A noite aproximava-se não porque a sombra
quisesse, mas porque o Sol se mantinha fiel a si próprio e a terra continuava a
rodar, ficando, por vezes, às escuras. Nada de novo.
Mas era preciso levantar dinheiro no
multibanco mais próximo. Dois minutos de carro, um cartão, dois sacos pequenos, um para proteger a mão que sabia o código, outro para guardar o
dinheiro. Reviu mais uma vez todos os
movimentos e saiu.
A estrada principal, silenciosa, adormecida, apareceu imediatamente no fim da travessa. Percorrê-la naquele momento era
como uma fuga sem culpa. Olhou várias vezes pelo retrovisor. Nada. Seguiu em
frente inseguro, tal como a Leonor. Mas só isso, até porque ela queria muito ir
à fonte e ele, se pudesse, não saía de casa.
A praça esperava-o, vazia. Ninguém. Nem
um carro. Nada. Silêncio apenas contrariado pelo voo de um pássaro espantado
com o viajante inesperado.
Olhou à volta. Reparou no cuidado
triângulo central e nos bancos abandonados. O cruzeiro continuava ao centro, apontando
a igreja que ele resolveu procurar por entre os centenários plátanos. Descobriu
então São Miguel que fitava a praça como quem a quer proteger, espezinhando um
inimigo invisível que parecia atacar os incautos.
Dirigiu-se depois à máquina encostada aos
avisos da junta alinhados no expositor. Estranhou as lojas renovadas que pareciam
ter todas o mesmo número que se destacava nos avisos colados nas portas. Dezanove.
Todas fechadas, todas à espera, todas dezanove.
Preparava-se para introduzir o cartão
quando ouviu vozes. Olhou novamente a praça. Ninguém. As janelas das casas mais
próximas permaneciam fechadas…
Mas os sons tornaram-se mais nítidos e
ele caminhou na sua direção.
- Meu caro Sebastião, tem toda a razão.
Este silêncio, este abandono é extremamente necessário. Recorda-se por certo do
que enfrentámos em 1918.
- Foram anos duros, amigo Crispim. Para
não falar da terrível doença que durante décadas fragilizou a nossa população. Tenho
ainda presentes as palavras do Cesário que com dureza sábia perpetuou a perda
de um dos seus… Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
- Sim… ainda hoje lembro com orgulho os
meus colegas que nas primeiras décadas do século passado combateram com
determinação essa enfermidade. Mas o que me deixa mais preocupado são as nossas
crianças! Veja aquela escola, sem elas perde todo o sentido!
- Sei muito bem o quanto se empenhou na
sua construção. Um edifício distinto! E à Beira foram mesmo chegando notícias
acerca dos prémios que foi oferecendo aos estudantes mais esforçados.
- Mas o meu amigo Sebastião não me ficou
atrás. É sabido o quanto se dedicou ao desenvolvimento do ensino por terras de
Moçambique!
Curioso! Um em frente ao outro, na terra
que os viu nascer, numa conversa silenciosa que os anos não poderão calar! Ciência
e fé… e esta, nada que é tudo, a entrar na realidade e a fecundá-la.
Voltou ao multibanco e depois levou o
dinheiro para casa, certo de que a praça já não lhe parecia tão vazia. Certo de
que o passado também assegura o futuro e de que o saber persegue a esperança
que sempre lhe abre o caminho.
Entretanto, a praça aguarda. Em breve,
chegarão outros passos, outras vozes, vencedoras.