A Teresa aproximou-se, os
olhos eram do tamanho de uma rede gigante. Era impossível fugir-lhe. Trazia na mão
uma pequena janela que o Sol nunca tocara. Por ali, nunca a brisa suave e
perfumada fizera caminho, nunca o canto dos pássaros atravessara aquele vidro
sensível. O Pai ainda recuou três passos na esperança de não ser apanhado, mas
logo sentiu dois toques no braço seguidos do insistente vocativo:
- Pai, pai!
Os óculos na pontinha do nariz
libertavam carinhosamente os olhos irresistíveis.
– Pai, escreve aqui um papagaio,
dois ratos, uma tartaruga.
Perante a incompreensão do adulto,
continuou:
- Aquela história que eu vi no
outro dia: um papagaio, dois ratos, uma tartaruga…
O pai registou na barra de
pesquisa as palavras mágicas. Cada uma era agora uma cana de pesca naquele
retângulo que parecia um barco na superfície do mar profundo. Rapidamente,
emergiram centenas de vídeos alinhados. Mas nenhum coincidia com a
memória feliz da menina.
- Não foi esse que eu vi… nem esse…
Depois, recolheu a
esperança, fechou as cortinas daquela janela ambulante e retirou-se desanimada.
O pai segui-a com o olhar, questionando os motivos daquela tristeza.
Onde se escondia a tartaruga? Que
céus atravessava o papagaio? Em que plano magicavam os ratinhos?
Percebeu que as palavras, na janela que a
menina agarrava, atraíam como ímanes pedaços de histórias até aí espalhadas por uma
paisagem escondida. Mas nenhuma delas satisfazia o desejo da pequena.
Agora tentava ele. Era outro o mar
onde mergulhava cada uma das palavras. Esperou. Esperou mais um pouco. Era o
reino da imaginação. Daí não emergiam senão histórias desconhecidas. No reino
mais próximo, o da memória, eram acolhidas as histórias chegadas de fora, aí
ficavam aconchegadas até que alguém as tocasse com saudade. Mas, no reino da
imaginação, cada palavra vivia na sua desconhecida casinha de onde apenas saía para se
juntar com as outras na praça principal do reino. Como eram muito
desorganizadas, nunca se juntavam da mesma forma. Havia as apressadas,
as atrasadas. As envergonhadas, as ousadas. Umas chegavam agarradas aos séculos
de vida, outras recém-nascidas, espantadas com o mar de companheiras que a
imaginação conseguia reunir naquela praça das histórias.
O pai esperava então que as
palavras mergulhadas voltassem à superfície.
Repentinamente, reparou que a
tartaruga permanecia aconchegada dentro do meio pipo debaixo da desfolhada
tília. Hibernava junto às camélias que simpaticamente floriam no inverno: era um simpático sorriso que rebentava, enfrentando o frio e as gotas de chuva que tantas vezes
vestiam a forma das lágrimas.
Os ratinhos esperavam mesmo por
baixo do meio pipo. Dali não saíam havia vários dias. Detestavam a chuva que
lhes ensopava o pelo e limitava a visão.
Foram eles os primeiros a ouvir os
ruídos que vinham do alpendre. Um ruído seco e compassado que vinha das traves
de madeira.
TOC TOC TOC
TOC TOC
TOC
TOC TOC TOC
TOC TOC
TOC
Então eles chiaram e arranharam o
fundo do meio pipo. A tartaruga entendeu a mensagem e lentamente esticou o pescoço
para observar a resposta.
- Temos um problema – informou
pouco depois.
- Conta-nos. Corremos perigo?
- Parece-me um papagaio, não
precisam de ter medo.
- O que faz ele no nosso alpendre?
– protestaram os ratinhos.
- Não sei!
- O que quererá dizer-nos com
aqueles toques na madeira?
Fizeram silêncio para voltar a
ouvir aquela frase que ainda não fazia sentido.
TOC TOC TOC
TOC TOC
TOC
TOC TOC TOC
TOC TOC
TOC
- Amiga tartaruga, observa melhor, sempre tens a carapaça...
- Mas que mal pode fazer-nos um
papagaio? Saiam daí, subam por uma das colunas de granito e vão lá ver o que
se passa.
Os ratinhos aceitaram a missão e
discretamente alcançaram as travessas do alpendre. O papagaio não deu pela sua
presença e continuou a bater com o bico na madeira.
TOC TOC TOC
TOC TOC
TOC
TOC TOC TOC
TOC TOC
TOC
- Para com isso! Já acordaste a
nossa amiga tartaruga! – protestou um dos ratinhos. – Se
continuares, corres o risco de atrair os gatos que andam sempre por perto.
- Amigos, como é bom
encontrar-vos!
- Nunca te vimos por aqui!
- Eu sei. Cheguei há pouco. Fugi
da gaiola onde sempre vivi e voei, voei, voei sem parar até chegar a esta casa…
- Mas porque fazes esse barulho?
Por nós bastava palrares.
- Não posso. Alguém pode ouvir e apanhar-me…
- Pois então é melhor não abrires
o bico… De que precisas? Tens fome?
- Sim. Mas neste momento preciso
de ajuda para soltar estas cordas. Fugi com elas
agarradas às patas.
Os ratinhos verificaram que as
cordas estavam enfiadas num estreito orifício entre duas traves. Dali não
conseguia o colorido amigo sair sem ajuda.
- Nós vamos roer a corda e em
breve estarás livre para seguires viagem.
Rapidamente os ratinhos cortaram
as amarras para felicidade do papagaio.
- Obrigado! Agora já posso ir!
Nunca vos esquecerei. Vou tentar abrigar-me naquelas árvores lá ao fundo. Se
precisarem, serei o primeiro a chegar.
- Calma, amigo. Ainda não mataste
a fome! Desce connosco. A nossa amiga tartaruga guarda pedaços de fruta que te
vão dar força para continuares a tua viagem.
Pouco depois, o papagaio abriu as
asas e partiu palrando um feliz agradecimento:
- Obrigado! Até breve!
O pai ficou por momentos surpreendido com aquela história que lhe chegava inspirada nas palavras que a Teresa lhe tinha deixado. Não resistiu:
- Teresa, vem cá. Encontrei a
história que procuravas.
A menina reacendeu a esperança.