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Quando os muros nos libertam




O pai permanecia na cadeira que balançava lentamente. Naquele dia, não embalava, levava e trazia pensamentos, insistentes, demasiado circundantes. O rádio tentava conquistar o espaço, espalhando pela sala melodias suaves até irromper o sinal horário. Nesse momento, o pai levantou-se, aproximou-se do rádio e baixou discretamente o volume, fixando, por momentos, as filhas que ali perto brincavam. Rapidamente, desligou todos os sentidos, apenas ouvia, estagnado, ausente, preso às palavras que passavam como chamas empurradas pelo vento.
Quando voltou da terra queimada, encontrou os olhos da Clara que o fitavam intensamente, como se acabassem de descobrir no rosto do pai a verdade escondida. Momento eternamente retido, como cicatriz depois da ferida!
- Queres brincar connosco? - propôs a menina, perante o embaraço do pai.
Era melhor.
- Dás o leitinho ao bebé, papá! - avançou a Teresa.
Sentou-se o pai num banquinho cor de rosa, tornando verdade o sonho das crianças que se derramava nas palavras e nos gestos que inundavam a sala.
- Pai, pai, já está! O bebé não quer mais! Agora vais mudar a fraldinha – orientou a Teresa.
Nesse momento, o Mateus aproximou-se da porta. Trazia no rosto o melhor desalento que conseguira ensaiar minutos antes. O pai não resistiria!
- Quando é que terminas a casa na árvore?
- Primeiro tenho de adormecer o bebé! - segredou o pai.
A Teresa e a Clara ficaram deslumbradas com a resposta do pai. Espanto brilhante no olhar, o pai estava a brincar a sério!
- E depois vens? - insistiu o Mateus.
O pai acenou afirmativamente, logo esbugalhando os olhos, fixando algo por trás do filho.
-Que é?!
- Não faças barulho. Vira-te!
O rapaz obedeceu e ficou pasmado. À sua frente descia suavemente uma lagarta verde presa a um fio transparente. Regressava de um dos ramos da ginkgo biloba que já libertava as folhas em busca de Sol. Aterrou no buxo onde pela cor se confundiu. De lá sairá da cor de uma borboleta que voará para além da sebe que reforça o muro!
- Também te quero mostrar uma coisa que descobri – desafiou o Mateus.
O Pai acompanhou-o até ao alpendre onde o petiz apontou três ninhos discretamente construídos. Ainda tiveram tempo de ver um pássaro que saiu alarmado de um deles. Ouviram depois o chilreio que se elevou nas árvores ali perto. Uma sinfonia alegre, possível porque a estrada escura que passava encostada aos muros da casa permanecia calada há vários dias. Parece que os homens tinham resolvido fazer silêncio para escutar o concerto da Natureza.
- Amanhã vamos almoçar a casa dos avós?
- Não, filho! Ainda não é possível!
- Quando é que vamos poder sair? Não quero estar muito tempo atrás dos nossos muros!
- Acho que hoje à tarde consigo acabar a casa na árvore, se me ajudarem, claro!
Ali perto, as glicínias formavam uma ramada de folhas verdes de onde pendiam cachos azuis sorridentes, que se deixavam tocar pelas insistentes abelhas. Um zunido tornado doce pelo aroma das flores brancas e macias do jasmim que se agarrava à varanda.
Caminharam então até à vetusta oliveira que ocupava um dos canteiros do jardim. Presa aos ramos robustos eleva-se a base da casa que ganhava forma à medida dos sonhos e dos materiais que iam aparecendo. Uma construção tosca, mas onde cabia a esperança de subir mais alto para ver além dos muros.
- Anda, sobe!
Subiu e sentiu que o espaço diminui à medida que crescemos - porém o Mateus encontrava aí uma ampla plataforma para observar as estrelas. A casa tinha já duas paredes feitas de retalhos de madeira e um esboço daquilo a que o rapaz gostava de chamar abóbada.
O pai acomodou-se por fim. Aos poucos, apoderou-se dele uma angústia cujo grito abafado queria derramar-se pelos olhos. Tentou disfarçar. Reparou nas árvores ainda sem folhas, eram liquidâmbares podados fechados sobre si próprios. Aguardavam o melhor momento para romper, para libertar os ramos e as folhas. Era preciso saber esperar! Observou depois o horizonte para lá dos muros. Era preciso saber esperar!
- Acho que não vou pôr aqui nenhuma iluminação, Mateus?
- Porquê?!
Sem luz era mais fácil ver as estrelas. Além de ver para além dos muros, aquela casa permitia encontrar o brilho das estrelas, aquele fulgor que atenua as noites que parecem não ter fim.
Quando voltou à sala, a Teresa e a Clara entreolharam-se, desfazendo-se numa gargalhada.
- Pai, estás cheio de folhas no cabelo! Estiveste na casa da oliveira? - perguntou a Teresa.
- Nem penses! - afirmou a Clara. - Não vais ouvir de novo as notícias! Vais brincar connosco!
Sem perder tempo, a Teresa colocou-lhe nas mãos uma caixa de legos.
Depressa voaram para além dos muros!

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