- Temos mesmo de ler isso?!
Do espanto do ouvinte o rapaz
traduziu a resposta que julgou inconveniente.
- Mas para que serve se não vou
fazer exame?
Em tempos, afastados tempos no
tempo, houve quem riscasse no chão as linhas que o desalento tecia perante o
cruel e iminente apedrejamento. Também agora, sentado na cadeira, agarrando
aquelas palavras que a distância tornava ainda mais duras, o ouvinte
desenhava pequenos círculos no ambiente de trabalho, cercas onde parecia estar
encurralado. Ganhava tempo, procurava as palavras que melhor contrariassem
aquela ingratidão.
Levantou-se e voltou segundos
depois, trazendo numa das mãos um pedaço de madeira, o que restava de um tronco
cortado à medida.
- Para que serve isto? – perguntou,
levantando o toro para que todos pudessem ver do outro lado.
Silêncio! Alguns ligaram as
câmaras, saindo da escuridão, como se para ver fosse necessário ser visto.
- Para que serve isto? – insistiu.
O rapaz que tinha apontado as
palavras como quem as queria julgar em praça pública arriscou como se fosse
óbvia e pueril a resposta:
- Para me sentar.
Parecia-lhe aceitável! Ali podia
alguém descansar depois de uma longa caminhada.
- Para segurar uma porta – riu-se
ainda outro à distância.
- Para queimar – acrescentou outro.
- Para queimar ou para ser
queimado? – reagiu o ouvinte que, perante o desentendimento acerca do sujeito ativo
e do sujeito passivo, explicou – ser queimado para dar calor, luz e afastar os
animais na noite escura… ou para queimar o que queremos anular nas chamas ou
até purificar.
Um deles levantou a mão, queira
falar, mas hesitava.
- No ano passado, – acabou por
dizer – vimos os moldes que serviam para fazer belas peças de vidro…
- E?! – disparou outro.
- Era de madeira o molde,
lembras-te?
O ouvinte ficou entusiasmado, cada
palavra era o molde da mais bela ideia! E continuavam ainda os círculos no
ambiente de trabalho, agora mais largos, ganhara algum espaço.
- E beleza, haverá beleza neste
pedaço de madeira?
Silêncio. Parece que depende sempre de quem
a procura.
- Sim, se fizer com ele um instrumento
musical… - interveio mais uma vez o rapaz sempre hesitante. Por vezes, a nossa
certeza não é a dos outros.
- Ou uma bela estátua – concordou
o ouvinte mais velho – capaz de narrar uma vida, de restaurar a coragem do mais
desanimado dos homens, de destronar o mais arrogante dos governadores!
Notava-se um certo desconforto nos
olhares que chegavam da distância. Afinal, quando é que o homem iria responder
à pergunta inicial e deixava de fazer círculos.
- Ainda não respondeu à minha
pergunta! – reagiu o rapaz incomodado, qual miúdo com uma pedra na mão e que
precisava de um motivo para o arremesso tão desejado.
- Já alguém leu este livro até ao
fim? Tu já leste este livro até ao fim?
Aos poucos, as câmaras esconderam
os rostos e as pedras foram caindo das mãos derrotadas.
Só o rapaz das palavras hesitantes
se manteve às claras.
- Eu já li.
Claro que sim.
Ele sabia que as palavras também nos
sustentam e que um estômago satisfeito não nos satisfaz. Aí começa a nossa
humanidade.