Avançar para o conteúdo principal

Rub, a borracha




Branca e presumida vivia em constante sobressalto. Ficava horas e horas no suporte elástico mais alto do estojo aberto sobre a mesa. Dali observava o trabalho do Pedro que, naquele dia, alinhava números e sinais numa cadeia interminável que era sempre igual a qualquer coisa, de preferência, a um número. Que maçada!
Quando o rapaz comparou o resultado obtido com o do João que, ao seu lado, percorria o mesmo caminho, ela deixou de respirar. Rub ficou ainda mais branca, quando percebeu que uma das respostas estava errada. Ups! Nem quis saber qual era! Refugiou-se imediatamente na parte inferior do estojo, junto das minas zero ponto cinco e dos lápis partidos. Havia por ali restos de aparas e papéis que guardavam sorrisos envergonhados, suspiros indecifráveis. Sabia que o rapaz não a procuraria naquele lugar.
- João, empresta-me a borracha.
Livra! A vizinha entrava mais uma vez ao serviço. Chamava-lhe esforçada e consumida, vizinha consumida, nunca uma Rub como ela! Que maravilha! Orgulhava-se dos seus intocados vértices, agudas arestas e acetinada brancura.
Voltou depois para o seu elástico e observou, curiosa, a vizinha Safa que aguardava ainda na mão esquerda do Pedro. Viu-lhe a face negra do carvão e a tristeza com que se despedia dos pedacinhos que ficavam torcidos na mesa. Um sopro os separava. Um sopro apenas. Mas reparou também na sua determinação, no orgulho que mostrava entre os dedos do rapaz, onde parecia estar aconchegada.
- Dá-me a borracha.
A Safa voou então para o caderno do João e tocava já no número sete, quando resolveu torcer-se o mais possível para fugir àquela missão. Ficou radiante quando o Pedro colaborou:
- Não apagues, está certo!
A Rub percebeu tudo e ficou estarrecida: além de se desfazer aos bocadinhos, a vizinha conhecia os números!
A Safa continuou a bailar nas mãos do Pedro e do João, enquanto se lembrava da avó que ficava aborrecida, quando ela dizia que gostava de apagar os erros: «Não, nós não apagamos, nós safamos os erros!» Como já era velhinha e não conseguia safar os riscos e as letras mais pequenas (às vezes, até borratava as folhas) retirou-se para a caixinha colorida. E passava os dias a ver o jardim em casa do João, em cima da secretária, junto à janela.
Estava, pois, a Rub estarrecida e a Safa divertida, quando o Pedro resolveu emprestar a sua borracha. Claro que não ouviu o grito protestante:
- Nãooooooo!
O Tiago admirou as formas perfeitas da Rub que tinha aterrado na sua mesa e deixou escapar um sorriso misterioso que muito a assustou. Daí a pouco, sentiu uma fricção estranha que lhe atravessava o corpo, mas não percebeu a intenção do rapaz. Pelo menos não mostrava interesse em esfregá-la nas manchas de carvão espalhadas na mesa, nem nos desenhos sobrepostos no caderno de matemática! Não encontrava por ali nenhum erro e, mesmo que houvesse, não o reconheceria.
Sentiu que a fricção continuava e que o Tiago a cortava aos pedacinhos com uma régua de dez centímetros. Ainda tentou pedir ajuda, mas ele escondeu-a sob a palma da mão. Daí a pouco percebeu a brincadeira: viu metade da sua brancura discretamente apontada e disparada. Bateu em cabeças atentas, distraídas, adormecidas, divertidas e, não tardou, sentiu-se espalhada pela sala, desfeita em pedacinhos perdidos pelo chão. Um deles ficou mesmo encavalitado num dos cabides que havia junto à porta.
Reparou, despedaçada, na Safa que rodopiava carinhosamente entre os dedos do João, enquanto este sussurrava ao ouvido do Teresa. Depois, viu que a Safa, já pequena, mas sábia e senhora dos erros apagados, foi reconduzida ao estojo e guardada na bolsa secreta das borrachas certificadas.
Dali seria levada para a caixinha colorida onde a esperavam a mãe e a avó, todas safas, longe dos erros.

Mensagens populares deste blogue

Pai, quantas ondas tem o mar?

A Clara continuava na água. Abraçava as ondas e deixava-se levar qual capitão à proa do barco da imaginação. Atracava feliz e logo se voltava para sulcar a seguinte. O pai permanecia sentado, observava aquele vaivém e também ele navegava em cada onda que beijava inocentemente a areia. - Pai, viste o meu mergulho? – perguntou, enquanto se aproximava. O pai acenou afirmativamente, evitando as palavras e o olhar. Não queria regressar daquela viagem que a imensidão sempre proporciona. A menina, curiosa, perspicaz, feita de perguntas e saberes nunca satisfeitos, sentou-se e ficou também a olhar. - Estás a ver ou estás a pensar? - As duas coisas… – respondeu o pai, inseguro. - Posso fazer-te uma pergunta? – continuou, procurando melhor posição na areia. - Sim. - Quantas ondas tem o mar? O pai levantou os óculos escuros para ver melhor o rosto da criança e não encontrou sinais de brincadeira. Reparou, sim, na dúvida que permanecia no olhar concentrado e insatisfeito.

Mãe, emprestas-me um beijinho?

A Teresa rodava no centro da sala com os braços esticados sobre a cabeça. Era uma bailarina encantada pela música, rodopiava nos braços da melodia. - Mãe, olha para mim! Vês, já sei dançar! - Linda! Que princesa tão linda! E logo a envolveu num abraço, emprestando-lhe um beijo no rosto. A menina olhou-a de uma forma inesquecível. Nos olhos, um tempo indistinto, um tempo sem tempo que reunia ali todos os tempos. O beijo provocou-lhe uma explosão interior sentida no olhar, uma alegria que se alargava no sorriso e se apertava no abraço que reafirmou à volta do pescoço da mãe. Depois afastou-se para reencontrar-se com os amigos de peluche que aguardavam pela sua imaginação. - Vem cá, pequenino, estás com frio? Agarrou-o, envolveu-o num pequeno cobertor e ofereceu-lhe um beijo demorado. O Mateus também estava na sala. Tinha reparado com curiosidade na irmã e na mãe. - Também me davas beijos assim? Como não obteve resposta, aproximou-se e encostou a cabeça no ombro da m

A primeira aventura do Sapo Toquinhas

O Sapo Toquinhas acordou e ficou muito contente. Estava um dia lindo. O Sol estendia os seus dedos quentinhos até ao rododendro. Era aí que o Toquinhas vivia com os seus pais e a sua irmã Matocas. Avançou então por entre as folhas aos saltinhos com muito cuidado para não ser visto. À sua frente começava a calçada que conduzia até à porta principal da casa. - O que haverá lá dentro? - matutava o Toquinhas. E logo recordou o conselho do Paitocas: "Nunca te aproximes daquela porta!". Mas o Toquinhas olhava a porta grande e castanha e ficava triste porque via que outros animais lá entravam todos os dias. Entrava a mosca, o mosquito, a melga, a lagartixa. Até a formiga lá entrava! Um dia, ficou à espera, quieto como uma pedra. O coração batia apressadamente! Tum! Tum! Tumtum! Tumtum! Tum! Tum! Tumtum! Tumtum! Dali até à porta eram três saltos altos e longos... De repente, viu passar o pai de Mateus com sacos de compras. O homem abriu a porta grande e