(Teatro infantojuvenil)
“A Aia” é o título de um conto de Eça de Queirós. É uma história de fidelidade e de amor maternal surpreendentes!
“O
Africano” é o cognome de D. Afonso V, XII rei de Portugal, que, ainda criança,
perdeu o pai, o rei D. Duarte.
Personagens:
Leonor, rainha
Duarte, rei
Afonso, príncipe, filho de Duarte e de Leonor
Fernando, Henrique, Pedro, João, irmãos do rei
Pajem
Aia
Filho da Aia
Afonso, irmão bastardo de Duarte
Damas e nobres
Soldados
Ato único
Palácio real.
Cena I
Já lá vem no alto mar
A caravela apressada.
Deseja muito avistar
A querida terra amada.
Vem do Sul, da terra quente,
Traz histórias para contar.
Já no cais espera a gente,
Feliz ao vê-la chegar.
Mas D. Henrique e D. Pedro
Trazem no rosto a derrota:
Em Tânger sentiram medo,
E perderam D. Fernando.
D. Duarte, o virtuoso,
De novo quer lá voltar,
para entregar Ceuta aos mouros,
E D. Fernando resgatar.
Mas o povo e a rainha,
Não apoiam tal missão.
Muito mais aqui se conta,
Vejam bem com atenção.
Duarte
Leonor, estou destroçado. Não consigo dormir, trago o coração apertado. É um
sufoco insuportável. Penso no Fernando constantemente, imagino-o naquelas
masmorras, nas mãos dos infiéis que o maltratam… Faminto, doente, só… Meu
querido irmão!
Leonor
Ceuta é fundamental. Manter a praça sob o nosso domínio é a melhor solução de
momento. O próprio Fernando nega querer voltar a Portugal, se, para tal,
tivermos de entregar Ceuta.
Duarte
Continuo a pensar que Tânger foi um desastre inqualificável. Ninguém me quis
ouvir!... E Ceuta, não tardará, será um centro sem qualquer importância. Basta
que os mouros desviem a sua rota comercial para outra cidade. E, nessas
condições, que vantagens vês em mantermos Fernando cativo e sujeito aos limites
da condição humana. Não resistirá muito tempo…
Leonor
Volto a lembrar-te que foi Fernando um dos principais mentores da conquista de
Tânger e que está decidido a sacrificar-se por Ceuta.
Duarte
O Fernando é um sonhador! E o nosso Reino não merece o sacrifício, não merece a
sua vida.
Leonor
Não podemos devolver Ceuta. É uma cidade estratégica: controlamos, no
território inimigo, qualquer tentativa de ataque ao nosso país, permite-nos
também controlar o movimento comercial no Mediterrâneo e em terra moura.
Duarte
É extremamente dispendioso manter esse território. Estamos lá há vinte anos e
não tenho visto vantagens para os nossos cofres. Além disso, continuamos a
perder os nossos homens, sempre que acontece um ataque bárbaro.
Leonor
São vidas ao serviço do Reino e da Palavra de Deus. Com o teu irmão Fernando,
são mártires ao serviço de Deus! É uma missão que lhe assenta muito bem… não
foi Fernando nomeado cardeal pelo Sumo Pontífice Eugénio IV?
Duarte
Bem sabes que ele rejeitou tal distinção honorífica!
Pajem
(Entra, fala depois da vénia necessária.) Real senhor, uma carta de seu
irmão D. Fernando. (Ao sinal, aproxima-se e deixa-a nas mãos do soberano.
Sai.)
Leonor
Logo jantamos com os teus irmãos, espero que essa carta não acentue mais a tua
loucura: a campanha no norte de África e as descobertas ao longo da costa
africana pelo Atlântico têm de continuar. (Sai.)
Cena III
Duarte
(Abre a carta, expectante. Lê)
Fez, 23 de Maio de 1438
Real Senhor, estimado irmão,
desejo que esta carta chegue às tuas mãos para que possas ficar mais
descansado.
Estou desolado com a nossa expedição a Tânger. Sei que
te obriguei a permitir esta missão. Sei que sempre te opuseste e que agora
sentes a tua razão redobrada. Espero que me perdoes e que o nosso Reino perceba
quão elevados eram os nossos objetivos.
Estou cativo desde Outubro do ano passado. Estive alguns dias em Tânger e logo
depois fui transferido para Arzila, onde permaneci sete meses. Este mês vim
para Fez, de onde te escrevo.
Tenho sofrido de cabeça erguida todas as agressões deste
povo infiel e bárbaro. Mas não podemos perder Ceuta, de maneira nenhuma. Ceuta
nunca poderá ser a condição para a minha libertação.
Espero encontrar-te em breve, estimado irmão, Senhor de Portugal.
Fernando.
(Pausa)
Não posso deixá-lo naquelas terras. Não posso, não
posso. (Pausa.) Leonor apoia a posição do meu irmão Henrique e a decisão
tomada nas Cortes de Leiria, por isso, tenho de preparar sozinho a sua
libertação, custe o que custar. Entregarei Ceuta, se necessário, e voltaremos a
conquistá-la mais tarde. (Sai.)
Cena IV
Coro
D. Afonso é menino,
Luta ainda com dragões.
Desconhece o seu destino,
Guarda grandes ilusões.
Aia
Podem brincar aqui. Com cuidado. Filho, não magoes o príncipe Afonso.
Filho da Aia
Não te preocupes, mãe. Somos dois cavaleiros fortes e inseparáveis. Com as
nossas espadas, vamos matar o dragão com duas estocadas e libertar as princesas
presas na torre do castelo!
Príncipe Afonso
Atacamos de surpresa, dois golpes na cabeça, outro no peito e entramos no
castelo. (Simulam a luta.) Em guarda! Golpe. Parada. Finta. Esquiva. Golpe.
Toma! Esta é pelo meu tio Fernando! Tens de cair, atingi-te! (O Filho da
Aia, simula ter ficado ferido. Pausa. Lembra-se do tio Fernando.) Os mouros
prenderam o meu tio… Tenho saudades dele, de andar com ele a cavalo... Mas o
meu pai vai libertá-lo. A armada chegará de surpresa ao norte de África, os
soldados vão cercar o castelo…
Filho da Aia
Cavaleiro Afonso, toma a tua lança, monta no teu cavalo e apanha estas
argolas. (Afonso cavalga em círculos apanhando com o braço as argolas que o
Filho da Aia lhe lança.)
Aia
(Interrompe o jogo.) Príncipe Afonso, diz-me quem são os homens que
vemos naqueles retratos. (Aponta os retratos de D. João I e de D. Duarte.)
(Prontamente. Aponta.) Aquele é o meu avô, D. João I, rei de
Portugal, e este é o meu pai, D. Duarte, que agora é rei. Um dia, eu também
serei rei! (Continuam a jogar.)
Coro
D. Afonso é menino,
Luta ainda com dragões.
Desconhece o seu destino,
Guarda grandes ilusões.
Mas D. Duarte partiu,
Deixou-lhe o reino nas mãos
E a rainha foi regente
Contra a vontade dos irmãos.
O trono estava em perigo,
Todos lá queriam sentar-se;
Até um tio bastardo
Dele queria apoderar-se.
A rainha tinha medo,
O filho mandou guardar,
Temia que o tio malvado
Viesse para o matar.
Mas no quarto de Afonso
Estava a Aia valente…
Vejam que história tão bela
Aconteceu de repente…
Cena V
Leonor
(Entra de forma discreta e não consegue esconder totalmente a dor, a mágoa
aguda. Acaba de saber que Duarte morreu subitamente.)
(Aparte.) Serás, meu filho, serás… serás um grande rei! (Para a Aia.)
Leva os meninos para o jardim e vigia-os atentamente.
Aia
Sim, alteza. (Saem.)
Leonor
(Meditando.) Serás um grande rei… mas terei de te proteger, meu querido.
Não tardará, aparecerão muitos que quererão ocupar o teu lugar. Terrível esta
peste que a todos nos persegue e apanha repentinamente… Duarte, meu querido Duarte,
não podias ter ido assim nessa viagem sem regresso! Porque me deixas com
Afonso, criança frágil e ainda longe de poder suceder-te? Queres que governe,
sabendo que o povo prefere o teu irmão Pedro? E ainda queres que seja a regente
das tuas causas, que liberte o teu irmão Fernando do cativeiro em África… (Lê
a ordenação que Duarte estava a escrever e que não acabara.)
Lisboa, 9 de Setembro de 1438
D. Duarte, Rei de Portugal, faz saber que se deve preparar uma armada, para, no
próximo dia 9 de Outubro, dia do primeiro aniversário do desastre de Tânger,
partir para esta cidade e trazer de volta D. Fernando, meu irmão, cumprindo-se
o que foi combinado com os mouros. Ceuta deve, assim, ser devolvida.
(Pausa.)
Não posso… (Levanta-se. Determinada.) O nosso
Reino não pode perder Ceuta.
Cena VII
Aia
(Perturbada.) Alteza, é grande a minha dor! O povo chora a perda de um
homem distinto, chora a perda de um rei magnífico!
Leonor
(Agradece com um gesto sereno.)
Quero-te sempre perto do príncipe Afonso. O menino
corre perigo. Tenho receio dos filhos bastardos do Mestre de Avis, o meu sogro
e senhor D. João I: por certo, esta hora preparam-se para assumir a regência.
Vigiam o castelo noite e dia e D. Afonso é um deles. É um filho bastardo, mas
legitimado por declaração do seu pai.
O príncipe precisa de todo o teu cuidado e atenção. Ninguém
pode entrar no quarto. Tens sido dedicada e muito útil. Foi uma graça de Deus o
meu filho ter nascido na mesma noite de Verão que o teu, foi uma graça o teu
leite que amamentou os dois! Reza para que nada de mal lhe aconteça. Agora vai
para junto dele. (A Aia sai.)
Cena VIII
Leonor aguarda a chegada dos irmãos do rei. Procura em
cada objeto as lembranças do homem que perdeu. Entram Henrique, João e Pedro.
Henrique
Leonor, sei o que sofres por esta perda inesperada. Todos estamos consternados
e o reino chora a perda do seu grande rei. O certo é que Duarte ficou ainda
mais debilitado quando Fernando ficou cativo em poder dos mouros…
Pedro
Agora, o reino está nas nossas mãos. Depois das celebrações religiosas, temos
de reunir para estabelecermos quem de entre nós assumirá a regência até o
príncipe Afonso completar catorze anos.
Leonor
Por vontade de Duarte, eu assumirei essa nobre função. E não deixarei de ouvir
o vosso conselho avisado e sábio.
João
Devemos antes convocar as Cortes, para esclarecermos essa decisão perante os
representantes do Reino. A regência será pacífica se estabelecida em paz.
Leonor
Não te esqueças de Afonso, vosso irmão bastardo que vosso pai legitimou. Tudo
fará para alcançar o trono. As nossas vidas correm todas perigo, principalmente
a do príncipe Afonso, o meu querido filho.
Henrique
Leonor, Pedro está em condições de assegurar a Regência e defender a vida do
príncipe. É ele que pacifica o Reino.
Leonor
Para já que se mantenham as determinações de Duarte. Serei regente do Reino de
Portugal. Conto com a vossa inestimável ajuda até à realização de Cortes. Ficai
cá esta noite. (Despedem-se com reverência. Leonor fica só.)
Cena IX
Leonor
Tenho de ter muito cuidado. A vida do príncipe Afonso estará sempre ameaçada
pelo bastardo cruel que parece um lobo faminto, pronto a atacar. E a minha vida
nada valerá para este povo que me expulsará para as terras de Espanha, se me
opuser à Regência de Pedro…
Cena X
Aia
Senhora, as crianças já tomaram a refeição da noite. Depois das orações, vou
deitá-las.
Leonor
Podes fazê-lo. Está atenta e vigilante, algo me diz que o príncipe corre perigo!
Aia
Tudo farei para o proteger, minha senhora.
Leonor
Acompanho-te à câmara das crianças, quero despedir-me do príncipe. (Saem.)
Coro
D. Afonso é menino,
Luta ainda com dragões.
Desconhece o seu destino,
Guarda grandes ilusões.
Mas D. Duarte partiu,
Deixou-lhe o reino nas mãos
E a rainha foi regente
Contra a vontade dos irmãos.
O trono estava em perigo,
Todos lá queriam sentar-se;
Até um tio bastardo
Dele queria apoderar-se.
A rainha tinha medo,
O filho mandou guardar,
Temia que o tio malvado
Viesse para o matar.
Cena XI
Quarto de dormir. Duas camas pequenas: uma humilde,
simples, outra sumptuosa, real. Depois de Leonor se despedir e sair, a Aia pega
no seu filho ao colo e canta. O príncipe também se levanta para se proteger no
seu regaço.
Aia
Nana, nana, meu menino
Um soninho de encantar
Aqui na tua caminha
Que a mamã está a embalar
Nana, nana meu menino
Nunca pares de sonhar
Nos teus olhos a estrelinha
Que não para de brilhar
Que Deus Pai fique convosco esta noite.
Deita as crianças na respetiva cama. Senta-se, permanece vigilante. Algum
tempo depois, levanta-se, preocupada com o ruído de
cavalos que se aproximam. Vozes. Gritos
abafados. Passos pesados e apressados. A Aia pressente o perigo e, num ato
instintivo, troca as crianças de cama. Esconde-se.
Cena XII
De rompante, o irmão bastardo invade o quarto e procura a cama do príncipe
para onde se dirige brutalmente. Agarra-o insensivelmente e sai. Novamente,
passos, ruídos, gritos, cavalos que se afastam.
Cena XIII
Leonor
(Entra no quarto descontroladamente, em pânico. Procura o seu príncipe de
forma alucinada. Ajoelha-se para acolher a dor aguda da perda evidente.)
Não! Não! O meu filho não! O meu filho … levado por um traidor aleivoso.
Meu Deus! Meu Deus! É grave, é muito grave esta desgraça! Perdi o meu filho,
perdeu-se o futuro rei! Perdeu-se a minha vida! Meu filho, meu pobre filho… nas
mãos daquele terrível bastardo!
Aia
(Não se percebe o que sente, a felicidade e a
infelicidade misturam-se de forma perigosa.) Minha
senhora, não chore, não faça barulho, o príncipe Afonso pode acordar. (Mostra
o príncipe que dorme em paz na cama humilde e simples.)
Leonor
Tu!? Tu fizeste!? Tu foste capaz… (Abraça-a. Pausa.) Meu menino, meu
filho! Meu querido filho! (Canta quase em segredo.. A Aia sai discretamente.)
Nana, nana, meu menino
Um soninho de encantar
Aqui na tua caminha
Que a mamã está a embalar
Nana, nana meu menino
Nunca pares de sonhar
Nos teus olhos a estrelinha
Que não para de brilhar
Cena XIV
Manhã seguinte. A Aia caminha mecanicamente,
indiferente a tudo. É recebida pelos nobres que reconhecem a grandeza ímpar da
sua ação. Leonor apresenta-lhe várias peças do tesouro real.
Leonor
Então preferes esse punhal. Nenhuma das outras ofertas te agrada, nem títulos, nem
terras, nem ouro…
Aia
Sim, para mim é suficiente este punhal… (Pausa para observar o punhal e
tomar a decisão seguinte.) Salvei o meu príncipe e agora vou cuidar do meu
filho… (Aponta o punhal ao peito.)
Cena XV
Fernando
(Regressado do norte de África. Vem com o filho da Aia pela mão.)
Alto. Pare. Não faça isso!
Filho da Aia
Mãe!
(Ficam os dois num abraço inacreditável)
Leonor
Fernando!? Como pode ser?!
Fernando
Real senhora, pensei que ontem o bastardo levava o meu querido sobrinho. Há já
oito dias que vigio este palácio por ter sabido das intenções daquele terrível
lobo solitário. (Para a Aia.) Mas vejo que também fiz muito bem salvar o
filho desta serva fiel e valente. (Dirigindo-se a todos os nobres,
vitorioso.) O Bastardo foi abatido pelos meus homens. (De novo para
Leonor.) Vamos, tenho notícias importantes do Norte de África. E o nosso
Duarte… que Deus o tenha! Sei que sempre me quis libertar. Foi um louco por
querer trocar Ceuta pela minha vida, pela minha libertação!... (Saem. Em
cena, ficam apenas a Aia e o seu filho.)
Cena XVI
Nana, nana, meu menino
Um soninho de encantar
Aqui na tua caminha
Que a mamã está a embalar
Nana, nana meu menino
Nunca pares de sonhar
Nos teus olhos a estrelinha
Que não para de brilhar
FIM