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Toquinhas e o Milho-Rei de si próprio




Uma manhã de setembro, o Sapo Toquinhas voltava para o seu canteiro depois de andar toda a noite à procura de alimentos no enorme campo que ficava atrás do jardim. Mas não era fácil encontrar o caminho de regresso por entre aqueles caules alinhados é tão semelhantes. A cada salto, parava para escolher o melhor caminho. Ou melhor, três saltos,
um, dois, três, parar, olhar, escolher, seguir…
um, dois, três, parar, olhar, escolher, seguir…
um, dois, três, parar, olhar, escolher, seguir…
 Por momentos pensou que estava perdido. Não se lembrava do trajeto que tinha feito através daquele labirinto. Parecia uma floresta sem fim. O Velho Vagaroso tinha razão quando o aconselhara a não arriscar naquele campo que parecia enfeitiçado. Mais três saltos,
um, dois, três, parar, olhar, escolher…
 “O que será aquilo?” Pensou, enquanto se aproximava com curiosidade. À sua frente um Milho-Rei que procurava esconder-se na terra, aterrado com a proximidade daquele animal estranho e assustador.
- Olá, posso ajudar-te?
O Milho-Rei nem queria olhar. Aquela voz assustava-o ainda mais. E baloiçava energicamente para tentar desaparecer dentro da terra.
- Tens uma cor muito bonita! – arriscou o Toquinhas para tentar acalmá-lo.
- Quem és tu? Não te conheço – quis saber o Milho-Rei, interrompendo a tentativa de entrar na terra.
- Sou o Sapo Toquinhas. Não tenhas medo. Posso ajudar-te, se quiseres.
O Milho-Rei olhou de soslaio para o alto como quem procura.
- Queres voltar para a tua espiga? Posso pedir ajuda aos meus amigos e encontraremos uma solução.
- Voltar para aquele sítio nem pensar! – reagiu decididamente o grão de milho.
- Não percebo, não é lá o teu lugar?
- Sim, mas é muito perigoso. Vou contar-te. Esta manhã, acordei sobressaltado. Pancadas secas faziam estremecer toda a estrutura da minha casa. Alguns dos meus irmãos tinham já acordado aquecidos pelo Sol que os surpreendera. Discutiam para saber quem tinha aberto a janela que até ali estivera sempre fechada. Eu nem estava muito preocupado. Aquela abertura possibilitava-me uma visão magnífica. Centenas de plantas disputavam o espaço à minha volta. As folhas castanhas e secas bailavam umas com as outras ao som de uma melodia estranha, obedecendo ao ritmo que a brisa quente lhes oferecia. A dada altura:
            - Que barulho é este?-perguntei assustado. Ainda não tinha acabado de lançar a pergunta e já um enorme bico descia na minha direção, orientado, rápido, imparável. Não tinha fuga possível. Estava cercado pelos meus irmãos que, a meu lado, não me davam espaço para qualquer desvio. Fechei os olhos e esperei a bicada final. Mas senti-me um milho-rei, tal a sorte que tive naquele momento. Quando abri os olhos, assim, um pouco a medo, como quem não acredita na possibilidade de voltar a ver, reparei que a meu lado havia um espaço vazio. Percebi então que a ave falhara o alvo por algum motivo que eu não percebi. Talvez o vento tivesse soprado mais forte no momento fatal.
            - Que ave é esta?- perguntei ao Milho-Miúdo que ainda resistia ao meu lado. Não obtive resposta. Reparei que o medo o bloqueava completamente e que dali não arrancaria uma única palavra. Pelo esgar e tremor percebi que sabia menos do que eu.
            O Milho-Senhor vivia na casa mais ao fundo e costumava ter respostas para tudo. Procurei-o com o olhar e pedi-lhe explicações.
            - Ninguém se mexa - respondeu. Estas aves são uma ameaça constante. Alguns de nós têm de ser sacrificados para que outros possam viver na casa-espigueiro e dali partir para a viagem com que todos sonhamos. Coragem! Em breve seremos recolhidos.


            Já me tinham falado na casa-espigueiro, construída sobre pilares de granito, em lugar alto, arejado, soalheiro. Da viagem sabia ainda muito pouco. Guardei algumas pistas que fui ouvindo aqui e ali. Falava-se em pedras redondas que rodavam sem parar… No som da água que as fazia girar… Enfim, uma viagem que não queria fazer.
            Não pensei duas vezes, lancei-me à terra. É aqui o meu lugar. Daqui voltarei a ver o Sol, agarrado à terra que me verá renascer.
       O Sapo Toquinhas estava maravilhado. “Que coragem!” Com as patinhas empurrou terra suficiente para que o Milho-Rei não fosse visto pelas aves que por ali passavam ameaçadoras. Ainda conseguiu ouvir o agradecimento sussurrado do novo amigo:
            - Obrigado!
          Naquele momento, viu o Gato Soneca a passar e saltou atrás dele cautelosamente. Em breve estaria debaixo do seu rododendro.
Prometeu que voltaria na primavera para falar com aquele corajoso grão de milho. Afinal Milho-Rei de si próprio.

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