- Há pessoas assim… são como as velas que ardem até ao
fim!
As palavras percorreram a sala, abrindo uma clareira
silenciosa. Os nossos olhares procuraram escapar, fitando ao acaso,
agarrando-se às coisas como se fossem boias, porto seguro em mar
encrespado. Mas ela não conseguiu evitar
que certas ondas transbordassem discretamente, libertando discretas gotas que
percorreram os caminhos já conhecidos do rosto.
- Não morrerão enquanto perdurarem, enquanto as
lembrarmos!
- Tal como o poeta… enquanto dissermos os seus versos…
- Poderão escapar à memória dos homens, mas nunca aos
braços do Pai que as acolhe com o eterno sorriso!
E ela continuou, certa da grandeza que ali partilhava.
Uma história de amor incondicional, que nos revelava que dar nem sempre é
dar-se, que entregar nem sempre é entregar-se. Não dava apenas as botas que já
não usava, o casaco velho fora de moda. Dava-se discretamente quando mandava
pintar vezes sem conta o portão que mantinha sempre aberto, quando partilhava a
sopa que ele preparava, autêntica. Dava como quem abraça, raro gesto de quem
prende e se deixa prender.
E aos netos e aos filhos dava-lhes tempo. Narrador
participante, personagem de uma narrativa aberta que lhes deixava nas mãos. Na
sua voz, os segredos que vinham de longe, esses doces que atenuavam as agruras
de uma nacionalidade secular levantada pela força e pelo sonho. Saber e sabor
criados na dureza do granito, no silêncio e no vagaroso tempo do convento.
Tinha uma mesa desmedida, onde sempre havia lugar…
É um daqueles que por obras valerosas Se vão da lei
da morte libertando, pensei, enquanto fixava os dedos inquietos, na
tentativa de suster a erupção que também teimava a sua fuga pelo olhar, esse
campo de batalha sempre vulnerável, essa exterioridade sempre voltada para
dentro.
E as palavras do cedro desmedido Da pequena
floresta portuguesa resgataram da minha infância, repentinamente, os passos da minha mãe,
destemidos, perseverantes. Caminhava sempre à minha frente, com pressa
de chegar a horas. Depois ajoelhava, silêncio curvado e longo. Uma oração que
preenchia a igreja toda. Era ali que a vida se restabelecia e justificava.
Deixou-me a ânsia de absoluto, a certeza de que não temos todas as respostas,
nem somos a medida de todas as coisas. E depois os braços do meu pai que abriam
a terra nas manhãs ou nas tardes que eram sempre longas. A enxada acompanhada
pelo suor justo e pela interjeição de força em cada investida que revolvia a
terra! Era uma espécie de conversão, de metanoia, que também nos alimentava dos
frutos vindouros. Deixou-me essa cadência, essa certeza de que a terra
reconhece o suor que nela derramamos.
Vidas que se entregaram e que permanecem. Estávamos
agora ainda mais certos de que a nossa existência vale por aquilo que pomos em
comum e que Cristo se apresenta como a medida certa.
- Queres dizer-nos alguma coisa?
E apontou discretamente as palavras para que não me
perdesse: “Eu sou o pão da vida.”