O Mateus tinha finalmente conquistado o lugar da
frente ao lado do condutor. Olhava fixamente um ponto no horizonte e mantinha
um sorriso discreto de vitória. Endireitava também as costas para que ninguém tivesse
dúvidas da sua altura. A Clara resolveu então interromper aquele momento de
glória:
- Pai, já sei as minhas notas, tirei satisfaz ple…
- Clara, por favor, o pai está cansado. Não vais
falar agora dessas coisas. A tua geração é mesmo chata! – cortou o Mateus.
A Clara não se deu por vencida.
- O que é uma geração?
- Nem sequer sabes o que é uma geração?!
- É, até parece. Diz-me lá então o que é uma
geração!
- Pai, diz à Clara o que é uma geração. Já estou
cansado de a ouvir!
O pai conduzia em direção a casa. Estava realmente
cansado, mas aquela conversa provocou-lhe uma gargalhada que ele tentou suster
sem sucesso. De repente, ela explodiu-lhe nos lábios e nos olhos. Foi risota
geral, imparável e contagiosa. Só parou quando uma voz meiga e frágil rompeu,
impondo seriedade:
- E eu, pai? E eu? Não me perguntas?
- Pergunto o quê, Teresa?
- Não me perguntas como foi o meu dia?!
- Diz, Teresa, como foi o teu dia? – tentou o
Mateus.
- Cala-te, não és tu, Mateus – protestou.
- Sim, Teresa, eu falo contigo. Como foi o teu dia?
Pelo retrovisor, o pai conseguiu ver o sorriso
feliz da filha que tinha conquistado também o seu espaço.
- Posso dizer-te as minhas notas?
- Clara, o pai está a falar com a Teresa!
- Cala-te, Mateus, o pai é que sabe.
- Pai, quando chegar a casa, posso andar de
bicicleta?
- Oooooooh, Maaaaaaaaateus! Não és tu que falas! –
queixou-se novamente a Teresa.
A noite
tinha avançado sem avisar, dando a sensação de que a Natureza sabiamente se
recolhia mais cedo, para espanto das pessoas, que continuavam a fazer as mesmas
tarefas a um ritmo ainda mais alucinante.
- Não há tempo, filho. Além disso, já anoiteceu e, em breve, vai chover.
Algum tempo de silêncio e umas centenas de metros percorridos. Os olhos
vagueavam pelas casas e pelas árvores, sem ocupar o pensamento que se perdia
nas recordações do dia. Só nesse momento perceberam que o rádio murmurava
baixinho.
- Pai, porque é que a tempestade se chama Beatriz? – irrompeu o Mateus.
- Não sei bem, parece que as pessoas têm mais cuidado se a tempestade
tiver um nome…
- Podia chamar-se Clara – continuou, fitando de soslaio a irmã.
Mas a Clara não lhe prestou atenção. Tinha reparado numa varanda
bastante iluminada.
- Que dia é hoje, pai?
- Estamos no início de novembro, dia sete.
- Viste as luzes naquela varanda? Já têm a iluminação de Natal! –
estranhou a Clara.
- Sim.
- Se calhar é uma família que veio da Austrália – tentou o Mateus.
- Não percebi, Mateus – interveio o pai.
- Não percebes? Lá o Natal é no verão…
- E então?
- Por isso põem as luzes mais cedo… qualquer dia, fazem árvore em
agosto para respeitar a estação do ano.
- O Natal acontece no mesmo dia em todos os países, a estação do ano é
que pode não ser a mesma – insistiu o pai, para que não houvesse dúvidas.
- Estava a brincar, contigo, pai!
- Também já podemos fazer a nossa árvore de Natal? – pediu a Clara.
- Ainda é muito cedo – intrometeu-se o Mateus.
- Não é nada, assim, o Pai Natal pode preparar com mais calma os nossos
presentes!
- Clara, por favor, o Pai Natal já não…
O pai não deixou o Mateus acabar a frase. Interrompeu-o de forma
abrupta com o olhar. Não queria que o mundo de repente ficasse cinzento, da cor
dos adultos. A Clara e a Teresa pintavam-no de cor-de-rosa e ainda era cedo
para passarem ao lápis de carvão. Por vezes, conhecer é sofrer.
Voltou o silêncio. O portão abriu passagem e o carro seguiu para o
alpendre.
- Papai, podemos escrever uma carta ao Pai Natal?
- Sim, Teresa.
- Papai, a Teresa gosta muito de você!
O pai desligou o carro, suspirou, preparou-se para o desembarque e
prometeu que tinha de ver o que se passava com o Youtube.
- Pai, posso ir ao computador?
- Mateus, eu estava primeiro! – protestou a Clara.
- Papá, deixei o gatinho na escola! Eu quero o gatinho!
- Pai, sou eu não sou? – insistiu o Mateus.
- Primeiro, vamos ver se há trabalhos para fazer.
E abriu a porta de casa cercado de protestos. Mas nada que uma boa
notícia não resolvesse.
- Quem quer ir visitar o Francisco?
Todos queriam, claro!
- Se fizerem os trabalhos, depois do jantar, vão com a mãe.
- Viva!
O Francisco era o primo mais novo recém-nascido. Com ele o mundo
mantinha a cor e o sentido.
- Viva!