – concordou o Hepta.
                 - Não perceberam a lição das maravilhas.
                 - Talvez.
                 - E o Penta?
                 - Está muito bem. Continua a descobrir, nunca satisfeito. Foi ele que me explicou as notas musicais. Agora escuto os sons com mais encanto.
                - Mais logo, recebo aqui em casa os nossos números vizinhos. Queres ficar? – propôs o Tri.
                 - Claro! Com muito gosto.
O encontro que se aproximava seria uma oportunidade para rever os velhos amigos.
- Além disso, não te apetece subir as escadas até ao sétimo andar, verdade? – observou o Tri, enquanto soltava uma divertida gargalhada.

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